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2 A ASSISTÊNCIA A PSICOPATAS

2.2 O histórico administrativo

A princípio, o corpo de trabalho da Assistência Geral a Psicopatas foi integrado por um diretor geral; os vice-diretores do Hospital Juquery, do Manicômio Judiciário e da Clínica Psiquiátrica; um médico alienista para cada conjunto de 150 doentes atendidos; e três escriturários, além da equipe já em atividade. Esse movimento levou à supressão

do cargo de direção do Juquery, que passou a ser superintendido pelo diretor geral da Assistencia. O papel central ocupado pela instituição, portanto, se refletiu desde o início na estrutura administrativa do órgão público. Em linha com isso, uma das reverberações imediatas depois de sua constituição, em 1930, foi o amplo aumento do número de pacientes internados no Juquery. Isso “pode ser explicado pelo maior número de pessoas que passaram a ser atendidas nas clínicas espalhadas pelo estado de São Paulo que, diagnosticadas com alguma doença mental, eram encaminhadas para a internação” (Tarelow, 2011, p. 124) no hospital. Em 1928, Pacheco e Silva já reconhecia a inevitabilidade da superlotação, consequência da falta de vagas frente a quantidade de doentes (idem, ibidem, p. 125)

Mas a assunção do problema não impediu que o psiquiatra — então diretor do Juquery — se posicionasse de maneira permissiva perante as milhares de internações dos anos seguintes. Em 1932, especificamente, o Movimento Constitucionalista levou ao encaminhamento de diversas pessoas às instituições da entidade, o que se agravou pelo fato de o Hospital Psiquiátrico de Piracicaba ter sido tomado como hospital de guerra.

Figura 6 - Jardins interiores e entrada principal do Hospital Juquery. Fonte: Pacheco e Silva, 1945

A criação do órgão público foi vista de forma positiva em publicações da imprensa. O jornal O Estado de S. Paulo produziu uma extensa matéria, perpassando por pontos além da criação da Assistência em si, como a concepção da loucura ao longo da história e o trabalho desenvolvido por diferentes estabelecimentos psiquiátricos vinculados à instituição. O material foi produzido com o suporte do próprio Pacheco e Silva, então diretor da entidade66, “illustre scientista” que “proporcionou uma visita aos varios

66 A premissa que todo o conteúdo da matéria foi realmente fundamentado por informações obtidas com Pacheco e Silva gera abertura para uma interlocução — mesmo que ruidosa — com as concepções e discursos do diretor da Assistência. Esse cenário hipotético possibilitaria uma correlação do tratamento dos alienados e do fazer psiquiátrico nas instituições vinculadas ao órgão, validando o foco no tópico

Loucura através dos séculos: “Antes do século XVII não se cogitou no mundo inteiro da hospitalisação dos

psychopatas, A obra caritativa dos irmãos de São Vicente de Paulo limitava-se a prestar, até então, assistencia aos doentes mentaes recolhidos nas prisões. Delles não se occuparam os medicos. A instrucção publicada em 1755, por Luis XVI, sobre a maneira de assistir aos insanos determinava que fossem os mesmos presos por anneis de ferro no próprio leito. Na França, o primeiro protesto nesse sentido surgiu da parte de Tenon, como se deduz de uma memória ha pouco publicada por Antes do século XVII não se cogitou no mundo inteiro da hospitalisação dos psychopatas, A obra caritativa dos irmãos de São Vicente de Paulo limitava-se a prestar, até então, assistencia aos doentes mentaes recolhidos nas prisões. Delles não se occuparam os medicos. A instrucção publicada em 1755, por Luis XVI, sobre a maneira de assistir aos insanos determinava que fossem os mesmos presos por anneis de ferro no próprio leito. Na França, o primeiro protesto nesse sentido surgiu da parte de Tenon, como se deduz de uma memoria ha pouco publicada por Varrete, nos "Annaes Medico-Psychologicos". Em 1791, a voz de um homem publico se levantou em favor dos insanos — a do duque da La Rochefoucauld-Liancouri, preparando o espírito do povo para a reforma que, nos ultimos mezes de 1792, Pinel deveria pôr em

departamentos da Assistencia, fornecendo-nos também os dados que illustram esta noticia” (14 nov. 1931, p. 3). A constituição da Assistência é aludida de forma romantizada, como “um presente de Natal” (idem, ibidem) para os alienados que se viam desamparados. A diretoria geral da Assistência foi instalada em um “grande e confortavel predio da rua dos Ingleses” (idem, ibidem), na região central da capital, onde se localiza o bairro Bela Vista (figura 7).

Figura 7 - Sede da Assistência a Psicopatas. Fonte: Pacheco e Silva, 1945

pratica, prevalecendo-se das modificações profundas de regime, implantadas pela Revolução Francesa. Mais tarde, o mais notavel dos discipulos de Pinel, Esquirol, em memoria apresentada ao ministro do Interior, em Setembro de 1818, assignalava a necessidade de ser levada avante a reforma proposta por Pinel, dizendo: “Aquelles por quem eu me boto são os membros mais interessantes da sociedade, quasi todos victimas dos seus preconceitos da injustiça e da ingratidão dos seus semelhantes... entretanto, essas pessoas que deveriam merecer cuidados especiaes, esses infortunados que experimentam a mais triste das miserias humanas são mais maltratados que os criminosos e reduzidos a uma condição peor que a ds animaes”. Nessa mesma época, Rall Frank e Max Andrés na Alemanha; Chiaruggi, na Itália; d'Acquin, na Servia e do Renuet na Inglaterra, moviam identicas campanhas em prol dos insanos. Da então para cá os progressos realisados em psychiatria e as reformas humanitarias adoptadas beneficiaram extraordinariamente os infelizes insanos, que recebem hoje em quasi todos os paizes do mundo dedicada assistencia em estabelecimentos adequados” (idem, ibidem).

Neste espaço funcionavam a Clínica Psiquiátrica e o Ambulatório de Higiene Mental, considerados, ao lado do órgão em si, como os centros de irradiação de todo o sistema. “É dalli que irradia toda a actividade que vae tornando o Estado de São Paulo um dos mais bem dotados de assistencia a psychopathas”. Pela perspectiva urbanística e ocupacional, é considerado “um edificio isolado, quasi inteiramente cercado de jardins, mas assim mesmo houve gente excessivamente temorata que se alarmou com a sua inoffensiva vizinhança, não tanto pela segurança individual, mas pela valorisação dos terrenos do bairro”. Esses indivíduos são referidos pelo redator da matéria como “inimigos da clinica” (idem, ibidem). Enquanto a Clínica Psiquiátrica centrava no atendimento dos casos de maior gravidade, o Ambulatório de Higiene Mental era voltado para a profilaxia de “moléstias mentais, instituindo-se o tratamento preventivo da syphillis e os cuidados necessarios à repressão do alcoolismo”67 (idem, ibidem).

O papel da Assistência como solução para o problema de superlotação dos presídios — que “regorgitavam de psychopathas que, por falta de accommodações nos hospitaes, eram abandonados nas ruas e depois recolhidos pela polícia aos xadrezes” (idem, ibidem) — era um argumento que ecoava no discurso oficial, proferido pelos que implementaram a sua criação. Com efeito, entre os anos de 1931 e 1933 foram feitos muitos encaminhamentos de “doentes mentais” que estavam em cadeias públicas. Argumentava-se que as prisões não tinham condições para acolher esses indivíduos, tanto por não terem tratamento adequado, como pela falta de higiene, agasalhos e remédios, mas a estrutura da Assistência a Psicopatas também não estava em condições ideais. E isso se agravou ainda mais com a chegada desse novo contingente de internos, reforçando o aspecto dessas instituições como um depositário de indivíduos desviantes.

A alusão recorrente a um possível vínculo da questão carcerária com o projeto de assistência a psicopatas reflete a percepção de que muitos dos indivíduos detidos em presídios possuíam algum tipo de transtorno psicológico. Essa percepção é evocada como premissa, o que nos restringe ao desenvolvimento de hipóteses sobre o que pode

67 Sobre o trabalho desenvolvido pelo Ambulatório de Higiene Mental, o redator destaca que é “notavel a acceitação que essa iniciativa teve por parte do publico, no interesse que a maioria dos consulentes manifesta em procurar estender o beneficio dessa propaganda e do tratamento preventivo, principalmente as crianças que conhecem como descendentes de alcoolistas ou syphiliticos” (idem, ibidem).

ter fundamentado essa lógica. A violação da lei pode ser justificada nas esferas da racionalidade e da causalidade, que de qualquer forma esmaecem o poder de agência dos que cometeram a infração: eles são inseridos nesse contexto de forma passiva, como se estivessem sujeitos às consequências impostas por sua condição mental, que os condicionaram a incorrer em delitos de maior ou menor gravidade. A intencionalidade lhes é, portanto, negada. Sem uma análise dos casos, assume-se de forma generalista que a trangressão é muitas vezes decorrência da alienação mental, da ausência de um domínio sobre seus atos, sobre a sua consciência. Essa visão racionalista esvazia as responsabilidades sobre atos de violência e possíveis atos de rebeldia68. Para além

disso, como aponta Tarelow,

Cabe destacar que Antonio Carlos Pacheco e Silva acumulava nos anos 1930 a Direção do Juquery com a coordenação do Serviço Penitenciário de São Paulo. Isto é, os mecanismos responsáveis pelo encarceramento dos "vagabundos" e dos demais indivíduos "anormais" nas cadeias e nos manicômios eram fruto da mesma política de exclusão posta em prática, supostamente, em nome da "regeneração" das pessoas e da sociedade. (2018, p. 171)

A alusão aos presídios como um dos eixos do debate sobre o trabalho desenvolvido pela Assistência pode ser visto no tópico Os alienados nas cadeias da

capital e do interior, inserido na mesma matéria. Segundo a publicação, a vida dos loucos

recolhidos nesses espaços, “alguns dos quaes eram acorrentados às grades da prisão” (idem, ibidem), era espantosa e arrepiante. Estes problemas também eram notórios na capital paulista:

Basta dizer que as delegacias despejavam os seus loucos no famoso Recolhimento das Perdizes. Aquillo alli era a cena do pavor. Cerca de 400 homens e mulheres na mais abjecta promiscuidade se amontoavam nos seus compartimentos, sem camas nem serviço de hygiene. Entro elles havia morpheticos, tuberculosos, allucinados. Quem não estava louco, ficava. E para completar o quadro, basta dizer que no anno de 1929, sem qualquer surto epidemico, alli falleceram 203 enfermos, metade dos recolhidos. Não ha, portanto, necessidade de acrescentar mais nada. (Idem, ibidem)

Dizia-se que, à época, o problema ainda não havia sido totalmente solucionado, pois a criação da Assistência ainda não havia completado nem mesmo um ano,

68 Na impossibilidade de promover uma análise detalhada sobre agentes motivadores de diferentes violações da lei, o que propomos aqui somente uma crítica à essa referida concepção racionalista, na qual se vincula aprioristicamente quaisquer desses atos a algum transtorno mental. Alheia às especificidades de qualquer um desses casos e, portanto, distante da complexidade de cada um deles, nossa crítica não carrega juízos de valor, ou qualquer intenção tanto de justificar atos de violência como de legitimar as políticas de encarceramento em massa.

justificando o estado embrionário de suas realizações. Ainda assim, já se considerava que o ambiente havia mudado muito, pois antes os psicopatas mantidos nas cadeias tinham como únicas projeções de destino “o inferno das Perdizes” ou “o anonymato dos cemiterios”. O Recolhimento das Perdizes é descrito de forma elogiosa, onde se presume o bem-estar e a “tranquilidade acolhedora” (idem, ibidem) das internas por conta do ambiente adornado por árvores e flores bem tratadas, a pintura do prédio com uma coloração clara, os móveis do escritório envernizados e polidos, os jogos de cama asseados — fatores que se somam à complacência das enfermeiras e a dedicação das internas à laborterapia:

Visitamos hontem aquelle predio do largo das Perdizes n. 13. A sua fama ainda hoje põe arrepios nas pessoas que alta noite ouviam os gritos dos encarcerados e no dia seguinte viam sahir aquelles enterros sem dourado nem acompanhamento. Do que foi o recolhimento das Perdizes pouco resta. Se o predio continua a ser o mesmo, muitas coisas mudaram. Logo à entrada há arvores bem tratadas. Os canteiros estão pintalgados de flores. A casa apresenta uma pintura clara e sympathica, confundindo-se com as residencias tranquillas e apraziveis daquelle bairro. Logo à porta, um escriptorio com moveis envernisados, polidos, uma jarra de flores, uma tranquilidade acolhedora. Nos quartos, ha camas, com colchas, cobertores. Tudo asseiado. As cem hospedes do recolhimento, geralmente mulheres que se encontravam nos xadrezes ou perambulavam pelas ruas, estão num largo pateo batido pelo sol e cantam, conversam ou sismam, de accôrdo com o seu estado psychico, sob o olhar complacente das enfermeiras vestidas de branco. Essas mulheres fazem trabalho de agulha, costuram, almofadas. Algumas dellas desfiam os cobertores e com os fios de lan fazem curiosos chinellos” (14 nov. 1931, p. 3).

As mudanças referidas no texto podem ter sido influenciadas também por uma alteração de âmbito administrativo. As instituições que compunham o órgão estavam subordinadas a duas diferentes pastas: a Secretaria do Interior, à qual estavam subordinados o Hospital Juquery, o Recolhimento das Perdizes e a Secretaria da Justiça, responsável pelo Manicômio Judiciário e seus demais estabelecimentos.

Mesmo com os movimentos dos anos anteriores, ainda se tinha o registro de muitos doentes mentais mantidos em cadeias públicas, o que descumpria uma determinação federal69. Foi por isso que, em meados de 1933, a superlotação dos

estabelecimentos subordinados à Assistência — referida nesta publicação70 como a

Diretoria Geral da Assistencia a Psicopatas — justificou o encaminhamento de medidas objetivas. Nesse momento, estavam recolhidos nessas instituições “3.041 doentes,

69 Trata-se da lei federal n.° 17.805, publicada em 23 de maio de 1927.

numero muito superior á lotação dos mesmos”, tornando impossível o encaminhamento dos 657 requerimentos da fila de internação, além de cerca de 800 doentes que permaneciam sem assistência e “122 criminosos que perturbam o regime” da Penitenciária do Estado. A falta de vagas e instalações apropriadas impediam a Diretoria Geral da Assistencia a Psicopatas de atender os pedidos de internação feitos pela polícia, apesar de tal assistência ser um dever indeclinável do Estado. Voltando o olhar para a infraestrutura, a Secretaria de Estado da Educação e da Saúde Pública autorizou a instalação de mais uma colônia no Hospital Juquery e novas colônias agrícolas no interior do estado. A estrutura das colônias pode ser observada nas figuras 8 e 9.

Figura 9 - Vista geral da 4ª Colônia do Hospital Juquery. Fonte: Pacheco e Silva, 1945

Também foram pensadas em iniciativas para aumentar o atendimento nas estruturas que já estavam em funcionamento — o Hospital Juquery, a Escola de Menores Anormais71, o Hospital Psicopático da Penha e o Hospital Psicopático das Perdizes.

Referida como a “solução do problema da assistência a criminosos alienados no Estado” (O Estado de S. Paulo, 27 dez. 1933, p. 5), a inauguração das instalações oficiais do Manicômio Judiciário ocorreu em dezembro de 193372. Aprovado pelo Senado em 1927,

o projeto de autoria de Alcântara Machado tinha finalmente se concretizado. Pacheco e Silva é apontado como o responsável pela organização do estabelecimento: “uma vez elaborado o projecto, que reune uma série de detalhes úteis encontrados em diversos institutos congêneres de outros países, como o de Neustadt, Bruchsal, Gottingen etc.” — como se nota, todos os hospitais citados como referência eram alemães. O trabalho desenvolvido pelo Manicômio era conduzido até então em uma das seções do Hospital Juquery, mas “em condições um tanto precárias” (idem, ibidem), sem corresponder às

71 A inauguração da Escola Pacheco e Silva para Menores Anormais é descrita por César (1929). A

instituição é objeto de estudo de Serra (2011).

múltiplas necessidades do Estado. Advogando pelo projeto, Alcântara Machado observa que:

De acôrdo com o disposto no art. 29 do Código Penal, o juiz determina que o insano seja recolhido ao Hospital de Juquerí. Mas em Juquerí não há lugar disponível. Então, sempre de acôrdo com o art. 29 do Código Penal, a autoridade judiciária confia o alienado à sua família. Mal chega êle à casa, mata o filho. Sai uma escolta em sua perseguição. Encontra-o em companhia de outros indivíduos. Auxiliado por êstes, o louco resiste à prisão e fere mortalmente um soldado. É morto, afinal! Morre também um dos fanáticos que o acompanhavam. Três vidas sacrificadas, porque, cometido o primeiro crime, o delinquente não poude ser recolhido, como de razão e como de direito, a um estabelecimento apropriado. (Pacheco e Silva, 1935, p. 14)

Figura 10 – Vista lateral do Manicômio Judiciário. Fonte: Pacheco e Silva, 1935

Apesar de as obras terem sido iniciadas de imediato após a sua aprovação, os acontecimentos políticos que ocorreram depois de 1930 atrasaram a conclusão do projeto. Erigido em uma área reservada de 185.000 m² disposta a 2.500 metros do Hospital Juquery, “o edifício, monumental, é de três pavimentos”, cujas disposições permitem “a um guarda, postado no centro do ‘hall’, observar tudo quanto se passa nos corredores internos das três alas” (idem, ibidem, p. 17). Cada aspecto foi pensado para cumprir sua função:

No discurso arquitetônico-urbanista, o aspecto formal-funcional é tomado como referência, portanto, como preceito do processo de edificação de uma cidade. Na segunda metade do século XIX, a nova ordem da Arquitetura passou a se assentar no funcionalismo. Ou seja, a partir da fórmula proposta por Nervi (Forma, Estrutura e Função), o emprego da forma passou a se vincular com a necessidade de dar visibilidade à função que ela traz implícita (art implique). A proposta arquitetônica dos funcionalistas visou, então, a mostrar pela forma a função a que determinada edificação se prestava. (Maluf-Souza, 2004, p. 37)

O modelo arquitetônico73 panóptico é utilizado como uma das ferramentas de

controle sobre os internos. Assim como Jeremy Bentham74, Michel Foucault apresenta o

panóptico como um modelo generalizável, polivalente em suas aplicações, passível de ser instituído em prisões, hospitais, escolas, indústrias, manicômios… Isto é, em estabelecimentos que tenham a intenção de manter um certo número de pessoas sob vigilância em um local restrito (Foucault, 2004, pp. 168-169):

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos - isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. (Idem, ibidem, p. 162)

73 Para um estudo detalhado sobre os aspectos arquitetônicos do Complexo Hospitalar Juquery, ver

Pizzolato (2008).

74 Ao explicar o “princípio de inspeção” em 1787, Bentham observa: “para dizer tudo em uma palavra, ver-

se-á que ele é aplicável, penso eu, sem exceção, a todos e quaisquer estabelecimentos, nos quais, num espaço não demasiadamente grande para que possa ser controlado ou dirigido a partir de edifícios, queira- se manter sob inspeção um certo número de pessoas. Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos: seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar

o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em ascensão no caminho da educação (...). A

perfeição ideal, se esse fosse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo. Sendo isso impossível, a próxima coisa a ser desejada é que, em todo momento, ao ver razão para acreditar nisso e ao não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que está nessa condição”. (2019, pp. 19-20)

Figura 11 – Corredor central e entradas das celas do Manicômio Judiciário. Fonte: Pacheco e Silva, 1935

Em qualquer um desses contextos, o modelo em questão corrobora com o exercício do poder por sua capacidade de controle na esfera física ou simbólica. Seja por garantir a multiplicação do número de vigiados sem demandar uma maior presença dos que detêm o poder, ou mesmo pelo efeito da constante pressão exercida sobre os que estão sob vigilância: “nessas condições, sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído, é constituir um mecanismo de efeitos em cadeia” (idem, ibidem, p. 170). A eficácia do panoptismo está, portanto, em “seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos” (idem, ibidem). A aplicação dessa lógica para um hospital-prisão como o Manicômio Judiciário pode ser observada nas figuras 11 e 12.

Figura 12 – Mecanismos de segurança da entrada de uma cela do Manicômio Judiciário. Fonte: Pacheco e Silva, 1935

O novo edifício também deveria funcionar como Instituto Médico Legal, como um