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O interesse da iniciativa privada nos desfiles carnavalescos

A forma de produzir os desfiles carnavalescos se altera ao longo do desenvolvimento dessa manifestação. Até a sua oficialização, em 1967, a produção das fantasias e alegorias era realizada de forma artesanal e, de um modo geral, o trabalho era voluntário e realizado pelos membros das agremiações, pois as escolas não contavam com recursos próprios significativos e tampouco com incentivos públicos constantes. No entanto, também havia relações de trabalho remunerado, pois em alguns casos, como o dos sapateiros e algumas costureiras, o pagamento pelo serviço prestado era necessário, embora o valor fosse negociado.

Os parcos recursos também impunham a necessidade do improviso. Diversos relatos descrevem a precariedade do primeiro desfile do Grupo Carnavalesco da Barra Funda cujos membros saíram com roupas simples e remendadas (SIMSON, 1989, p. 89) e instrumentos improvisados, como chocalhos confeccionados com tampinhas de garrafas de cerveja (BRITTO, 1986, p. 74), o que não desqualifica artística e musicalmente os cordões, apenas retrata a situação naquele momento. Seria um equívoco supervalorizar os instrumentos musicais industrializados e largamente utilizados pelas escolas de samba na atualidade em detrimento daqueles que, embora improvisados, cumpriam sua função.

Para obter os recursos, os materiais necessários e arcar com os custos da produção das fantasias e alegorias, os dirigentes dos cordões buscavam diferentes formas de arrecadar fundos. Os membros que possuíam condições financeiras contribuíam mensalmente, mas como essa arrecadação não era suficiente, os organizadores dos cordões recolhiam donativos entre os comerciantes do bairro. Isso podia se dar sem um registro formal ou com a passagem do chamado Livro de Ouro, no qual se registrava os nomes dos doadores e os valores doados, prática essa que se prolifera nas décadas de 1940 e 1950.

Alguns comerciantes apoiavam os cordões de outras formas, como, por exemplo, os da Rua Barra Funda que deixavam as luzes dos comércios acesas para iluminar a passagem do Grupo Carnavalesco da Barra Funda (SIMSON, 1989), ou aqueles que doavam tecidos e outros artigos para a confecção das fantasias. As agremiações costumavam retribuir o apoio com lazer e entretenimento, ou seja, durante os desfiles passavam pelas ruas onde se localizavam os comércios dos contribuintes e ali realizavam apresentações especiais. Essas formas de solidariedade, muito comuns até meados do século XX, foram muito importantes para a manutenção e para o desenvolvimento dos cordões carnavalescos na cidade. Além disso, mostram que as relações entre seus membros e entre eles e outros sujeitos, como os comerciantes do bairro, embora baseadas em relações de troca, vão além dos interesses exclusivamente econômicos.

Outra fonte de renda comum entre as agremiações carnavalescas era a realização de bailes, festas e leilões, entre outras atividades, nos salões alugados – quando os cordões já tinham uma maior organização e um maior número de componentes – para os quais eram cobrados ingressos e vendiam-se comidas e bebidas. A partir da década de 1930, algumas agremiações já contavam com estatuto e associados que contribuíam financeiramente, o que se refletia em suas ações44. Havia também os concursos e batalhas de confetes realizados em outros bairros – comuns na Lapa e na Penha – em especial a partir da década de 1930 organizados por comerciantes que viam nessas atividades a possibilidade de incrementar o comércio de seus produtos, nos quais eram premiadas as agremiações com melhor desempenho. No caso das competições realizadas na Cidade da Folia montada no Parque Antártica, no Bairro da Água Branca, cuja finalidade era animar o carnaval interno do parque de diversões, todas as entidades participantes eram premiadas. Quando essa

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Como afirma Brito (1986, p. 81) “os cordões mais organizados como o Camisa Verde e o Campos Elíseos tinham criado uma estrutura administrativa, haviam se constituído em sociedade, regidos por estatutos, e os sócios tinham acesso aos bailes e demais atividades festivas, bastando apresentar o recibo da mensalidade em dia”.

manifestação já tinha certa aceitação, algumas agremiações, como o Vai-Vai, realizavam apresentações ou ensaios nas ruas do centro para arrecadar doações (SIMSON, 1989).

Os eventos carnavalescos da cidade eram cobertos pela imprensa, mas no início os folguedos negros não recebiam muita atenção, ou eram citados apenas nas páginas policiais. Posteriormente, a partir da década de 1930, alguns concursos passaram a ser cobertos e até promovidos pela imprensa local e, muitas vezes, também pelos meios de comunicação mais abrangentes, normalmente jornais e emissoras de rádio. Em 1935, uma reportagem do jornal Correio Paulistano relata o ensaio da Escola de Samba Primeira de São Paulo às vésperas de sua apresentação em 31/12/1935

(...) Ao seu último ensaio geral estivemos presentes, admirando a rapaziada de Elpidio de Faria. Era no salão Itália Fausta, à rua Florêncio de Abreu. Natural que não podíamos encontrar ali uma demonstração igual a do “terreiro” soberano do morro carioca. Mas aquela cadência angustiosa do ronco das cuícas, o estrepitar alvissareiro dos pandeiros e o tam-tam gingado dos tamborins, admiravam-se presentes de corpo e alma. Depois, a escola fazia antes um ensaio para a passeata do dia 31 e as “alumnas” e “cadetes” deviam ser substituídos pelas pastorinhas e balisas. As suas evoluções, porém, revelam, desde logo, que eram sambistas de valor. (Jornal Correio Paulistano, 29/12/1935, p. 7, apud URBANO, 2006, p. 110).

Esta notícia compara a Escola de Samba Primeira de São Paulo com as agremiações cariocas, as quais são vistas como superiores ou melhores, ou seja, embora o jornal tivesse interesse em noticiar fatos relacionados às entidades carnavalescas desta cidade, o fazia apresentando como algo inferior ao que era produzido no Rio de Janeiro.

Em 1936 o carnaval contou com o apoio da Prefeitura e teve como uma de suas atrações o “Dia dos Cordões dos Negros” do qual participaram a Escola de Samba Primeira de São Paulo, o bloco Baianas Paulistas, o rancho Mimoso Príncipe Negro e os cordões Mocidade do Lavapés, Marujos Paulistas, Geraldinos e o Grupo Carnavalesco da Barra Funda. Esse evento foi organizado pelo jornal Correio Paulistano, que teve a colaboração de

diversos parceiros, tendo também publicado diversas notícias sobre o evento (URBANO, 2006).

Em 1937 o jornal Diário Popular publicou a seguinte notícia sobre o carnaval, a qual possui um tom mais informativo e refere-se ao desfile como um evento importante e organizado:

O torneio dos cordões uma das mais interessantes práticas carnavalescas alias de cunho nitidamente nacional, foi marcado para amanhan, domingo as 20 horas (...). Os cordões deverão entrar pela praça do Patriarca, e sahir pela rua José Bonifácio, passando também, duas vezes diante do jury (...). Disputarão a competição de cordões os seguintes clubes: Campos Elysios, Barra Funda, Flor da Mocidade, Geraldinos, Mocidade do Lavapés, Marujos Paulistas, Nacionalistas, Rugerone, Juventos Nacional, Grupos das Baianas, União Bom Retiro, Escola de Samba 1ª de São Paulo, Cravos Vermelhos e Vae Vae e Diamante Negro, rancho extra-concurso (Diário de São Paulo, 06/02/1937, p. 12, apud URBANO, 2006, p. 113, grifo nosso).

O carnaval de 1939 foi promovido pelo jornal Correio Paulistano e o de 1940, realizado na Avenida São João e transmitido pela rádio Cosmos, pelo Centro Paulista dos Cronistas Carnavalescos e pela rádio São Paulo, os quais promoveram também o carnaval de 1941 na Cidade da Folia, no Parque Antártica (URBANO, 2006). Em 1967 os desfiles realizados na Lapa foram transmitidos pela TV Paulista, por iniciativa dos lojistas do bairro, mas já na década de 1950 a TV Record transmitia notícias e imagens dos desfiles (SIMSON 1989).

Esses fatos mostram o crescente interesse de diversos agentes da iniciativa privada no carnaval paulistano que no final do primeiro período, década de 1960, já era visto como um evento de grande potencial econômico. A partir da década de 1930, as agremiações carnavalescas populares relacionavam-se com agentes dos diferentes circuitos da economia urbana, tanto do circuito inferior – sapateiros, costureiras, artesãos e pequenos comerciantes –

como do circuito superior e superior marginal – poder público, empresas diversas, diferentes ramos comerciais, imprensa escrita, emissoras de rádio e TV.

Embora não houvesse uma normatização oficial e as ações fossem baseadas nos interesses dos envolvidos num determinado momento, sem regularidade, a relação das entidades carnavalescas com esses agentes, em especial os da iniciativa privada que promoviam e patrocinavam os desfiles mesmo na ausência do poder público, foi um dos fatores decisivos para a manutenção da festa na cidade45. Baseadas nessas relações, as agremiações carnavalescas buscavam formas de consolidar sua inserção, mesmo que isto resultasse em alterações necessárias à sua adaptação à cidade.

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Ciente da importância dessa relação, Simson (1989, p. 157) afirma que “(...) a atuação da iniciativa privada criou pois condições para que as agremiações negras pudessem manter seus folguedos em funcionamento, possibilitando a emergência do atual carnaval paulistano com sua maior criatividade, todo ele praticamente baseado nos folguedos negros”.