• Nenhum resultado encontrado

II. A Companhia de Jesus no Japão: contexto político e cultural

1. O Japão à chegada dos primeiros missionários jesuítas

A chegada de São Francisco Xavier ao Japão, em 1549, marcou o início da missão da Companhia de Jesus no arquipélago. Depois de uma estadia prolongada no porto de Malaca, onde contactou com comerciantes e mercadores e reuniu informação acerca do arquipélago nipónico, Xavier ficou bastante entusiasmado com o contexto cultural e social com que se deparou, prognosticando um avanço rápido da sua Cristianização, ainda que percebendo que os cultos praticados pelos japoneses não teriam muitas semelhanças com o Cristianismo, e que haveria certamente alguns obstáculos sociais a ultrapassar. Contudo, com o desenrolar da missão e com a chegada de mais missionários, estas ideias tão entusiásticas foram gradualmente substituídas por uma realidade menos propiciatória62.

Xavier foi encontrar um país profundamente dividido, período que pelas suas particularidades ficou conhecido na história do Japão como sengoku-jidai (1467-1568), ou “período dos estados guerreiros”63. Esta situação caracterizava o Japão havia algumas

centenas de anos. O imperador havia sido colocado num plano secundário de importância política, desde o século XII, com alguma influência apenas nos territórios mais próximos da capital, esbatendo-se também o seu poder por todo o arquipélago64.

Primeiro, o poder efectivo no território havia-lhe sido retirado pelos xoguns, mas estes também tinham sido incapazes de manter a unidade política e o governo estava agora

62 São Francisco Xavier chegou ao arquipélago nipónico em 1549, ao porto de Kagoshima, a bordo de um junco

chinês. O conhecimento que tinha daquelas terras havia sido por intermédio de um japonês, Anjiro, que tinha conhecido em Malaca. Tinha sido através dele e de mais alguns pequenos relatos de mercadores que se encontravam naquele porto, que Xavier tinha “construído” a sua visão acerca do Japão e do seu potencial enquanto futuros cristãos. Anjiro converteu-se ao Cristianismo em 1548 e recebeu o nome de Paulo de Santa Fé, embarcando de seguida com Xavier rumo ao Japão, servindo como intérprete, depois de ter aprendido português (Cf. João Paulo Oliveira e Costa, A Descoberta da Civilização Japonesa pelos Portugueses, Instituto Cultural de Macau/ Instituto de História de Além-Mar, 1995).Ver também Jurgis Elisonas, “Christianity and the daimyo” in Cambridge History of

Japan, vol. 4, Early Modern Japan, ed. John Whitney Hall e James L. McClain, Cambridge, Cambridge University

Press, 1997, pp. 301-372; George Elison, Deus Destroyed. The Image of Christianity in Early Modern Japan, Harvard University Press, 1988;

63 Cf. Asao Naohiro, “The Sixteennth-century unification” in Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan,

ed. John Whitney Hall e James L. McClain, Cambridge, Cambridge University Press, 1997, pp. 40-127;

64 Cf. Michael Cooper, Rodrigues, o Intérprete. Um jesuíta português no Japão e na China do século XVI, Lisboa,

assente nos dáimios, que administravam pequenas unidades territoriais, protegendo as comunidades aí instaladas e que viviam da agricultura, da pesca e do comércio. A inexistência de um poder centralizador forte, que dominasse efectivamente todas as regiões do arquipélago, permitiu a lenta entrada dos missionários europeus. O facto de não se sentir a força de uma autoridade central que pudesse controlar a sua entrada no território, tornava a sua presença tacitamente aceite, e mesmo que esta não fosse tolerada em determinado local, por determinado senhor, os padres podiam facilmente deslocar-se para o reino contíguo e reiniciar o processo de integração, do qual foi exemplo o estabelecimento dos portugueses no porto de Nagasaki65.

Apesar da proximidade geográfica com o território chinês, o Japão há muito que tinha deixado de contactar directamente com o império do Meio. O seu fechamento face ao exterior, em parte devido aos seus desequilíbrios internos, deixou aos mercadores estrangeiros o papel de intermediários entre os dois reinos, não só a nível económico, mas também cultural. Quando os mercadores portugueses atingiram o arquipélago nipónico perceberam que podiam ocupar esse lugar, e começaram a efectuar viagens de comércio entre os portos das duas costas. Na sequência da promulgação de uma lei que obrigava ao pagamento de todos os impostos em prata, as comunidades chinesas viram- se na contingência de aumentar exponencialmente a sua produção de seda para a trocar por prata66. Contudo, como o comércio directo com o Japão estava proibido, a única

forma de proceder à troca era através de intermediários. Estes, conhecidos como wako, eram essencialmente piratas que se tinham estabelecido no sul do arquipélago nipónico, em Kyushu67, e que se dedicavam à pilhagem e saque das vilas costeiras da China, e

que assumiam também a forma de mercadores, acabando por ser os principais responsáveis pelas trocas comerciais entre os dois impérios68.

65 Ao deixarem de ser tolerados pelo dáimio Matsuura, em Hirado, o que culminou na morte de Fernão de Sousa e

dos seus homens, em 1561, os missionários foram procurar um novo porto que pudesse passar a receber a nau do trato. Depois de algumas tentativas, a nau fixou-se num pequeno porto de pescadores, que tinha uma baía bastante protegida e que podia albergar um importante fluxo de navios. Nagasaki assumiu-se como porto comercial, ponto de chegada das mercadorias que vinham do continente chinês, e de ponto de partida para o escoamento dos produtos nipónicos.

66 Cf. Norio Kinshichi, “Produção de prata no Japão durante o Século Cristão” in O Século Cristão do Japão, Lisboa,

1994, p. 26;

67 Cf. Michel Vié, Histoire du Japon. Des Origines a Meiji, Paris, PUF, 1975, pp. 52-53; cf. Jurgis Elisonas,

“Christianity and the daimyo” in Cambridge History of Japan, Vol. 4, Early Modern Japan, ed. John Whitney Hall e James L. McClain, Cambridge, Cambridge University Press, 1997, p. 321; cf. Roderich Ptak,”Sino-japanese maritime trade, circa 1550: merchants, ports and networks” in O Século Cristão do Japão, Lisboa, 1994, p. 291-296;

Ainda que a China também estivesse num processo de fechamento face ao exterior, a forma monolítica e centralizadora com que o poder era exercido funcionou contra a extensão do próprio império, o que permitiu que as comunidades costeiras pudessem realizar trocas comerciais com mercadores estrangeiros, ainda que o mesmo não fosse oficialmente permitido69. Foi neste “nicho” de mercado que os portugueses se

concentraram, antevendo o potencial valor comercial da ligação entre a China e o Japão, empreendendo a troca da seda chinesa pela prata japonesa70. As naus portuguesas

começaram então a chegar aos portos do sul71, trazendo os produtos chineses e, em

troca, carregavam a prata e outros bens japoneses. A partir de 1571, Nagasaki passou a ser o porto principal de desembarque da nau portuguesa, o kurofune, que aqui atracava todos os anos, contribuindo para a transformação de uma pequena vila de pescadores numa importante comunidade católica e mercantil72. A ligação anual entre Macau e

Nagasaki assumiu um elevado valor na rede de ligações comerciais que os portugueses iam estabelecendo na Ásia Oriental73. A fundação desta rota foi também fundamental

para a consolidação da importância do porto de Macau, fortalecendo o seu papel enquanto entreposto comercial para os portugueses na Ásia, cuja importância aumentou consideravelmente com a queda de Malaca, e enquanto placa giratória da presença portuguesa nesta parte do mundo74.

69 Cf. Roderich Ptak,”Sino-japanese maritime trade, circa 1550: merchants, ports and networks” in O Século Cristão

do Japão, Lisboa, 1994, p. 283-285;

70 Cf. José Alberto Leitão Barata, “A Rota Portuguesa do Japão (1571-1639)”, in Mare Liberum, n.º 6, Dezembro

1993, pp. 49-55. Com a abertura da rota de Acapulco, em 1571, e a entrada da prata mexicana, este monopólio ficou ameaçado (Norio Kinshichi, “Produção de prata no Japão durante o Século Cristão” in O Século Cristão do

Japão, Lisboa, 1994, p. 269);

71 Até à fixação definitiva em Nagasaki, registaram-se várias tentativas de estabelecimento de um entreposto

comercial para a nau do trato nos portos de Funai, Hirado, Yokoseura, Fukuda e Kuchinotsu que acabaram por não vingar por diversas razões, fossem elas de cariz geográfico ou político (Cf. Helena Rodrigues, Nagasaki Nanban.

Das Origens à expulsão dos portugueses, dissertação de mestrado em História e Arqueologia dos Descobrimentos

e da Expansão Portuguesa (Séculos XV-XVIII), UNL-FCSH, 2006, pp. 27-30);

72 Cf. Helena Rodrigues, Nagasaki Nanban. Das origens à expulsão dos portugueses, dissertação de mestrado em

História e Arqueologia dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa (Séculos XV-XVIII), UNL-FCSH, 2006,

73 Veja-se João Paulo Oliveira e Costa, “A route under pressure. Communication between Nagasaki and Macao

(1597-1617)” in BPJS, vol. I, Dec. 2000, pp. 75-95;

74 Ver estudo de Luís Filipe Barreto, Macau: Poder e Saber. Séculos XVI e XVII, Lisboa, Editorial Presença, 2005,