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CAPÍTULO 1 – POPULAÇÃO NEGRA E EDUCAÇÃO

1.2 O ideal de branqueamento

Minha avó, ela diz que quer casar de novo: casar com um francês pra clarear a família. Quando a gente (as netas) está namorando, ela pergunta se é preto ou branco. Diz que tem que clarear a família. O clarear não é só a questão da pele, porque o negro é o símbolo da miséria, de fome. De repente clarear é também a ascensão econômica e social. Se for um cara negro que tenha condição econômica e social boa, tudo bem. Tem um lance de cor, mas no sentido de que cor, preta lembra miséria (SOUZA, 1983, p. 28).

Por meio da fala de Carmem, entrevistada por Souza, é possível perceber a forma como o ideal de branqueamento está sempre presente na vida do indivíduo negro, apontando caminhos para a ascensão social e determinando, até mesmo, suas relações afetivas. A elite branca criou o ideal de branqueamento com o objetivo de manter os privilégios adquiridos durante a escravidão, mas que vem sendo imposto como um problema do negro que, “descontente e desconfortável com sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais” (BENTO, 2002, p. 25).

Uma das aspirações do Brasil durante o século XIX foi a constituição de uma nação e, para que isso fosse possível, muitos reformadores buscavam a homogeneização da população através da miscigenação direcionada para o branqueamento. Além disso, o medo de que a maioria da população – formada por negros e mestiços – tomasse o controle do país, fez com que surgissem diversas soluções, entre elas, o incentivo à imigração de povos europeus, garantindo assim, uma mistura racial que, a longo prazo, provavelmente resultaria numa população branca (AZEVEDO, 2004).

Acusadas de retardar o progresso brasileiro devido à sua natural inferioridade, falta de moral e incapacidade para o trabalho livre, as populações negras são descritas por muitos autores brasileiros, que defendem a imigração de povos brancos, como um empecilho à constituição de uma nação branca e civilizada.

Aurelino Cândido de Tavares Bastos (1839-1875), formado em Direito e eleito deputado em 1862, acreditava na inferioridade racial dos africanos e a utilizava para justificar o atraso do país. Através do pseudônimo “O Solitário”, Tavares Bastos escreve

diversas cartas, nas quais defende a vinda de imigrantes europeus que, segundo ele, trariam progresso e civilização: “Para mim, o imigrante europeu devia ser o alvo de nossas ambições, como o africano o objeto de nossas antipatias” (BASTOS, Cartas do Solitário, p. 91 apud AZEVEDO, 2004, p. 55).

Mostrando-se a favor da imigração europeia, o positivista Luis Pereira Barreto (1840-1923) não condenava o regime escravista, mas sim, as consequências da presença africana no Brasil, tida por ele como uma raça inferior, composta por semibárbaros. Na tentativa de atrair imigrantes, ele propunha uma série de políticas, tais como: “a separação da religião do Estado, a grande naturalização, o casamento civil, a secularização dos cemitérios, a elegibilidade dos não-católicos”, bem como um controle social sob as populações negras (AZEVEDO, 2004, p. 59).

Para garantir que o branqueamento da população se desse de forma homogênea, Silvio Romero (1851-1914) propôs que os imigrantes europeus fossem distribuídos por todo o território brasileiro, principalmente nas áreas onde se concentravam um grande número de negros e mestiços, como os Estados do Maranhão (MA) e Espírito Santo (ES), por exemplo. Se autoclassificando como um darwinista social, Romero disseminava por meio de seus textos, a hierarquização das raças e a purificação étnica:

Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostra-se puro e belo como no velho mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para tal resultado: - De um lado a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a emigração européia (AZEVEDO, 2004, p. 60).

Segundo Seyferth (1996), o processo de imigração ocorrido no Brasil do período do Império ao início da República se deu da seguinte forma:

1818 – vinda de imigrantes alemães para o Nordeste (NE) e de suíços para o Rio de Janeiro (RJ). Ambos tinham como objetivo estabelecer uma nova forma de produção, baseada nas pequenas produções e diversificação de produtos. Ocupação semelhante, com vistas ao estabelecimento no território nacional, também ocorreu no litoral de Santa Catarina (SC) e Rio Grande do Sul (RS), feita por açorianos;

1824-1850 – estabelece-se a ocupação na região Sul (S) do país devido o fracasso da colonização no NE, mas o número de imigrantes ainda se mostra reduzido;

1850 – na tentativa de atrair a imigração europeia, o governo de então promulga a Lei nº. 601, “que regulamentou a concessão de terras públicas e tornou mais fácil a expedição de títulos de propriedade para estrangeiros”;

1880-1920 – aumenta o fluxo de imigrantes no Brasil e a questão racial ganha mais destaque na constituição de um ‘tipo’ nacional.

Além dos incentivos para atrair imigrantes europeus, foram utilizados muitos artifícios de marketing visando valorizar as riquezas naturais do Brasil e construir a falsa ideia de que no país não havia conflitos raciais. Tais aspectos foram divulgados também por jornais direcionados à população negra nos Estados Unidos da América (EUA), o que acabou atraindo grupos de ativistas que viam na imigração uma forma de estabelecer repúblicas negras fora de seu país (RAMOS, 1996).

Em 1921, um grupo da cidade norte-americana de Chicago, interessado em estabelecer uma colônia no Estado do Mato Grosso (MT), criou a companhia Brazilian American Colonization Sindicate (BACS). Mas ao saber que se tratava de imigrantes negros, denominados por Ramos (1996, p. 64) como “imigrantes indesejáveis”, o governo brasileiro, através da diplomacia, tratou de impedir a entrada destes no país, pois além de ser um empecilho à ideologia do branqueamento, acreditavam que trariam também o ódio racial que supostamente não existia no Brasil.

Para evitar novas tentativas dos “imigrantes indesejáveis”, vários deputados passaram a propor projetos que restringiam a entrada de determinados grupos no Brasil, como aquele de Chicago. Os deputados “Cincinato Braga (SP) e Andrade Bezerra (PE) [...] apresentaram ainda em 1921 um projeto de lei à Câmara com apenas dois artigos, cujo conteúdo era a proibição, em caráter absoluto, da entrada de imigrantes negros no país” (RAMOS, 1996, p. 65).

Sendo assim, o medo de que o Brasil se tornasse um país controlado por negros, que até então constituíam a maioria da população, fez com que o governo investisse na imigração de povos europeus, tidos como civilizados e símbolo do progresso.

A partir de 1930, o discurso que visava constituir uma população homogênea e branca foi substituído pelo mito da democracia racial, cujo objetivo é a valorização da mestiçagem e a construção de uma nação heterogênea onde não existem conflitos raciais.

Ao que tudo indica, o termo democracia racial foi utilizado “pela primeira vez por Artur Ramos, em 1941, durante um seminário de discussão sobre a democracia no mundo pós-facista”, sendo posteriormente utilizado por Roger Bastide, ao publicar um

artigo no Diário de São Paulo, em 31 de março de 1944, e por Wagley, em 1952, “na introdução ao primeiro volume de uma série de estudos sobre relações entre negros no Brasil, patrocinados pela UNESCO” (GUIMARÃES, 2002, p. 33- 34).

Para Gomes (2005), o mito da democracia racial pode ser compreendido como sendo:

Uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo afirmando que existe entre esses dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidades e tratamento. Esse mito pretende de um lado negar a discriminação racial contra os negros no Brasil e, de outro lado, perpetuar estereótipos, preconceitos e discriminações sobre esse grupo racial (GOMES, 2005, p. 57).

Embora não seja o único responsável pela disseminação do termo “democracia racial”, Gilberto Freire, em sua obra Casa Grande & Senzala, ao interpretar a escravidão como um evento nos quais os personagens principais eram os senhores bondosos e os escravos submissos que conviviam harmoniosamente, transmite a ideia de que a escravidão brasileira tenha sido a mais humana e suportável quando comparada a outros países que também vivenciaram a questão.

A ‘suposta’ harmonia, aliada à ausência de mulheres brancas foi, segundo Freyre (1980), uma justificativa para que o homem branco mantivesse relações sexuais com mulheres negras, contribuindo assim para a miscigenação.

[...] o problema do negro, entre nós, está simplificado pela miscigenação larga que alargou tudo, só não chegando a um outro resto mais só e isolado de quilombo ou a um outro grupo ou reduto de brancos mais intransigentes nos seus preconceitos de casta ou de raça (FREYRE, 1980, p. 649).

Freyre considerava a mestiçagem como motivo de orgulho nacional, sem levar em consideração a exploração sexual sofrida pelas mulheres negras e indígenas. (GOMES, 2005, p. 59).

A ideia de que o Brasil vivia numa democracia racial conseguiu ultrapassar as fronteiras nacionais, dando a entender que aqui não havia preconceito racial e discriminação. Assim, tal imagem tornou-se aceita por grande parte população brasileira, dificultando o diálogo e as ações dos movimentos em prol do combate ao racismo e à aceitação e implementação efetiva de políticas públicas educacionais com viés racial.