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O IMAGINÁRIO (RESERVATÓRIO/MOTOR) E SUAS TECNOLOGIAS

Juremir Machado da Silva afirma a realidade do imaginário e a imaginariedade do real. O autor acredita que “o homem só existe na realidade imaginal” e que “o ser é movido pelos imaginários que engendra” (2012, p. 7). De acordo com Silva, “o real como projeto não passa de um ramo do imaginário, universalizável discursivamente” (1999, p. 133). Na esteira de seus predecessores, observa que o termo não significa apenas uma coleção de imagens e enfatiza seu aspecto coletivo, descrevendo-o como “uma rede etérea e movediça de valores e de sensações partilhadas concreta ou virtualmente” (SILVA, 2012, p. 9).

Apesar de reconhecer a predominância da esfera coletiva, compreende o imaginário em duas dimensões (singular e plural): “Todo o imaginário é uma

8 A parte do diabo, segundo Maffesoli (2004), é um lado obscuro, natural e fundamental de tudo o que é vivo ou vívido. Vamos estudá-la mais profundamente no segundo capítulo da tese.

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construção anárquica, ego-ísta, feita coletivamente, mas sempre irredutível ao coletivo, assim como feita individualmente, mas jamais passível de redução ao indivíduo” (2007, p. 251). Percebemos, no olhar de Silva, uma forte influência do princípio hologramático de Morin (2008b, p. 113): a parte está no todo que está na parte. Não obstante, talvez, uma de suas concepções mais férteis do termo, esteja ligada à ideia do imaginário como um reservatório/motor:

Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo. [...] Motor, o imaginário é um sonho que realiza a realidade, uma força que impulsiona indivíduos ou grupos. Funciona como catalizador, estimulador e estruturador dos limites e das práticas (SILVA, 2012, p. 11-2).

Sob esse prisma, Once Upon a Time seria um sonho do real que a sonha. O público parece seduzido por seu discurso. Vemos na ficção seriada feérica signos com os quais a sociedade se identifica. Personagens e tramas podem traduzir pulsões, ao mesmo tempo em que impulsionar. Os contos de fadas, em nosso olhar, têm potência para irrigar as bacias semânticas da contemporaneidade.

Assim, complementando a visão de Maffesoli sobre a diferença entre imaginário e cultura, Silva (2012, p. 16) coloca que a cultura é um dado objetivo enquanto o imaginário é a subjetividade compacta e inexorável, mas “a objetividade da cultura diluiu-se nas águas pesadas da atmosfera imaginal. O espiritual incide sobre o material. Confundem-se num movimento de atração/repulsão permanente”.

Também, sobre a relação entre imaginário e ideologia, o autor acrescenta que, enquanto a ideologia está ligada à explicação, o imaginário só pode ser pensado por meio da compreensão e da empatia: “A ideologia vincula-se ao aparelho da manipulação; o imaginário, às tecnologias da sedução” (2012, p. 20). Nele, “há autonomia dispersiva, aglutinação por caogênese, moldagens disjuntivas, apropriações inusitadas e elaborações estilísticas. Vale repetir: o imaginário é um estilo” (2012, p. 57, grifo nosso). E se alimenta de oximoros: “a rede imaginal funciona a partir da dialógica condicionamento/ruptura, permanência/mudança, influência/resistência, pressão/bloqueio, fluxo/engarrafamento” (2007, p. 252). Assim, o imaginário é aberto, inclusivo, espontâneo, barroco, saturado: “por força de seu caráter torrencial, os sentidos se alastram, ramificam, bifurcam, extraviam-se” (2012, p. 48). Mesmo estimulado por tecnologias, ele mantém “uma margem de independência, de

mistério, de irredutibilidade, de fictício, de inútil, nunca se reduzindo ao controle absoluto do agente tecnológico emissor” (2012, p. 57).

Destarte, antes de passarmos a questão da técnica envolvida nos processos do imaginário, podemos resumi-lo, na compreensão do autor, a partir dos pressupostos dialógicos que ele apresenta (2012, p. 89): todo imaginário é real e todo real é imaginário; todo imaginário é texto e hipertexto, os quais também são constituídos pelo imaginário; todo imaginário é narrativa e todo real, uma narrativa imaginal. A partir dessa perspectiva, acreditamos ter elementos relevantes para pensar as relações entre a narrativa seriada feérica Once Upon a Time e o imaginário da sociedade hodierna.

Em consequência disso, o autor coloca que toda narrativa de imaginários é fabulação e levantamento, constituindo, simultaneamente: uma inscrição no imaginário; um novo texto, que é parte da teia do hipertexto, um pretexto e um contexto; uma nova narrativa imaginal, obra fechada/aberta; e, uma construção “arbitrária” que comenta o texto do imaginário em foco (SILVA, 2012, p. 89).

Tendo sido compreendido, podemos começar a esboçar o entendimento das tecnologias do imaginário: se todo imaginário é rede, “toda tecnologia é um ponto da rede, um terminal de entrada no sistema, um nó de conexão” que funciona por input/output permanentes (SILVA, 2012, p. 97). O autor as descreve como “dispositivos (elementos de interferência na consciência e nos territórios afetivos além e aquém dela) de produção de mitos, de visões de mundo e de estilos de vida” (2012, p. 22).

Assim, elas se manifestam em diferentes formas: “ora se apresentam como meios (rádio, televisão), ora como procedimentos, técnicas ou disciplinas (publicidade) ou, finalmente, como formas de expressão (literatura)” (SILVA, 2012, p. 69). Evidenciamos que, como produto midiático, Once Upon a Time reúne todas essas características. Ainda assim, as tecnologias do imaginário não funcionam por meio da imposição, posto que não se configuram sob o signo do poder e do controle. Operam, no entanto, por meio da adesão, do consentimento, comportando um interlocutor (ator/objeto) capaz de recusar-se ao jogo. São capazes de desviar ou assumir o controle, inscrevendo-se no território anárquico da potência. Constituem, pois, formas de materializar o etéreo e transformar a atmosfera de uma época em corrente de um tempo: operam cristalizando o patrimônio afetivo, imagético, simbólico. “São magmas estimuladores das ações e produtores de sentido. Dão significado e impulso, a partir do não racional, a práticas que se apresentam também racionalmente” (SILVA, 2012, p. 47).

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Dessa maneira, as tecnologias do imaginário, em geral, e, particularmente, nosso objeto de pesquisa, são importantes fontes de informação sociológica, alinhadas com a perspectiva compreensiva9, que influencia muitos dos autores que trouxemos para esta pesquisa, mas, principalmente, a nós mesmos.

Assim, em um exercício de relativização do papel da técnica na comunicação hodierna, Silva (2012) abre espaço para a noção de tecnologias do imaginário. Acredita que, na esteira da revolução informática, com o surgimento da internet e a explosão das novas tecnologias da comunicação, seja necessário um olhar matizado sobre o tema:

Passa-se do tudo é controle ou do tudo é instrumento ao jogo complexo da apropriação/distorção. Reinventa-se o olhar. Em uma sociedade totalitária, indiscutivelmente os meios de comunicação são apropriados pelos donos do poder como tecnologias de controle. Ainda assim, restam brechas. Com as novas tecnologias, o controle torna-se potencialmente mais eficaz e mais difícil. Surgem fissuras por todos os lados. Nas sociedades democráticas, da mesma forma, o controle pode ser ampliado (câmeras por toda parte), mas prevalece o caleidoscópio. Por tudo isso, hoje é mais correto falar-se em tecnologias do imaginário, que não servem apenas à razão (intelecto, inteligência), mas também ao sensível (coração, lúdico, afetivo, onírico, fantasias) (SILVA, 2007, p. 248).

Para Silva (2007, p. 250), somos o que fazemos da técnica e também o que ela faz de nós – manipuladores e manipulados (ou melhor, manipuláveis). O poder da emissão é relativizado, levando em conta a potência da recepção na comunicação contemporânea. Não vivemos nem na hipnose completa nem na autonomia absoluta, há um meio termo para refletirmos sobre os produtos das diversas telas, ondas sonoras e páginas impressas. E essa análise pode ser realizada a partir da compreensão dos meios e das narrativas (e, neste trabalho, OUAT) como tecnologias do imaginário, capazes de traduzir o espírito do tempo.

Já houve, na era do rádio, com o nacional-socialismo, um espaço profícuo para se teorizar sobre as tecnologias do controle. Nos anos 1960, o marxismo estimulou a reflexão sobre as tecnologias da crença. A Teoria Crítica frankfurtiana pensou, décadas após, sobre as tecnologias do espírito/mente. Todas elas colocando a técnica (manipulatória) sob suspeita. No extremo oposto, atualmente, há autores que acreditam no poder de emancipação do homem por meio da tecnologia e o pecado dessa ponta

9 Nosso método de pesquisa, a Sociologia Compreensiva, será abordado, pormenorizadamente, no quarto capítulo da tese.

seria, segundo o autor, a ingenuidade de pensar que podemos ser os senhores da técnica (SILVA, 2007, p. 248). Nem frenesi caricato, nem pessimismo leviano.

Logo, a noção de tecnologias do imaginário pretende, ao mesmo tempo, “superar o reducionismo da noção de indústria cultural e englobá-la, permanecendo parte dela, mas enfatizando a margem, o ruído, em relação à manipulação, assim, como a ‘adesão’ em oposição à imposição” (SILVA, 2007, p. 250). Ademais, as tecnologias do imaginário funcionam em consonância com o princípio de auto-eco-organização do pensamento complexo, que prevê autonomia e dependência relativas (MORIN, 2000, p. 28). São tecnologias afetuais, “de assimilação consentida de valores e de práticas efêmeras”, cujo preço da adesão é o prazer imediato (SILVA, 2012, p. 25-7).

Isso posto, para visualizarmos de maneira mais nítida as diferenças e as aproximações entre as formas de olhar para a tecnologia, trazemos o quadro proposto por Silva (2012, p. 60):

Quadro 01: Funções das tecnologias

Crença Espírito Inteligência Imaginário

Apassivadora Apassivadora Propulsora Estimuladora

Manipuladora Manipuladora Cognitiva Cognitiva

Valorativa Judicativa Intelectual Afetiva

Catequizadora Persuasiva Indutora Sedutora

Ideológica Política Racional Cultural

Racionalizadora Cientificista Abstracionista Concreta

Histórica Universal Planetária Local

Verdade Pragmática Eficácia Verossímil

Propaganda Educação Pesquisa Publicidade

Fonte: Silva (2012, p. 60)

Didático e autoexplicativo, esse quadro nos permite uma comparação entre as diferentes tecnologias, em diversos aspectos. As transformações da comunicação solicitaram metamorfoses nos modos de ver e pensar os meios (formas pelas quais ela se processa). Por conseguinte, um olhar seminal para o campo depende de uma postura epistemológica que leve em conta, além do aspecto racional, a subjetividade dos processos próprios do contexto pós-moderno de mudança no estatuto dos saberes, conforme as reflexões de Lyotard (2011). Contudo, para uma contemplação profícua, não podemos prescindir de pensar nos possíveis efeitos irônicos das

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tecnologias do imaginário, o lado obscuro para o qual também devemos atentar nos processos de pesquisa, em especial, no âmbito da comunicação:

A humanidade passou da inoculação à inspiração. O imaginário prefere o lúdico à catequese, mesmo se ambos produzem veneração. Assim, o lúdico consome o lúcido e a razão atmosférica sufoca a razão argumentativa. Mede-se a pressão do mundo com outros instrumentos. O império das tecnologias do imaginário não produz necessariamente um mundo melhor, emancipado, livre do lixo cultural, autônomo, rico (isso ainda é imaginário iluminista), nem o melhor dos mundos (utopia marxista e cristã), mas, em certo sentido, algo mais radical, extremo, incontornável: a submissão voluntária (adesão), subjugação consentida (audiência), dominação suave, limpa e regulada (consumo), conivência política e legítima (democracia formal). As tecnologias do controle nunca imaginaram tanta eficiência (SILVA, 2012, p. 71, grifo nosso).

Uma figura que pode ilustrar esse “algo mais radical” descrito pelo autor, é o fã de séries como OUAT. Com o avanço das narrativas transmídia10 (JENKINS, 2009), ele não é apenas um espectador inerte, mas um consumidor multiplataforma, um comentador, que se reúne a outros, física ou virtualmente, para vibrar em comum, tanto no que concerne ao elogio quanto à crítica do objeto. Mais ainda, um criador que se apropria e distorce o universo ficcional, produzindo fanfics11, fanarts12, fanvideos13, fanzines14 e outras formas de manifestação e compartilhamento de um gosto. Ainda assim, as tecnologias do imaginário são melhores e piores do que aquelas que as precederam: melhores, porque não se baseiam na simulação, mas na transparência do jogo. Piores, na medida em que remetem à paixão, porque, conforme Silva (2012), uma vez vencida a resistência do outro, tudo se transmuta em avalanche, torrente e devastação.

Como características da pós-modernidade, vemos, portanto, que prestigiam o dionisíaco, o lúdico e o estético (em oposição aos valores modernos). Dão conta da vontade de fruição fluida que remete à ideia de “imperativo atmosférico” e estimulam “o êxtase pelo êxtase no extraordinário do ordinário” (2012, p. 65). São

10 Para Henry Jenkins (2009, p. 49), a narrativa transmidiática refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias – uma estética que faz novas exigências dos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento. “A narrativa transmídia é a arte da criação de um universo”.

11 Fanfic é uma abreviatura para fan fiction, termo que Jenkins (2009, p. 44) define como ficção de fã. A convergência de meios na contemporaneidade impacta a maneira como consumimos esses meios: “E fãs de um popular seriado de televisão podem capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir episódios, discutir sobre roteiros, criar fan fiction (ficção de fã), gravar suas próprias trilhas sonoras, fazer seus próprios filmes – e distribuir tudo isso ao mundo inteiro pela Internet”.

12 Fanart é um termo de língua inglesa que designa as artes gráficas criadas e compartilhadas por fãs. 13 Termo de língua inglesa que, por sua vez, designa vídeos produzidos e compartilhados por fãs. 14 Termo derivado da expressão inglesa fanatic magazine, designa publicações, sem fins comerciais, produzidas e compartilhadas por grupos de fãs.

movidas e moventes da sensação e da sensibilidade, inserindo-se num panorama “de assimilação consentida de valores e de práticas efêmeras” (2012, p. 25-7), cujo preço da adesão é o prazer imediato.

À vista disso, se as tecnologias do imaginário atuam, como argumenta Silva, “na fibrilação erótica do aparelho simbólico” dos indivíduos e das coletividades, “quem quiser tomar o poder simbólico, tomando de assalto a fortaleza imaginal”, deverá ser capaz de “excitar a membrana imaginária e de produzir sentidos novos na velha cápsula da fabulação social” (2007, p. 252). Parece-nos que os contadores de histórias, e, mais tarde, os produtores das narrativas cinematográficas e seriadas, souberam aproveitar-se dessa premissa. O passado é relido, a história é recontada. Alguns personagens nunca saem de moda, sofrendo apenas atualizações no “sistema operacional”, ao gosto do estilo do tempo.

2 DO MODERNO AO PÓS-MODERNO: CONSIDERAÇÕES ESTILÍSTICAS

A tensão entre aquilo que se deve ser e aquilo que se é permanecerá sempre igualmente forte. Jean-François Lyotard

A “climatologia” da qual tento delinear os contornos, nos ensina que a verdade das coisas, no caso a mudança climática, é resultante de todos esses batimentos de asas de borboletas, na essência inaudíveis, mas cujas consequências

estão longe de serem desprezíveis. Michel Maffesoli

Para falarmos dos contos em série precisamos entender os contextos, ou melhor, o estilo do tempo em que estão inseridos. E é a partir dessa noção que inauguramos nosso segundo capítulo. Pois, se o imaginário é uma aura, é a aura de um corpo incorpóreo, o corpo do tempo. Se é uma atmosfera, podemos compreendê- lo ao estudar o clima social. E, se é cimento, é porque une as tribos15 nessas dimensões. De acordo com Maffesoli (2005, p. 105), “nada escapa à ambiência de uma época, nem mesmo os que creem ser completamente independentes”.

Assim, mesmo as histórias mais fantasiosas dizem respeito, de um modo ou outro, ao momento em que estão inseridas. Compreendemos, portanto, Once

Upon a Time como parte do todo do estilo do tempo; uma vez que, conforme Legros

et al. (2007, p.147), os elementos imaginários das histórias de ficção são essenciais, ao evocarem as “angústias sociológicas da época e podem nos ajudar a compreender certos comportamentos e certas realidades sociais”.

Eis porque nos parece tão importante o aspecto social do imaginário. Ele se confunde com a ambiência, que, para Maffesoli (2005), é a condição sine qua non da vida em sociedade. O termo que o inspira é o Zietgeist ou, também, espírito do tempo, cuja pertinência está em sua associação com a ideia do ar que respiramos e dos vapores coletivos. O imaginário é o clima, e Maffesoli sustenta que a etimologia da palavra atmosfera já ilustra: “atmos designa o vapor que pode submergir, que é impossível de dominar e do qual é bem delicado abstrair-se” (2012, p. 29).

15 No decorrer deste capítulo, explicaremos mais pormenorizadamente o que entendemos por tribo/tribalismo.

O estilo é o caráter essencial de um sentimento coletivo. Ele é a sua marca específica. No sentido estrito do termo, torna-se uma forma englobante, uma “forma formante”, que dá origem a todas as maneiras de ser, costumes, representações, modas diversas pelas quais se exprime a vida em sociedade. Evidentemente, e lembro aqui o que já disse sobre as transições imperceptíveis, não é nítida a distinção entre estilos, embora se possa fixar limites precisos, que são pura convenção. Na realidade há contaminações, superposições (MAFFESOLI, 1995, p. 26, grifo nosso).

Se a configuração escreve e circunscreve a época, ela é formada de uma multiplicidade de “pequenas coisas” (MAFFESOLI, 2005, p. 106) ao lado das estruturas macroscópicas, de forma que a retroalimentação entre elas é o que determina a forma de viver individual, ao mesmo tempo em que cadencia o que o autor chama de respiração social. Assim, o um só é se for em relação ao outro.

Os oximoros parecem ser figuras válidas (senão a única alternativa) para compreendermos o tempo em curso, em nossa pretensão despretensiosa de tocar essa atmosfera (objetiva e subjetiva). Justificamo-nos, através de Maffesoli (2005, p. 107), que, aderindo propositadamente à ambiguidade e ao complexo, argumenta que sua perspectiva “apresenta a vantagem de ultrapassar a ‘separação’ característica do pensamento ocidental que levou ao infinito as dicotomias”, ao mesmo tempo em que “enfatiza que cada elemento tem o seu lugar na estruturação e na compreensão do real”.

Desse modo, também os estilos são heterogêneos, repousando, muitas vezes, sobre tendências contraditórias (1995, p. 27). O espírito do tempo acompanha os movimentos de uma bacia semântica, desde o escoamento à fase dos deltas e meandros. Um estilo nasce, cresce e satura, dando lugar a outro, de maneira que a sociedade possa se beneficiar, equilibrando-se nesse movimento. No decorrer da história, há uma alternância entre estilos sucedâneos, chamados, por Maffesoli (2012), de períodos de dominância estática e períodos de dominância dinâmica.

A rubrica dos primeiros é o instituído: “Instituições sociais estáveis, Estados- Nações bem delimitados, ideologias bem circunscritas no que [...] Lyotard chamou de grandes narrativas de referência e, do início ao fim, o indivíduo com identidade tipificada e intangível”. Por outro lado, há épocas em que prepondera o instituinte. Nelas, o vir a ser é fundamental: são tempos de fragmentação das instituições sociais, em que o Estado-Nação é afetado pelos diversos localismos, e temos o fim das narrativas de referência. “Há tantas tribos quantas forem as pequenas ideologias

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portáteis e, transversalmente, o estilhaçamento do indivíduo em pessoa plural”

(MAFFESOLI, 2012, p. 72-3, itálico do autor e negrito nosso16).

Ao recente período de predomínio do instituído chamaremos de modernidade. Para denominar o estágio do momento presente, em que começa a prevalecer o instituinte, adotaremos a visão maffesoliniana e lyotardiana, de pós- modernidade17. No primeiro, conforme Maffesoli (2012), há uma dominância estática, ao passo que, no segundo, prevalece a dinâmica, o eterno vir a ser. Nas histórias humanas há um equilíbrio regular entre esses períodos, o que nos leva a retomar a noção de tópica sociocultural, abordada no capítulo anterior.

Admitindo-se uma tal hipótese, não é de espantar a retomada do imaginário. Este, em uma perspectiva holística, restaura o equilíbrio perdido, ao

reinvestir estruturas arcaicas que se acreditava ultrapassadas e ao recriar

as mitologias que irão servir de liame social. A explosão das imagens está aí para prová-lo. Graças a elas, as sociedades reveem e assim recuperam uma parte de si mesmas, das quais tinham sido frustradas por uma modernidade essencialmente realista (1995, p. 42).

No livro A contemplação do mundo, Maffesoli sustenta que, “assim como se pode falar em um estilo teológico, na Idade Média, ou de um estilo econômico, durante a Modernidade, [...] está sendo elaborado, sob nossos olhos, um estilo estético” (1995, p. 18, grifo nosso). Em obra mais recente, O tempo retorna, o autor utiliza outros termos para abordar esse mesmo movimento: “o pré-moderno é mágico, o moderno é teológico-positivo, e o pós-moderno é tecnomágico” (2012, p. 108, itálico do autor e negrito nosso). Desde já, percebemos a concepção de que “o que se chama pós-moderno é, em parte, a retomada de elementos pré-modernos que são utilizados e vivenciados de maneira diferente” (1995, p. 78). Desenvolveremos reflexões acerca disso no decurso deste capítulo.

Sabemos que a noção de pós-modernidade não se exime de controvérsias e que há outras possibilidades de denominarmos o tempo presente. No entanto, acreditamos que esse termo, através dos pensadores supracitados, consegue dar conta do espírito do tempo hodierno de maneira consistente e lúcida. Além disso, seu

16 Salientamos que, em algumas expressões, o negrito vai se sobrepor a termos que já tinham sido grifados em itálico pelos autores originais.

17 A partir deste momento, neste capítulo, optamos por grifar em negrito apenas os termos-chave que se relacionam ao pós-moderno, a fim de não confundir o leitor.

ponto de vista se relaciona coerentemente com as intimações que nosso objeto, nossas referências e, também, a metodologia adotada nos apresentam.