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Um figurão – o bobo

No documento Humor na sociedade contemporânea (páginas 103-106)

Ao longo do trajecto histórico realizado nas páginas anteriores, raramente foi referida uma das figuras mais coloridas da história do humor, o bobo da corte. Essa opção não se deve a uma desvalorização ou subalternização da figura do bobo, mas, muito pelo contrário, por se considerar que a dimensão sociológica da instituição cómica que foi durante séculos a mais popular junto do poder merece uma atenção particular que não se deixe enredar pelos eixos temporais das correntes artísticas e literárias. Obviamente que, tal como as artes, também a actuação dos bobos era permeável ao espírito do tempo, mas é precisamente pelo interesse particular suscitado que se julga importante isolar o papel e a função que estes homens desempenharam e executaram em vários palácios no mundo inteiro das transformações ocorridas nas outras artes das letras e do espectáculo.

Como os bobos da corte foram uma figura proeminente nas cortes europeias, vários estudiosos se referem à sua presença como representantes das artes cómicas e da sátira, nomeadamente em trabalhos sobre o riso histórico [Sanders 1995; Minois 2007]. No entanto, o seu carácter generalista e de incidência ocidental convoca a presença do bobo para o meio de muitas outras personagens e autores que neste capítulo foram sendo também enunciados. É num trabalho de investigação sobre os bobos à escala global, que Otto [2001] conduz uma jornada à volta do mundo em busca de tais personagens. Apesar de nem sempre se apresentarem com chapéus e sininhos, os bobos, com as suas intervenções críticas e espirituosas, existiam em muitas partes do mundo medieval, desde as cortes europeias às da China e dos imperadores Mogul da Índia, chegando mesmo ao Médio Oriente e à América. Como a maior parte dos trabalhos conhecidos sobre bobos da corte estivera confinado à Europa [Billington 1986; Southworth 1998], Otto utiliza textos chineses nunca antes traduzidos para corrigir esta deficiência, ao mesmo tempo que olha para os bobos na literatura, na mitologia e no teatro. A autora revela bobos pouco conhecidos, realçando a sua influência humanizadora em pessoas com poder, colocando figuras históricas remotas sob um holofote mais idiossincrático e intimista com a ajuda de anedotas, factóides, citações, epígrafes e ilustrações.

Já ficara estabelecido que a figura do bobo se encontrava espalhada pela história social e pela geografia política da Terra [Otto 2001]. A tradição mais antiga conhecida de existência de bobos da corte vem da China. O bobo europeu tem antecedentes na figura dos loucos (ou dos tolos) da tradição clássica greco-romana [Minois 2007]. Às vezes fisicamente deficiente ou até com algum atraso cognitivo, o tolo clássico emergia de um estatuto social inferior, para a que não representasse uma real ameaça ao poder e à autoridade. Desta forma, o tolo podia desempenhar com certa impunidade o seu papel de falar francamente. Os tolos eram valorizados porque os detentores do poder se apercebiam da importância de assegurar um espelho crítico sobre as suas próprias fragilidades sem que este pudesse interferir ou mesmo afrontar os desígnios do poder instituído. Uma piada prévia podia evitar uma má prestação – ou uma figura de tolo – em público. Na Europa medieval, acrescentou-se um fato e uma

actividade performativa e o tolo transformou-se em bobo, conhecido pelas suas piadas rápidas e tantas vezes insultuosas. Quer na tradição europeia quer na asiática, os bobos da corte eram conhecidos pela liberdade de gozar com os governantes. No entanto, a incapacidade de fazer rir o governante, para além de provocar a sua fúria podia acarretar uma punição, se não mesmo a execução. Na tradição chinesa, o bobo acrescentava às observações cómicas alusões históricas e literárias. O bobo é um fenómeno universal, «não é um produto de uma era ou cultura particular» [Otto 2001: xxii]. Isto não significa que os bobos existiram em todos os tempos e lugares, mas que «as precondições para o aparecimento de bobos [ou equivalentes] são mínimas» [Otto 2001: xvii]. Embora alguns bobos trabalhassem como profissionais livres, percorrendo o território para divertir e entreter, historicamente os bobos ficaram ligados às suas performances junto das cortes e dos centros de poder. É o rei, o imperador, o senhor feudal que autoriza a actuação do bobo. É a protecção dos poderosos que permite ao bobo falar livre e corajosamente, ao contrário da vasta maioria dos outros súbditos. Como diz Otto, «o bobo da corte distinguia-se dos músicos, dos actores e outros artistas, estando isolado da multidão e fortemente identificado com o rei, o imperador ou outra pessoa de alto relevo político ou social, tendo acesso a muito mais privilégios de livre expressão e acesso imediato, em virtude das suas salientes características humorísticas e de frontalidade» [Otto 2001: 27]. A corte era desta forma essencial para o trabalho do bobo, ao promover a segurança indispensável a uma liberdade criativa e subversiva [Sanders 1995

]

. Apesar do papel e das características nas tradições europeia e asiática não serem absolutamente iguais, nem muitas vezes os próprios bobos entre si, existem algumas qualidades comuns reconhecíveis: a irreverência, a espirituosidade e uma relação próxima com o poder. A sua posição permitia-lhes poder troçar das autoridades estabelecidas (ainda que sem as pôr em causa) mas também os responsabilizava para questionar o que é aparentemente óbvio e surge aos olhos dos observadores comuns como a ordem natural das coisas.

Os bobos da corte eram figuras incontornáveis nas cortes medievais e renascentistas. O poder político estava fortemente consolidado e o bobo usava as palavras para transmitir mensagens humorísticas ou espirituosas sobre o contexto político e social do seu tempo. As suas ferramentas eram os ditos espirituosos e a crítica irónica, muitas vezes até com sarcasmo e cinismo, a arma dos que não têm poder [Sanders 1995]. Os bobos mais talentosos conseguiam agarrar a audiência com técnicas de entretenimento que incluíam tocar instrumentos musicais, dançar, fazer acrobacias e pantominas, truques vocais, trava-línguas bem como, claro, histórias satíricas e piadas [Otto 2001]. Uma vez que não tinham voz no real jogo do poder, os bobos tinham a possibilidade de dizer a verdade aos que realmente detinham esse poder. Como confidentes reais, os bobos tinham muitas vezes o respeito dos poderosos de quem dependiam, pela diferenciação entre uma naturalidade subversiva e uma artificialidade deferencial dos outros súbditos que existia nas cortes europeias. Como pequena nota lateral, é interessante conhecer um papel secundário do bobo, que não raras vezes exercia como

curandeiro. Conforme fora exposto na discussão do conceito de humor, os médicos medievais acreditavam que a saúde humana era controlada por quatro fluidos, causadores de quatro estados emocionais [Burton 2014], e entre charlatanices, o riso era considerado terapêutico. As casas de poder valorizavam uma ligação com estes actores-personagens que, por entre as piadas, apresentavam uma visão particular e não raras vezes importante para quem mandava. Regan, personagem de Shakespeare, exclama que «os bobos provam muitas vezes serem profetas» [Rei Lear, acto V, c. 3].Muitas verdades são ditas a brincar e muitas mentiras em tom sério. «Um homem pode dizer toda a verdade no jogo e na diversão», escreveu Chaucer nos seus Contos da Cantuária. Na história da literatura e do teatro são recorrentes as reencarnações dos bobos, quer em figuras estereotípicas (como os zanni, da comedia

dell’arte), quer em personagens específicos (como Falstaff, de Shakespeare), o que permite

aos autores uma liberdade de intervenção na narrativa sob o escudo da tolice. Os bobos teriam também a faculdade de agir livremente sem os constrangimentos impostos aos restantes membros da corte. Como afirmou o cómico norte-americano Robin Williams, «no palco somos livres. Podemos dizer e fazer coisas que se fossem ditas ou feitas em qualquer outro lugar seríamos presos»20. Para um bobo, estes aforismos eram vitais. A sua vida – entendida literalmente no sentido biológico ou metaforicamente como vida profissional – dependia do cumprimento daquela regra. Para dizer as verdades, era preferível fazê-lo a brincar.

20 Frase atribuída a Robin Williams em várias colectâneas de citações, sem nunca referir o tempo ou o

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