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O internacionalismo estatal: os projetos transnacionais de educação, formação e técnica

CAPÍTULO IV. O INTERNACIONALISMO MULTIDIMENSIONAL DO

4.3. O internacionalismo estatal: os projetos transnacionais de educação, formação e técnica

O leitor mais atento a essa pesquisa certamente – e com toda razão – deve estar se indagando há algum tempo sobre a seguinte questão: por que afinal foi desenvolvida a relação entre Estado, sociedade civil e sem-terra, no Capítulo 1 do trabalho presente? Qual é sua relação efetiva com o tema proposto, isto é, o internacionalismo das direções do MST? Ora, além de organizar suas relações internacionais com movimentos e organizações, ou seja, com grupos da sociedade civil, como vimos amplamente, ao mesmo tempo desenvolveu relações políticas com o Estado, no âmbito internacional. Ou seja, o internacionalismo das direções do MST cultivou também a ação da solidariedade estatal, que sempre esteve presente em sua trajetória (exemplo paradigmático eram as práticas recorrentes de solidariedade internacional com o governo sandinista e cubano nos anos 1980), mas que ganha mais força a partir de 2003/2004, em especial com sua “adesão” ao projeto de governos latino-americanos

116 Em entrevista com Jean-Paul Warmoe, coordenador de projetos e secretário na época do comitê de

seleção do Prêmio Internacional Rei Balduíno disse: “O prêmio quer encorajar o MST a continuar a sua luta pela Reforma Agrária. O objetivo da Fundação Rei Balduíno é reconhecer e premiar o MST pelas atividades que ele vem desenvolvendo até hoje. Também queremos chamar a opinião pública internacional sobre a Reforma Agrária e o MST” (JST, 1997, p. 15).

153 Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), no qual os movimentos sociais tem um espaço ainda muito pequeno (MUHR, 2010).

Nos setores como formação, educação, projetos e produção técnica, a dimensão estatal internacionalista do MST ocupa também um lugar privilegiado. Longe de esgotar o tema, que é difícil de ser mensurado, ficaremos apenas na relação com que o MST estabeleceu com dois países da América Latina: Cuba e Venezuela (com mediação, às vezes, do governo federal a partir de 2003). Tal aproximação com os respectivos países através de projetos e cooperação específicos incide necessariamente em uma afinidade ideológica e política que o MST tem com os dois países.

Com respeito à Cuba, existe um contato de longa data; começa a ser construído ainda nos anos de 1980, ou seja, nos anos de formação e consolidação do Movimento. Antes do país caribenho atravessar um período de forte crise econômica – em razão do fim dos países “socialistas” europeus e o desaparecimento da União Soviética em dezembro de 1991, o que reduziu o fornecimento de diversos produtos117 –, Cuba tinha escolas de formação latino-americana abertas para todos os jovens militantes do continente. Por isso, Cuba era considerada pelas organizações e movimentos de esquerda a principal referência de cursos de formação política.

Nos anos 1980, o Movimento ainda está nesse estágio de expansão e de consolidação, tanto essa expansão para nacionalizar o MST como de ir fortalecendo internacionalmente. [...]. E aí foi abrindo diferentes caminhos e construindo relações políticas. Obviamente com Cuba essa conquista [foi] aos poucos [...]. De uma relação que se consolidou e que se fortaleceu e, realmente num primeiro momento era mais as relações com os partidos aqui no Brasil, os partidos de esquerda, e Cuba mantinha esse papel realmente da formação política a nível continental muito fortemente. Então tinha escola das mulheres, cada organização de massa em Cuba e o partido mantinha a sua escola de formação política com essa abertura com os cursos internacionais, né? (Entrevista com Itelvina Masioli em 12/dez./2011).

Desde o princípio mantivemos uma relação fraterna e específica com a ANAP [Associação Nacional de Agricultores Pequenos] e, através dela, nos eram oferecidas oportunidades de cursos, que eram realizados para estudantes de vários países, em diversos aspectos, que iam desde cursos apenas para mulheres, para jovens, ou áreas de cooperativismo. E sempre procuramos participar de todos. Às vezes, como aqui era ditadura, tínhamos que ir de ônibus para Lima, para depois pegar o avião para La Havana. (Entrevista com João Pedro Stédile em 13/junho/2012).

117 Só para ter uma dimensão da dependência econômica de Cuba, os países alinhados à União Soviética

forneciam 85% das importações cubanas, 80% dos investimentos e recebiam ao redor de 80% das exportações do país (GARCÍA, 2011, p. 29).

154 Tradicionalmente, as escolas cubanas ofereciam cursos para organizações partidárias; contudo, aos poucos, foi se abrindo para organizações de outra natureza, como movimentos e associações. O MST enviou numerosos militantes para os diversos cursos de formação política em Cuba, organizados pelos movimentos camponeses,

como a ANAP, com o apoio do governo cubano – tais militantes permanecem, hoje em

dia, sendo os principais dirigentes do Movimento.

Então se abriu caminho primeiro com a CPT, depois com o PT, [...] porque eles [os cubanos] tinham uma tradição que eles só se relacionavam com os partidos e não com os movimentos. Então não tinha como entrar, nem conversar com esses partidos da América Latina, nem com os cubanos. Mas daí nossa relação mais direta vai se dar em 88, já na terceira turma nossa que foi para ANAP e daí se começa a estabelecer uma relação (Entrevista com Egídio Brunetto em 17/nov./2011).

E nesse caminho fomos abrindo espaço na escola do partido, para mandar militantes e dirigentes nossos para cursos da escola do partido – a Escola Nico Lopes –, e para a escola da juventude também, que a mantinha com abertura para cursos latino-americanos e africanos. E nesse primeiro momento foi extremamente importante que muitos dirigentes, inclusive o Egídio [Brunetto] estudou; estudou em Cuba na escola da Niceto Peres, um conjunto de militantes. Eu fui pra escola da juventude (Entrevista com Itelvina Masioli em 12/dez./2011).

[...] Cuba nos oferece cursos de formação, aliás, não só a nós, mas a um monte de gente, as primeiras escolas de formação que nós mandamos nossos militantes. [...] em 1989, na verdade, eu fui fazer um curso de formação em Cuba, uns cinco meses (acho), formação de economia política, filosofia etc. e aprendi a falar espanhol e o MST precisava tava iniciando o processo de relações internacionais e, na verdade, o fato de dominar a língua permitia acompanhar várias atividades e a participar do setor de relações internacionais (Entrevista com Gilmar Mauro em 16/nov./2011).

No entanto, na década de 1990, os cursos foram fechando suas portas para a participação de militantes internacionais. O motivo dessa atitude deve-se ao período de crise econômica e às transformações profundas em que Cuba vai mergulhar – fase conhecida como “período especial”.

[...] ainda na escola da juventude nós praticamente fomos em dois grupos; foi uma vez duas companheiras, depois fomos em cinco. E aí já foram entrando paras as dificuldades. Tu já pegas 1990, inicia a crise, o período especial, e também vai ser essa determinação em Cuba de ir fechando as escolas de formação política... Obviamente que elas continuam para os militantes e os quadros cubanos, mas fechando para participação internacional. E depois de 1994 com a crise, a força do período especial e toda a ofensiva imperialista, Cuba inicia uma nova etapa também a partir de 1994 que o comandante Fidel qualificou de as batalhas de ideias e é aí que vai nascer a Escola Latino- Americana de Medicina, a ELAM, que ela nasce nesse período (Entrevista com Itelvina Masioli em 13/dez./2011).

155 A suspensão dos cursos de formação política não encerrou as relações entre o MST e Cuba. No Brasil, diante do quadro social-econômico dramático que o país cubano vivenciava118, o MST juntamente com outras entidades, associações, movimentos e organizações, participou ativamente de campanhas de solidariedade

internacional para arrecadação de fundos, como, por exemplo, para a “Campanha uma

Gota de Amor por Cuba”, com o objetivo de conseguir enviar um navio de petróleo para os cubanos (JST, 1992, n.115, p.14).

Além disso, o MST tem uma verdadeira fascinação pela pedagogia cubana, o que, por sua vez, tem uma forte influência no setor de educação e formação, especialmente sobre o setor de juventude. Não custa recordar que os “princípios teóricos” da pedagogia do MST são buscados em teóricos latino-americanos como, por exemplo, Paulo Freire e José Martí. A importância que o MST confere à educação e à formação é capital:

Com o correr dos anos, o Movimento ajudou a organizar centenas de escolas e inúmeros cursos de capacitação para seus membros. Só entre 1988 e 2002, o setor de Formação fez cursos e oficinas para mais de cem mil ativistas do Movimento. Os cursos de formação realizados em parceria com universidades do país enfatizam o estudo da realidade brasileira e latino- americana. O MST, porém, é ciente de que a principal experiência educativa dos seus integrantes é feita na prática e na luta (CARTER; CARVALHO, 2010, p. 320)119.

O internacionalismo da educação cubana se manifesta desde a década de 1970 através do envio de contingentes de professores e colaboradores para diversos países, como o Destacamento Pedagógico Ernesto Che Guevara, em Angola (1978), o Destacamento Augusto César Sandino, na Nicarágua (1980), entre outros. Somado isso, Cuba realizou eventos sobre educação. Para ficarmos em apenas dois exemplos, o MST participou do “Encuentro por la unidad de los educadores latinoamericanos”, em 1995 (conhecida também como “Pedagogia 95”), ocasião em que foram feitos importantes intercâmbios em espaços educativos – em círculos infantis, escolas primárias e secundárias, Institutos Politécnicos Agropecuários e Industriais, Centro de Estudos sobre José Martí, Centro de Estudos sobre a América, Associação de Educadores Latino

118“A crise econômica foi muito intensa. O PIB caiu quase 35% entre 1989 e 1993; o déficit fiscal chegou

a 33% do PIB em 1993, e as importações a preços correntes caíram 75% nesses quatro anos. A condição de vida da população piorou fortemente apesar dos esforços do governo. Assim, por exemplo, houve queda de mais de 30% na aquisição de calorias e proteínas por parte da população, e surgiram doenças decorrentes de carências nutricionais, como a neurite óptica e a neuropatia epidêmica em 1993” (GARCÍA, 2011, p. 29).

156 América e Caribe (JST, 1995, n. 145, p. 15). Em 1997, a delegação do MST viajou com trinta e quatro militantes para o XIV Festival da Juventude e dos Estudantes em Cuba (JST, 1997, n. 172, p. 6).

Não se pode deixar de mencionar a criação da Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM), fundada em 15 de novembro de 1999, que já formou 8.585 profissionais de 30 países da América Latina, do Caribe, da África, do Haiti e dos Estados Unidos (RODRÍGUEZ, 2011, p. 53). O objetivo é a formação de médicos que possam atuar em diversas comunidades urbanas e rurais precárias de acordo com as necessidades e limitações de cada região. Em 2000, segue a primeira turma do MST para estudar medicina em Cuba (MAZILÃO, 2011, p. 57). Desde então, com um convênio firmado entre o MST e o governo de Cuba, há em média de 15 a 20 jovens filhos de agricultores sem- terra que anualmente viajam a Cuba com a possibilidade de cursar Medicina (MARCH, 2009, p. 11). Para frequentar o curso, o governo cubano oferece aos alunos bolsas de estudo integrais com direito aos seguintes benefícios: alojamento, alimentação, materiais escolares e didáticos, atendimento médico e odontológico, além de uma pequena ajuda para necessidades extras (RST, 2004, n. 26, p. 31).

Um último elemento que o MST tem incorporado da pedagogia cubana é a utilização do método de alfabetização “Sim, eu posso”120, uma vez que a demanda por

alfabetizações de jovens e adultos no MST é enorme (MAZILÃO, 2011, p. 42). Isso fez com que no V Congresso Nacional, em 2007, o MST lançasse a Campanha Nacional de Alfabetização voltada para as áreas de assentamento e acampamento. Para a consecução disso, segundo Ageu Mazilão (2011), foi preciso firmar um protocolo internacional de cooperação com Cuba, realizado pelo Governo Federal, em 2005, que contribuiu para que o MST utilizasse o método pedagógico, instalando experiências-piloto em assentamentos e acampamentos dos estados brasileiros (Maranhão, Ceará, Piauí). No Maranhão, por exemplo, onde a campanha foi mais sistemática, cerca mais de mil e duzentos trabalhadores rurais fossem alfabetizados através do método cubano que foi, testado principalmente no assentamento Balaiada, no município de Nina Rodrigues, no norte do Maranhão. Diante disso, a Secretaria do Estado de Educação declarou “território livre de analfabetismo” na região.

120 Em 2006, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Ciência e Cultura) concedeu a Cuba o

premio 2006 Rey Sejong pelo programa de alfabetização de jovens e adultos Yo si puedo. Em 19 países, a aplicação do método de alfabetização conta com 3,5 milhões de pessoas alfabetizadas. (RODRÍGUEZ, 2011, p. 53).

157 Com relação à Venezuela, o MST iniciou uma aproximação muito mais recente com do que a que tem com Cuba. Nos anos 2000, o MST e a Via Campesina sondavam as organizações camponesas do país venezuelano na tentativa em incorporá-las no movimento da CLOC e Via Campesina. Na mesma época, o MST fez uma doação de mais de quatrocentos quilos de sementes de hortaliças agroecológicas Bionatur, produzidas organicamente pelas famílias assentadas em Hulha Negra (Rio Grande do Sul), através da Cooperativa Regional de Assentados (COPERAL), em razão da ocorrência de fortes chuvas que destruíram vários pontos do país venezuelano (JST, 2000, n., p.12). Além disso, a tentativa de golpe promovida pelas elites locais, canais de comunicação e os EUA para destituir o governo do presidente Hugo Chavez em abril de 2002 contou com uma reação apenas retórica do MST em defesa do presidente venezuelano.

Na realidade, o momento de estreitamento dá-se quando o presidente Hugo Chavez viaja para cidade de Porto Alegre para participar do V Fórum Social Mundial (FSM), em 2005. Na ocasião, o MST convida o presidente para visitar o assentamento Lagoa de Junco, na cidade de Tapes (Rio Grande do Sul). Ali será firmado um protocolo de compromisso assinado pelo Governo da Venezuela, Governo do Estado do Paraná, Via Campesina Internacional, MST e Universidade Federal do Paraná com objetivo de criar a Escola Latino Americana de Agroecologia (ELA), na cidade de Lapa, Paraná, inaugurada ainda naquele ano, e a constituição do Instituto de Agroecologia Latino-Americano Paulo Freire (IALA), na cidade de Barinas, na Venezuela inaugurada em 2006 (JST, 2005, n. 248, p. 11).

Nesse contexto, o MST e a Via Campesina debatem a ideia de levar uma brigada de militantes para a Venezuela. Contudo, diferentemente das brigadas que o MST desde sua gênese enviou, a brigada doravante teria como meta principal a cooperação em construir novas formas de produção agrícola e ter uma longevidade muito maio do que as brigadas anteriores (permanência de longos meses e, até mesmo, dois ou três anos) e, enfim, consolidar a aproximação com as organizações camponesas venezuelanas.

[Chavez] conheceu a produção de arroz orgânico e tudo mais, né? Conheceu os nossos assentamentos, e daí nesse ato, surgiu a ideia de conformar aí uma brigada para ir para a Venezuela, ai estavam os movimentos camponeses venezuelanos, estava a CANEZ [Coordinadora Agraria Nacional Ezequiel

Zamora] e outras organizações que subscreveram ai digamos esse acordo, nessa ideia de que nós pudéssemos conformar ai uma brigada da via campesina, do MST e que fossemos para a Venezuela que o governo iria nos apoiar, dar o suporte, para que pudéssemos iniciar um processo juntamente com os camponeses venezuelanos de construir de fato novas formas na

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produção agrícola. [...] Então nós fomos para a Venezuela em 2005, em outubro de 2005, com a seguinte proposta: de iniciar um processo, de construir uma escola que pudesse ajudar na formação dos agricultores, dos camponeses venezuelanos e também, outra escola aqui no Brasil (Entrevista com Joaquim Pinheiro em 10/dez./2011).