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3 AS FACES DA PSICOPATIA

3.9 Um crime de honra

9 de maio de 1940

Penitenciária do Estado São Paulo

Em uma das celas, Hideki Kato se preparava para pôr fim à sua vida.

Já tinham se passado cinco anos. Foi necessária uma viagem de quase 600 quilômetros para que Toru, Kaoru e Hideki Kato fossem de Fukuoka, ao norte do Japão, ao porto de Kobe, em Osaka. Esse foi o ponto de partida deles e outros 964 japoneses que, anos antes, em 29 de novembro de 1934, embarcaram no navio Africa Maru para chegar ao Brasil. À exceção do turista inglês N. P. Allen, que se instalou nas acomodações da 1ª classe no porto de Cape Town, da África do Sul, todos os demais passageiros pagaram por bilhetes da 3ª classe. O que tinham em comum ia muito além da nacionalidade: mais que a cultura, idioma e religião, eles compartilhavam também a angústia de deixar a sua terra-natal, e ao mesmo tempo a esperança de prosperarem em seu destino final. Destino esse que era quase sempre uma fazenda no interior de São Paulo, onde trabalhariam como agricultores.

Era comum que os fazendeiros “encomendassem” grandes levas de imigrantes, que já tinham endereço certo antes mesmo de saírem do Japão. À época com 35 anos, Hideki era o chefe da família, responsável por sua esposa Kaoru, de 17, e seu primo Toru, de 14 anos. Aportaram em Santos, de onde se dirigiram para a estação de Piracicaba, e logo se estabeleceram como colonos da Chácara Guararápes, em Campinas. Dentre os lavradores com quem conviviam, estava o patrício Nobuo Nagato, que em pouco tempo manifestou interesse em Kaoru.

Hideki percebia os olhares interessados de Nagato, com os quais sempre se incomodou, chegando até mesmo a brigar com sua esposa quando estavam sozinhos. Afinal, como ele poderia saber que não era culpa dela? Que, de alguma forma, ela tinha dado alguma abertura? Ele tentava se manter sempre sob controle de seus passos, mas talvez algo tivesse acontecido nos raros momentos de sua ausência. Talvez ela tenha retribuído seus olhares alguma vez…Ou poderia até mesmo ter se entregado a ele, quem poderia garantir que não? Apreensivo por pensar que sua esposa poderia ser tomada por outro homem, Hideki Kato passou a descontar nela a sua insegurança.

Aquele foi um dia de trabalho como qualquer outro, exceto por um detalhe: Kaoru não voltou para casa. Ao que parece, o interesse do patrício se transformou em um contato mais direto. Não se sabe exatamente quantas vezes ele chegou a abordá-la até então, nem se tiveram alguma intimidade antes disso, mas a esposa de Hideki passou aquela — e mais algumas noites — com Nobuo Nagato. Teria ela cedido às suas investidas ou se sentido obrigada a ceder? Fato é que seu laço matrimonial havia sido violado, o que pode ter acontecido com ou sem o seu consentimento.

A situação não se manteve por muito tempo. De forma tão inesperada quanto sua saída, Kaoru132 logo voltou à sua casa, ao lado de seu marido. Mas ele não deixou que

passasse em branco: em 27 de março de 1935, entre 8 e 9 horas da noite, Hideki entrou no quarto de Nagato e o assassinou com uma lâmina encontrada ali. A vítima já estava dormindo, por isso não teve chances de se defender. Sabendo das possíveis consequências de seu ato, ele passou o resto da noite escondido no meio da mata próxima à fazenda — o que não impediu que fosse preso no dia seguinte. Hideki acreditava que Nobuo concorreria com ele, tentando fazer com que Kaoru fugisse de sua companhia, por isso decidiu matá-lo. No entanto, o medo de perdê-la também acabou o afastando dela.

Seu processo por homicídio levou à sua transferência para a Cadeia de Campinas e, depois de duas apelações negadas, para a Penitenciária do Estado. Hideki apresentou bom comportamento por anos, interagindo bem com todos. Chegou até mesmo a se deixar batizar por um padre católico com o nome de João, ainda que ninguém o tenha

132 Assim, como em outras culturas, a objetificação das mulheres não era incomum no imaginário e no cotidiano japonês, onde se denotam papéis sociais específicos de diferentes status. Podem ser citadas como exemplo as geishas, cuja imagem atravessa séculos tanto pela atuação performática, como por sua erotização — e, muitas vezes, prostituição (Stanley, 2013; Garon, 1993). Algumas permanências desse ofício podem ser vistas nas idols, presentes na indústria musical desde os anos 1970. No início da década de 1930, o Japão concebeu um modo diferente (e imperialista) de exploração sexual, criando a figura das chamadas ianfu (Yamasaki, 2014; Lie, 1997): termo largamente utilizado para referenciar às jovens que eram sequestradas de suas casas com promessas de oportunidades melhores e, no fim, eram encarceradas para satisfazer desejos masculinos. Sem qualquer direito de escolha, eram apartadas de tudo que conheciam e obrigadas a entregar seus corpos a homens desconhecidos. Era uma prática comum dos militares japoneses, que escolhiam suas vítimas nos países que haviam dominado. Não era o caso de Kaoru. Ainda que fosse tão jovem quanto muitas dessas mulheres, ela era japonesa e estava amparada por seu marido. Isso não impediu, contudo, que também se visse desagregada e objetificada em uma terra desconhecida. É importante pontuar que o uso do termo (traduzido como comfort woman) tem sido revisto, já que ele descreve a experiência sofrida pela mulher de forma eufêmica. Como observa Ahn, essa revisão tem sido convenientemente ignorada por muitos neo-nacionalistas japoneses (2008, p. 33).

chamado de verdade dessa forma. Ele trabalhou na oficina de marcenaria, encadernando documentos e fazendo a faxina do raio, época em que eventualmente cruzou com Josué Barbosa durante o serviço. Não chegaram a conversar: como Hideki falava muito pouco o português, era difícil manter contato com qualquer pessoa ali dentro. Talvez por isso se sentisse ainda mais sozinho do que a maioria de seus colegas de cela e corredores… Já faziam anos que ele não conseguia se expressar em sua língua materna e sentir-se compreendido de verdade por alguém.

Figura 30 - Serraria da Penitenciária do Estado. Fonte: Museu Penitenciário Paulista

Ontem era dia de visita, mas ninguém tinha ido até lá para vê-lo. Ele estava longe de tudo e todos que conhecia há 5 longos anos, período em que tentou se adequar a todas as regras da Penitenciária, pensando em sair o mais breve possível. Mas, conforme o tempo passava, essa possibilidade parecia cada vez mais distante. Enquanto via os visitantes indo de um canto ao outro, se aproximou, mergulhando em apelos: talvez eles pudessem ajudá-lo. Insistia para eles que jamais brigava com ninguém, pedindo muitas vezes por perdão. Ao se depararem com essa situação, os funcionários o colocaram em uma cela especial, onde ficaria para o observarem. Foi nessa cela em que, hoje, Hideki Kato foi surpreendido. Depois de amarrar o lençol nas grades da janela,

ele estava prestes a se enforcar — ato que, por sorte, foi impedido pela rápida ação dos guardas133. 3.10 O resfriado 18 de setembro de 1940 Manicômio Judiciário Franco da Rocha

Maria Eulália estava semi-desperta quando sentiu um peso sobre seu corpo. Naquela transição letárgica de um sono para o outro, ela demorou a identificar o que estava acontecendo… Seria o irmão tentando acordá-la para alguma coisa? Talvez alguém estivesse passando mal. Era comum que sua mãe sofresse com crises de vertigem, e seu pai também não tinha passado bem nos últimos tempos. Mas a figura que estava sobre ela não parecia querer apenas acordá-la — tampouco lhe dizer qualquer coisa. Aquele vulto escuro se aproximava de forma bruta, invadindo-a por baixo de sua camisola. Tomada pelo desespero, em poucos segundos ela se viu afundar sobre o lençol, afogada nos próprios gritos. Além da força usada para imobilizá-la, aquele homem usava de ameaças para impedir que ela resistisse: se não se entregasse, as dores que sentiria seriam muito piores. Ele não somente abusaria de seu corpo, mas também a obrigaria a se prostituir. Maria sentiu aquelas mãos apertarem violentamente seus braços, ombros e torso. Ao que parece, ele tornou-se ainda mais agressivo ao ver que ela não estava mais tomada pelo torpor e, por isso, não estava mais sob seu controle. Ao menos não totalmente. Nas tentativas de calá-la, aquele vulto apertou seu pescoço como se pretendesse asfixiá-la. Por um momento, Maria Eulália pensou que estivesse prestes a morrer; e talvez de fato tenha morrido um pouco naquela noite. Ainda que conseguisse impedi-lo de deflorá-la, sua vida parecia ter desabado no momento em que aquele homem subiu em sua cama. Ela tentou se desvencilhar de todas as formas possíveis, até que o ataque finalmente parou — e foi em sua fuga apressada que ela finalmente o viu com clareza. Por mais que evitasse assumir para si mesma que o tinha reconhecido, o homem que havia tentado violá-la era Julio César Silveira, seu próprio pai.

133 Continua na crônica 3.30.

Tudo começou em 1930, quando ele contraiu um resfriado que o deixou louco por 3 meses, doença apontada como o motivo de sua mudança nos últimos anos. Não se sabe se o evento daquela noite parou por ali: aquele tipo de ataque pode ter se tornado cotidiano naquela casa de Monte Aprazível, no interior de São Paulo. Como assume o próprio promotor do caso, é possível que Maria Eulália não tenha revelado tudo o que aconteceu. Em sua narrativa, seu pai cedeu aos seus protestos e não chegou a consumar o ato, o que passa a impressão de ter sido o único ataque desde 1930. Seria essa a verdade ou Maria queria apenas atenuar a pena que recairia sobre o seu pai? Caso tenha feito isso, seu motivo era o afeto que nutria por ele, ou o medo de possíveis represálias? Afinal, não era possível prever o que ocorreria após a denúncia e, se ele não fosse mantido preso, em breve retornaria à casa em que ela ainda vivia.

Quando ela já tinha atingido os 18 anos, a mãe e o irmão de Maria juntaram-se a ela em uma denúncia contra Julio César. Isso aconteceu em 27 de agosto de 1936, mas sua prisão ocorreu apenas em 2 de maio de 1939… Um intervalo em que ele não parece ter tido impedimentos para continuar convivendo com a vítima. Inicialmente, abriram um processo por atentado ao pudor, mas o promotor protestou contra essa acusação. "Desde que o fim do agente seja essa união sexual com a vítima", pontuou, "desaparece a figura do atentado ao pudor para surdir a da tentativa de estupro". E esse crime não ficou apenas no plano das intenções, pois o acusado no mínimo chegou a executar atos exteriores contra Maria.

Dentre as testemunhas do caso estava a vizinha Rosa, que contou que em muitas noites ouvia fortes barulhos da casa da família. Quando era chamada para ajudar, ela percebia que o causador daquela zoada era o próprio Julio César, a quem sempre via pronunciando palavras desconexas. Nessa época ela não teve conhecimento das denúncias em questão, das quais soube apenas quando eles já tinham se mudado para outro endereço. Foi aí que ouviu sobre as várias vezes em que ele tentou ter relações sexuais com sua filha. Até então, Rosa o via como um bom pai e bom marido, um cidadão pacato que não se dava ao vício da embriaguez. Ela só percebeu que havia algo de errado com suas faculdades mentais em 1933 e, nos últimos tempos, teve a impressão de que ele estava melhorando.

Outro depoente era Manoel, um lavrador de 25 anos que também vivia no município de Monte Aprazível, em Nhandeára. Se apresentando como o noivo da vítima na época dos ataques, Manoel conta que Julio César só concordou com aquela relação porque isso o ajudaria a concretizar os planos de deflorar Maria Eulália. Afinal, caso descobrissem que ela não era mais virgem, a culpa recairia sobre seu noivo. As intenções de seu pai foram o motivo para que, 3 meses depois, a própria Maria desmanchasse o noivado. Mesmo com todo esse pano de fundo, ele alegou o denunciado não estava muito certo do juízo já há uns 2 anos, mas que sempre o viu como bom homem: além de não ser dado à bebidas, brigas e valentias, era um grande trabalhador e chefe de família.

Frente às várias declarações de que ele “não regula bem” — estando até hoje um pouco variado, como diz a própria Maria Eulália — o promotor pediu um estudo meticuloso de Julio César. O objetivo era saber se o réu estava em condições de ser reconduzido à cidade de Monte Aprazível para passar por julgamento. Ao que parece, o processo correu de forma demorada, pois sua transferência para o Manicômio Judiciário134 ocorreu apenas em março de 1940… Quando a 1ª denúncia já completava

quase 4 anos.

As informações que chegaram aos psiquiatras pareciam ainda mais graves que as dos depoimentos135. "O réu, tendo em 1930 apanhado um resfriado do qual lhe adveio

uma perturbação mental, desde essa data tem procurado, sob ameaça de morte e

134 Conforme as informações do prontuário, o interno “se acha pronunciado como incurso nas penas do artigo 268, combinado com os artigos 13, 63 e 273, nº 4". Como consta na Consolidação das Leis Penais de 1938: “Art. 268 - Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena - de prisão cellular por um a seis annos. § 1.º - Si a estuprada fôr mulher publIca ou prostituta: Pena - de prisão cellular por seis mezes a dois annos. § 2.º - Si o crime fôr praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte”. “Art. 13 - Haverá tentativa de crime sempre que, com intenção de commettel- o, executar alguem actos exteriores que, pela sua relação directa com o facto punivel, constituem começo de execução, e esta não tiver logar por circumstancias independentes da vontade do criminoso”. “Art. 63 - A tentativa do crime, a que não estiver imposta pena especial; será punida com as penas do crime, menos a terça parte em cada um dos graus”. “Art. 273 - As penas estabelecidas para qualquer destes crimes serao applicadas com augmento da (...) quarta parte: 4.° si fôr ascendente, irmão ou cunhado da pessoa offendida; 5.° si fôr tutor, curador, encarregado da sua educação ou guarda ou por qualquer outro titulo tiver autoridade sobre ella. Paragrapho unico - Além da pena, e da interdicção em que incorrerá tambem, o ascendente perderá todos os direitos que a lei lhe confere sobre a pessoa e bens da offendida”.

135 A intenção aqui é sinalizar que, como nosso foco está no modus operandi da Assistência a Psicopatas, as informações que os psiquiatras detinham nos importam mais do que os detalhes obtidos no sumário da culpa. Afinal, os laudos e encaminhamentos foram definidos pela perspectiva deles, e não de um ator onisciente que tinha conhecimento de todas as informações sobre o caso.

espancamento, deflorar sua filha". Partindo disso, eles o examinaram sob diferentes abordagens — começando por seus antecedentes sociais, que não pareciam indicar nenhuma moléstia. Nascido em Ribeirão Preto, Julio César Silveira viveu parte de sua infância em Baguassú, mudando depois para a cidade de Tabapuan. Lá se casou aos 22 anos e teve 7 filhos, a quem sempre sustentou fazendo serviços agrícolas; primeiro na propriedade dos pais, depois em sua própria. Ele nega que tenha cometido atos antissociais ou que seja afeito ao uso de tóxicos. Sua história clínica também não indica antecedentes hereditários para neuropsicopatias, já que ele nasceu e evoluiu regularmente. Nenhum de seus filhos apresentou perturbações nervosas e mentais em qualquer época, apesar de 2 ou 3 terem nascido depois da doença que o acometeu em 1930. Desses, um faleceu.

Em um interrogatório feito na instituição, ele disse que suas perturbações sucederam a um desastre financeiro, também em 1930. Ele nem sequer menciona suas ameaças de prostituir sua filha — nem ele, nem os psiquiatras —, mas elas podem ter sido motivadas justamente por esse desastre financeiro… Quem sabe? No começo, diz que sentia intensa e duradoura cefaleia, dores no peito e febre, que duraram por cerca de 2 meses. Depois passou por um período em que não reconhecia pessoas, não podia trabalhar e se sentia sempre desanimado, parecendo ter atrás de si "um espírito". Seus filhos e esposa se tornaram responsáveis por trabalhar e sustentar a casa. Fosse dia ou fosse noite, sempre ouvia muito barulho dentro e ao redor da casa, era como se jogassem pedras ou como se os passarinhos cantassem o tempo todo para aborrecê-lo. Ele não tinha noção precisa do que fazia, nem sequer do que acontecia em seu próprio lar. Esse contexto o levou a procurar diversos recursos para tratamento: médicos, hospitais, curandeiros, sessões espíritas, mas ele só veio a ficar bom em 1937, quando esteve em tratamento médico em Macaúba. Julio César destacou que, ao dar entrada no Manicômio Judiciário, já não apresentava mais aqueles distúrbios.

Com 45 anos, o interno é um indivíduo de raça branca com pele morena, com o hábito externo longilíneo, 1,75m e 65 kg. Possui algumas cicatrizes nas pernas e pescoço, devido a antraz operado, e o globo ocular direito mostra-se proeminente (exoftalmo). Vê-se também o aumento do volume sub-palpebral bilateral, talvez

consequência de um edema crônico, o que motivou sua avaliação por um especialista em olhos das Clínicas Especializadas do Serviço de Assistência a Psicopatas.

Figura 31 - Seção de Oftalmologia das Clínicas Especializadas. Fonte: Pacheco e Silva, 1945

Os exames dos aparelhos circulatório, respiratório e excretor mostram algumas alterações, já o sistema nervoso (e os demais sistemas) não apresentam distúrbios.

Figura 32 - Características antropométricas de Julio César Silveira. Fonte: Prontuário n° 609

Em um parecer sobre o exame mental, os psiquiatras apontam que não foram verificadas quaisquer desordens mentais, fossem elas permanentes ou episódicas. Sua conduta foi boa e sua apresentação aos interrogatórios foi correta durante todo o período de internação. A exploração dos diversos setores psíquicos não mostrou apreciáveis alterações: sua atenção era sempre presente, não se viam distúrbios de percepção, a associação de ideias era regular e seus juízos lógicos mostravam uma capacidade raciocinante normal, com inteligência e nível cultural comum ao nível que pertence. Ele revelou sentimentos normais com relação à sociedade, família e o próprio Eu, além de manifestações úteis da vontade. Só a forma como se recorda dos fatos precisa ser assinalada: ele informa com precisão tudo que ocorreu antes de 1930 e depois de 1937.

As memórias desse intervalo de 7 anos são nulas em certos casos e vagas em outros; Julio César não se lembra nem mesmo se prestou declarações à polícia ou se esteve preso antes daquele ano. Ele diz que, por vezes, não reconhecia seus familiares, e recorda-se de que andou cometendo atos imorais no seio de sua própria casa. À noite, andava de uma cama à outra por conta dos ruídos que ouvia nos arredores… Mas não se lembra de ter tentado cópula carnal com sua filha. Quando soube disso por terceiros, disse que teve um sentimento de que jamais se esquecerá, pois se orgulha de ter sido sempre um homem honesto, que veio de uma família de boa moral. Ele admite que tenha tentado tais atos, mas apenas porque estava doente; se não fosse por isso, seria incapaz de fazê-lo.

Além dos exames, as peças do processo pareceram esclarecedoras para os psiquiatras. O crime ocorreu numa época em que as testemunhas e a própria vítima reconheciam que o réu apresentava distúrbios mentais, mas ele não possuía faltas anteriores. Esses distúrbios ocorreram depois de uma afecção febril — forte resfriado, segundo os depoentes, desenrolando em surtos mais ou menos graves: a diminuição da consciência (conhecimento real), perturbações da percepção (alucinações), do raciocínio e crítica (prováveis ideias delirantes), da vontade (hipobulia e impulsividade) e dos sentimentos (atos imorais contra os próprios filhos, irritabilidade). Pela alteração do estado de consciência e a dismnésia lacunar deste período, essas perturbações podem ser diagnosticadas como "surtos confusionais de origem provavelmente infecciosa". Todos os elementos observados reforçam a hipótese de um acometimento encefalítico