• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I. ENIGMAS, PROBLEMAS E QUESTÕES SOBRE AMÉRICA

1.2. Problemas teóricos sobre o MST

1.2.2. Organização e forma política

O segundo problema diz respeito à forma de organização do MST. Qual, afinal, o formato de sua organização? Movimento social? Partido político? Tais perguntas têm sido frequentemente debatidas sem muito sucesso, não apenas entre os especialistas, pois seu eco influi na sociedade brasileira entre aqueles que se interrogam sobre o assunto. É também, vale dizer, o tema em que se encontra a munição técnica para “atacar” ou “defender” o MST.

Sinteticamente, as avaliações do formato e da evolução organizacional do MST estão marcadas por duas correntes não-declaradas de confronto. De um lado, avaliações como as de José de Souza Martins (1997, 2003, 2004) e Zander Navarro (2002) têm apontado que as lideranças do MST manipulam e instrumentalizam as ações coletivas com objetivo de atender a interesses privados. Haveria um agudo desencontro entre interesses políticos da organização dos sem-terra, isto é, lideranças, militantes intermediários, funcionários especializados e do movimento de base, composto pelas famílias sem-terra. Trata-se de uma interpretação que aponta como conservadora a forma de organização do MST, pois impõe um éthos “militarista”, incita “abusos de poder”, “autoritarismo”, “obediência incondicional”. Do outro lado, trabalhos como de Horácio de Carvalho (2002) e Roseli Caldart (2004) afiançam que a divisão de tarefas na estrutura organizativa do MST é “descentralizada”, “múltipla”, “aberta”, marcada por uma organização coletiva que no decorrer do tempo manteve fielmente seus princípios “coerentes” e “democráticos”.

Como facilmente se percebe, os argumentos variam entre extrema “oligarquização” à “democratização” da forma organizativa do MST. Escapando dessas duas tendências, em duas pesquisas – as quais, aliás, bastante complementares – buscou-se compreender sistematicamente a questão da organização do MST. Trata-se de “A evolução organizacional do MST”, de Peschanski (2007), e “A forma política do MST”, de Aliaga (2008).

50 No primeiro trabalho, o autor defronta-se com o processo de formação e composição das instâncias decisórias do MST, particularmente a Direção Nacional (DN), criada em 1988. Ao invés de declarar se a evolução da organização é “boa” (democrática) ou “ruim” (oligárquica) como costumam fazer os intérpretes sobre o tema, com o objetivo político de qualificar ou desqualificar o Movimento, Peschanski procura compreender historicamente a dinâmica da organização através das relações complexas entre “objetivos dos grupos mobilizados, as circunstâncias em que se encontram e a atuação das lideranças” (PESCHANSKI, 2007, p. 5).

Com a formalização do Movimento, em 1984, a relação entre os sem-terra e os setores da igreja que compunham a sua pré-formalização deixa de variar em função das tensões entre assessores e lideranças e das novas circunstâncias políticas geradas pelo processo de redemocratização. Isso leva a uma fase de recriação da identidade e da organização do MST, isto é, “romper definitivamente com a estrutura organizacional da igreja, garantir a unidade do movimento e radicalizar a atuação do movimento” (PESCHANSKI, 2007, p. 74). Daí que, em meio a essas transformações que o Movimento vivência, as lideranças criam em 1988 uma instância decisória: a DN.

Inicialmente, começamos com uma coordenação provisória, criada em Cascavel, que era dos estados do Sul. Esta preparou o Congresso de janeiro de 1985. No congresso, elegemos uma coordenação com dois representantes por estado dos 13 que estavam presentes. Só havia essa instância. Em 1986 (creio que no segundo Encontro Nacional), estudamos sobre a questão da organização política dos trabalhadores, onde os assessores, sem revelar a base leninista e maoista da teoria, propuseram que se deveria criar, por medida de segurança, uma Direção Política. Assim foi feito. Mas, com o decorrer do tempo, verificou-se que a coordenação não tinha influência e a DP estava ultrapassando os limites. Então criamos uma Executiva Nacional com um por estado e mais a Coordenação que eram dois por estado. Mas a DP que ficou sendo um grupo pensante. Aos poucos percebemos que a DP continuava a dirigir, pois tinha mais informações. Optamos por extingui-la. Mudamos o nome da Executiva que passou a se chamar Direção Nacional e mantivemos a Coordenação Nacional. Para substituir a Direção Política, criamos o Grupo de Estudos Agrários (Ademar Bogo em entrevista a João A. Peschanski, 2007, p. 76-77).

A análise é feita segundo descrição da evolução da composição da DN entre 1988 e 2006, por meio do acesso que o pesquisador teve às listas de presenças em reuniões da DN. Nos dois primeiros anos de funcionamento, mantém-se o que o autor denomina de “tumulto organizacional”, quando lideranças abandonaram o MST. Peschanski (2007, p. 99 -100) divide em três fases a evolução organizacional do Movimento: 1) 1988 a 1997, quando é perceptível a alta concentração de cargos pelas mesmas pessoas; 2) 1998 a 2005, quando a taxa de permanência das lideranças de ano

51 para ano continua alta, porém, já se pode observar uma relativa queda, em razão de uma progressiva ampliação no número de cargos; 3) 2006 até o tempo presente, quando há um aumento de proporção de novos integrantes na Direção – 70% dos dirigentes do MST nunca haviam ocupado o cargo em anos anteriores.

Peschanski compreende que a dinâmica da organização do MST, no tocante à concentração de cargos na década de 1990, é resultado (e termômetro) das variações do cenário político, e não o resultado de uma lei inexorável que leva as organizações a se tornarem “oligárquicas” ou “democráticas”. Nesse caso em particular, o processo de centralização da DN é fruto da relação de enfrentamento entre o MST e governo federal tido como principal adversário, notadamente o de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. “Numa situação de disputa, as lideranças fecham a instância para garantir coesão e criar mecanismos para tomada de decisões rápidas” (PESCHANSKI, 2007, p. 140)44.

Novamente, em 2002, sob um cenário político distinto, a propósito da vitória de Lula, que ocupa o cargo na presidência da república, a DN do MST foi obrigada a se reformular e, por isso, a estimular um processo de desconcentração do poder das instancias decisórias, aumentando o número de dirigentes nacionais, por vários motivos: surgimento de novas lideranças, método autoritário e centralizador, despolitização e perda de influência da base e incapacidade de alcançar o objetivo de obter impacto no cenário político e pressionar por reivindicações.

Além disso, o autor traçou um perfil das lideranças do MST, apresentando dados sobre origem social (camponesa ou não camponesa) e sexo (masculino e feminino). Em relação à origem social, foi descoberto que a maioria da direção é formada por lideranças originárias do campo. E com relação à questão de gênero, constatou-se que a DN sempre foi pouquíssimo aberta às mulheres para os cargos de decisão até 2006, quando a DN passa adotar uma política de equilíbrio de representação de gênero (ou seja, as mulheres teriam, nessa instância, uma participação numérica equivalente à dos homens), marcada por uma conjuntura de crescente protagonismo radical feminino através do MST/Via Campesina45.

44“Ademais, a percepção por parte das lideranças de riscos de infiltrações e a necessidade de manter a

coesão organizacional os leva a adotar uma direção centralizada e com pouca abertura. Essa estrutura organizacional aponta para uma situação de introspecção do movimento, em que a organização adota como um de seus pontos principais o fortalecimento dos laços internos e de institucionalização, resistindo à influência do Estado” (PESCHANSKI, 2007, p. 105).

45 Para uma análise do protagonismo das mulheres nos movimentos sociais, particularmente no MST/Via

52 Luciana Aliaga (2008), por sua vez, vai enfocar as relações entre movimento social e organização política formal do MST. Ou seja: a autora tenta responder a uma inquietante pergunta feita amiúde entre os pesquisadores que estudam o Movimento: afinal, o MST é um movimento social ou partido político?46 José de Souza Martins, por exemplo, afirma que o MST não é mais um movimento social. Para o sociólogo, haveria uma tendência de desaparecimento dos movimentos sociais (que é próprio de sua dinâmica), ou por estes atingirem os objetivos desejados, ou pelo esgotamento dos mesmos objetivos. E se por um acaso o problema não for resolvido, “a tendência é a de que o movimento se institucionalize, se transforme em uma organização, como é o caso do MST” (MARTINS, 1997, p. 62). O sociólogo ainda afirma: “Eu diria que ele [o MST] é o primeiro e único partido popular agrário que temos no Brasil, apesar de não ter programa e organização propriamente partidários” (MARTINS, 1997, p. 62-63).

Ao que tudo indica, entretanto, “a peculiaridade do MST consiste em sua capacidade de incorporar características de partido no movimento social, o que não faz dele um partido político, mas que lhe imprime na estrutura organizativa uma ‘forma partido’” (ALIAGA, 2008, p. 8). Nessa jusante, aventar a hipótese da “forma partido” não autoriza afirmar que o MST deixou de ser movimento social e nem que seja um partido político stricto sensu:

Embora o surgimento do MST se deva a uma demanda específica de um setor da sociedade – a reforma agrária – em sua trajetória o Movimento expande seus objetivos iniciais, colocando-se num plano de ação mais amplo, propondo-se à construção da hegemonia de seu grupo fundamental – os trabalhadores rurais – na sociedade civil, assumindo assim funções de partido. A forma política adequada a essas funções – resultado das reflexões internas do Movimento, baseadas nas experiências históricas e no referencial teórico marxista – foi a “forma partido” (ALIAGA, 2008, p. 6).

46 Resumidamente, durante o final da década de 1960, emergia na sociedade americana uma nova corrente

analítica chamada de Teoria da Mobilização de Recursos (TMR), cujo maior expoente foi Charles Tilly, que destacaria os movimentos como grupos de interesses através da captação de recursos humanos, financeiros, comunicação e infraestrutura. Diante disso, também eclodiu uma nova abordagem conhecida como Teoria da Mobilização Política (TMP), munida de um repertório conceitual – por exemplo, o conceito de oportunidade política e de frame – que enfatizaria outros aspectos, como o contexto político nas formações dos movimentos e os ciclos de protesto das ações coletivas. Concomitantemente, no continente europeu, brotaria nas ciências sociais uma corrente conhecida como Novos Movimentos Sociais (NMS). Nela, destacaram-se, pelo menos, três autores – Touraine, Melucci e Offe –, realçando os processos de construção de identidade a partir dos processos de conflito. Para um balanço das teorias europeias e americanas e sua recepção na América Latina, ver Toni (2001), Gohn (1997; 2008), Alonso (2009), Vieira (2011). Embora seja dificílimo reduzir a multiplicidade de vertentes teóricas sobre a definição da categoria movimentos sociais, é possível, contudo, estabelecer alguns parâmetros mínimos para uma conceitualização teórica entre eles. Provavelmente a diferenciação fundamental – segundo Gohn – refere-se à esfera em que ocorre a ação coletiva. “Trata-se de um espaço não-institucionalizado, nem na esfera pública, nem na esfera privada, criando um campo político, como observou Offe” (GOHN, 1997, p. 247).

53 Aliaga ancora-se no pensamento político de Antonio Gramsci, para quem o partido é a expressão da passagem do momento meramente econômico à elaboração ético-política, e cuja função é o equilíbrio e arbitragem entre os interesses sociais fundamentais e os outros grupos na medida em que busca o consentimento ao grupo programado. Assim, a autora afiança que o MST procura resguardar os interesses das

classes dominadas do campo – a luta política pela reforma agrária –, e

concomitantemente, amplia seu projeto de forma a incorporar os interesses das classes populares como um todo.

Como desenvolvido no trabalho de Peschanski (2007), a autora também corrobora que a estrutura de organização do MST passou por uma evolução, sofreu frequentes reordenamentos, mudanças, aperfeiçoamentos e ajustes ao longo de sua trajetória. O resultado disso é uma “ampla estrutura que organiza as famílias acampadas até a direção nacional. Configura-se, portanto uma estrutura burocrática que abrange desde a base até as instâncias superiores” (ALIAGA, 2008, p. 92). Mas atenção: para entender a completude da proposta da autora, é imperativo que se faça a distinção – baseada em Gramsci – entre burocracia, que significa um corpo de instâncias de decisão e de funcionários especializados, e burocratização, que é a cristalização destas mesmas instâncias e sua perpetuação, mesmo após perderem sua função47.

47 O marxista sardo constrói a distinção entre o que denomina “centralismo orgânico e democrático”, ou

seja, “um ‘centralismo’ em movimento, por assim dizer, isto é, uma contínua adequação da organização ao movimento real, um modo de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o comando pelo alto, uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo da massa na sólida moldura do aparelho da direção, que assegura a continuidade e a acumulação regular das experiências” e, por sua vez, “centralismo burocrático”, que “indica que o grupo dirigente está saturado, transformando-se num grupelho estreito que tende a criar seus mesquinhos privilégios, regulamentando ou mesmo sufocando o surgimento das forças contrastantes, mesmo que essas forças sejam homogêneas aos interesses dominantes fundamentais” (GRAMSCI, 2001, p. 91).

54

Quadro 1.3. Estrutura organizativa do MST Instâncias de Representação Congresso Nacional Encontro Nacional Direção Nacional Encontro Estadual Coordenação Estadual Direção Estadual Coordenação Regional Coordenação de Assentamentos Coordenação de Acampamentos Núcleos de Base Setores de Atividades Secretaria Nacional Secretarias Estaduais Setor de Frente de Massa Setor de Formação Setor de Educação

Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente Setor de Comunicação

Setor de Finanças Setor de Projetos

Setor de Direitos Humanos

Coletivo de Relações Internacionais Setor de Saúde

Setor de Gênero Coletivo de Cultura Coletivo de Mística

Organizações convencionais ANCA – Associação Nacional de Cooperação Agrícola

CONCRAB – Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda.

ITERRA – Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

ENFF – Escola Nacional Florestan Fernandes Fonte: (FERNANDES, 2010, p. 182).

Diante disso, a autora afirma que a estrutura organizativa do MST se define como uma organização de massa (pois apresenta como estrutura de base os núcleos e as brigadas)48, já que se empenha na educação política da base (elaboração da política adequada para atingir interesses da classe que representa e formação da consciência de classe) e consiste num sistema de instituições complexas estruturadas em âmbito nacional, estadual e local, articulados entre si e centralizados politicamente, com um corpo de funcionários especializados. Tais características aproximariam a estrutura

organizativa do MST, segundo a autora, “morfologicamente dos partidos de formação

externa ao parlamento”. Comparando a estrutura do MST a estrutura do Partido Comunista Francês (PCF), o estudo revela semelhanças entre às organizações, guardadas as peculiaridades de cada uma:

Ambos possuem a preocupação de ligar as estruturas de base às instâncias superiores, isto é, tornar-se patente a preocupação com a articulação interna

48 As chamadas brigadas foram implantadas nas estruturas de base recentemente. Elas substituem o que

era a organização dos núcleos por meio de regionais, já que estava ocorrendo pouca coesão. As brigadas são formadas por acampamentos e assentamentos e têm por volta de quinhentas famílias. São divididas em núcleos com dez famílias, no máximo, cada uma. Tem-se, portanto, cinquenta núcleos para uma brigada de quinhentas famílias. As brigadas são organizadas pelos setores. Cada setor é formado por dez militantes (ALIAGA, 2008, p. 97). Veremos no capítulo IV que as brigadas internacionalistas do MST/Via Campesina têm um sentido diferente dessas brigadas formadas em assentamentos.

55

da organização; ambas as instâncias possuem uma cadeia complexa de instituições composta por congressos, direções políticas e secretarias, apontando para a existência de militantes, direções e funcionários especializados, ambos apresentam um grupo centralizador no topo da cadeia (no MST a direção nacional e no Partido Comunista Francês o comitê central); ambas as estruturas apresentam um sistema de representação indireto, isto é, os militantes de base não elegem diretamente a direção nacional, o processo passa por várias camadas internas antes de chegar ao topo; por último, ambas assentam-se na organização de base dos militantes (ALIAGA, 2008, p. 94-95).

Evidentemente, está totalmente fora do escopo deste trabalho escavar ao máximo os fundamentos da evolução organizacional e a forma política do MST. Contudo, os trabalhos ora mencionados servem em larga medida como ponto de partida para desembaraçar as visões dos que defendem de maneira unilateral e homogênea que a estrutura organizativa do MST possui instâncias decisórias controladas por um grupo oligárquico, ou aquela que atribui uma vocação ao estímulo à participação popular e à distribuição do poder. Nem tão santos, nem tão demônios. Ora, o que se pôde observar é que a evolução da organização do MST está imbricada em uma teia de relações que vai da base à direção em articulação com as circunstâncias conjunturais. Seu processo de institucionalização ocasionou uma estrutura de organização complexa e sui generis, semelhante aos partidos políticos, mas não para apontar de maneira suficiente que o MST é um partido político.