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O humor no espaço público privilegiado

No documento Humor na sociedade contemporânea (páginas 122-125)

Em momentos anteriores foi já discutido o facto de o riso ser uma aptidão humana presumida desde o aparecimento da espécie. Durante o capítulo anterior foi também estabelecida a presença comum da comédia em várias épocas e lugares, provavelmente até em todas as sociedades existentes desde o início da Humanidade, bem como a existência de interacções humorísticas quotidianas que provoquem esse riso.

A história da comédia revela que, pelo menos a partir da Antiguidade Clássica, em todas as sociedades o humor assume, debaixo de várias aparências, foros de participação no espaço público. Incidindo sobre os costumes (a vida privada) ou a política (a vida pública) ou sobre as interpretações mitológicas e religiosas (a outra vida), a comédia tem sido uma forma de participar na criação, organização e reconstrução intelectual das sociedades. A história da comédia como produto intelectual é também uma história dos seus produtores, criadores e programadores – e como tal, uma história de intelectuais.

No entanto, nem todas as civilizações ou sociedades organizadas aceitaram o humor e a comédia da mesma forma que estas são toleradas no ocidente contemporâneo. As autoridades políticas e religiosas têm enfrentado, ao longo de séculos, por vezes de forma bastante violenta, a intervenção satírica e humorística. Se o advento da modernidade tornou mais populares e aceitáveis a sátira e a paródia aos campos de poder, seja da perspectiva interna, seja da externa, é também verdade que apesar da sedimentação das democracias liberais alguns poderes continuam a olhar desconfiadamente para aqueles que observam o mundo com os filtros do humor. A abordagem cómica do quotidiano não parece alguma vez ter perdido completamente a sua popularidade, mas o olhar humorístico como abordagem discursiva inovadora e complementar tem sido alvo de debate ao longo dos últimos séculos.

A concepção, discutida mais adiante, de que os humoristas profissionais ocupam um lugar importante na arena mediática e se posicionam no campo cultural como figuras relevantes na interpretação dos discursos sociais, foi anacrónica e antecipadamente rejeitada por Platão: «Devemos deixar tais representações para os escravos ou estrangeiros contratados, que nenhuma atenção séria lhes seja prestada e que nenhum homem ou mulher livres sejam vistos a tirar daí algum ensinamento» [Leis: VII-816].

Se os sofistas gregos, com as suas técnicas oratórias retóricas, elevaram o grau de consciência da intervenção sobre o espaço público, o discurso público transformou-se, com o ateniense Sócrates, num pensamento mais centrado na observação crítica dos comportamentos sociais. É admissível formular uma comparação entre a postura interrogativa de Sócrates perante os seus concidadãos e a de um comediante em frente a um público [Morreall 2009]. Ambos questionam as simples evidências do mundo quotidiano, procurando novas perspectivas e

diferentes ângulos de análise a partir de um posto de observação ao mesmo tempo alienadamente distante e criticamente próximo.

A escola medieval, formada essencialmente por clérigos que carregavam nos ombros a tradição bíblico-aristotélica, tinha com o humor uma relação platónica. O riso seria para os loucos, a comédia, para os tolos. Aos homens dos livros caberia a reprodução de saberes e a transmissão de fé. O poder espiritual estava pouco desperto para o criticismo, muito menos se revestido de farsa e comicidade. Alguns dos principais fundadores da teologia cristão, como Agostinho de Hipona28 ou Tomás de Aquino, sem porem em causa o essencial dos fundamentos do Cristianismo, tiveram com o humor uma relação de bonomia intelectual. Agostinho [1955] via no riso uma forma de sociabilidade, Aquino [2006] encontrava-lhe uma virtude moral, espelhada na capacidade de usar o jogo como forma de relaxamento das tarefas que ocupam os indivíduos.

No mundo do humanismo tardo-medieval e renascentista, artistas e homens de letras recolocaram a dimensão terrena do homem no centro da sua criação, recriando quadros de sociabilidade entre os indivíduos comuns, os representantes do Estado e as autoridades religiosas. Os menestréis, poetas, dramaturgos, actores representavam em público - seja no palácio ou no teatro – as suas construções narrativas a partir das suas representações sociais e das suas percepções simbólicas do mundo que os rodeava. Os seus discursos sobre a realidade, mesmo que sob a forma de narrativa ficcionada, eram uma forma de intervenção pública que não deve ser ignorada.

Deveu-se a Petrarca a primeira ruptura com o medievalismo cristão, através da integração de elementos do classicismo pagão [Stock 2005]. Mesmo sem o estilo de paródia realista que caracterizava os seus contemporâneos Chaucer e Bocaccio, Petrarca defendia duas ideias fundamentais para uma possibilidade de cidadania e, consequentemente, de intervenção e participação, fossem elas graves ou lúdicas: a liberdade intelectual e um compromisso civil comum a todos os cidadãos [Sanders 1995; Asor Rosa 1996]. Erasmo questiona o afastamento do homem letrado dos assuntos espirituosos e a impossibilidade institucionalizada da coexistência entre o corpóreo riso e as outras dimensões elevadas e sisudas da vida: «Não seria muito injusto para com os homens de letras o proibir-se-lhes divertimentos que são permitidos a todas as outras pessoas?» [2000: 3]

A relação entre os diferentes papéis intelectuais representados pelos artistas e humanistas do Renascimento foi aproximada por uma construção ainda embrionária das distintas dimensões da vida humana. Não haveria ainda uma categoria social claramente definida que permitisse distinguir ou classificar a produção artística e intelectual, que vivia num limbo entre a autonomia do artista e a fidelidade do funcionário [Asor Rosa 1996].

28 A sua frase «[Deus], concede-me castidade e continência, mas não já» [Confissões, 8.17.7] pode ser

Na época do Iluminismo, no que diz respeito ao posicionamento social dos artistas, criadores e pensadores, surgiram algumas inovações que caracterizariam as sociedades europeias dos séculos XVII e XVIII. A mobilidade social e a integração das suas realizações nas relações de troca do mercado capitalista serão provavelmente as mais notórias. Como visto no capítulo anterior, os homens das letras e das artes assumiram posições políticas de confronto com o poder vigente, no teatro, na pintura e na literatura. O panfleto escrito no fim do século XVIII por Jonathan Swift29 [1996], onde se propunha a criação e venda de crianças das famílias mais pobres para posteriormente servirem de refeição às famílias mais ricas como solução para a pobreza na Irlanda, é simultaneamente um clássico da ironia literária e da intervenção política, mas também da ironia política e da intervenção literária.

A partir do século XIX, os intelectuais ganharam relevo e estatuto autónomo como grupo social, ainda que informalmente constituído. Como se discutirá no ponto subsequente, os intelectuais quase sempre se posicionaram de alguma forma crítica em relação ao mundo que os rodeava. Se entre os intelectuais existiam os revolucionários com vontade de criar uma nova sociedade e reformistas com o intuito de a melhorar, a intervenção humorística era muitas vezes contemplada desacertadamente como uma postura diletante, quando não ingénua, em relação às estruturas sociais e culturais existentes.

Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco são escritores que utilizam técnicas humorísticas como recursos estilísticos e narrativos, mas ninguém dirá que são comediantes. O discurso público era, nesta altura, ainda propriedade dos intelectuais reconhecidos – especialmente escritores – e como tal o discurso humorístico entrava na esfera pública quando os intelectuais recorriam aos seus mecanismos de estilo.

Além disso, e como já foi referido em capítulos anteriores, a centralidade do positivismo e da racionalidade do pensamento científico dominante, que legitimou as universidades como centros de produção intelectual, afastou o discurso humorístico da sua validação como sujeito autónomo de observação e crítica social. A crescente autonomização dos campos artístico, filosófico, científico e político contribuiu para o aparecimento e cristalização da figura do intelectual contemporâneo, a partir da segunda metade do século XIX.

Encontramos actualmente o humor como uma presença omnívora nos meios de comunicação de massa [Minois 2007]. Desde sempre, cada tecnologia inovadora acarretava e permitia uma nova forma de produzir humor. Desde as formas visuais da banda desenhada às rotinas radiofónicas até às sitcoms televisivas, o humor e a comédia souberam sempre adaptar-se às novas circunstâncias da realidade mediática. Esta diversificação estilística, no entanto, foi desfeita em pedaços com o aparecimento de todas as plataformas que têm sucessivamente integrado a world wide web [Shifman 2007].

29 Cujo título completo era A Modest Proposal for Preventing the Children of Poor People From Being a

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