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III. A arquitectura da Companhia de Jesus no Japão

2. A evolução arquitectónica dos espaços religiosos da Companhia de Jesus

2.5 A transição de templos em igrejas

Uma realidade que caracterizou o panorama arquitectónico jesuíta no Japão foi a transformação de templos budistas, ou xintoístas, em igrejas. Um aparente contra-senso, na medida em que, tal como já havia destacado o texto do Visitador Valignano, estes locais onde se “adorava Satanás”, não deviam servir como exemplo para as igrejas católicas, e muito menos deveria ser concebível instalar uma igreja num desses templos. No entanto, parece-nos que essa questão não foi problemática. Mais do que uma opção consciente, pensamos que a grande maioria das ocorrências deste tipo resultam de um interesse de quem doou, aliado à necessidade dos padres em terem espaços adequados e dignos308.

Em casos onde o senhor da terra fosse já baptizado não se levantaram, aparentemente, grandes questões relativamente à ocupação de um antigo templo budista. Por exemplo, D. Bartolomeu309, que pretendia erigir uma igreja em Omura, tinha

inicialmente solicitado ao padre Cosme de Torres que apontasse o local mais propício para o fazer, mas como havia um “mosteiro de bonzos desamparado donde se podia

fabricar”, este podia ser aproveitado pelo padre enquanto não se encontrasse melhor

edifício ou melhor localização. No entanto, D. Bartolomeu apenas procurava encontrar uma solução transitória, mas que de forma alguma pretendia ser uma imposição, e se o padre não considerasse adequado, por “nelle se ter venerado o demónio, que a mesma

casa de Dom Luiz, que era mui fresca e aprazível, se daria pera isto”310. Outro caso

significativo deste tipo de ocorrências foi a adaptação de uma câmara, onde tinham sido adorados ídolos, para corpo de uma capela, embora, neste caso, se reporte a uma capela privada, no interior da fortaleza de Usuki311. Foram também alvo destas

308 “Acudindo um irmão e dizendo lhe para que queimava os templos, que podião depois servir de igrejas” Historia

de Japam, III, p. 60;

309 Omura Sumitada (1533-1587), baptizado D. Bartolomeu (ver capítulo dedicado família Omura e à conversão de

Omura Sumitada no estudo de Madalena Ribeiro, A Nobreza Cristã de Kyushu. Redes de Parentesco e Acção

Jesuítica, dissertação de mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Lisboa, UNL-

FCSH, 2006, pp. 51-72;)

310 Cf. Historia de Japam, I, p. 330; 311 Cf. Historia de Japam, III, p. 45;

adaptações alguns mosteiros, como o de Nijogi (ou Nilofi312), em Sunokuni que, segundo

as fontes, foi mesmo uma “das melhores igrejas naquelas partes”313.

No entanto, nem sempre era obrigatória a transformação da “varela” em igreja para que os padres nela se instalassem. O padre Gaspar Vilela ao chegar a Nagasaki, ainda “logar inculto”, recebeu um templo para nele se instalar e depois adaptar a igreja, que só foi possível após a criação de uma comunidade cristã mais numerosa, passando esta igreja a designar-se de Todos os Santos314, mas que acabou por ser destruída por

um incêndio, em 1573. Por vezes, os templos podiam sofrer alterações pontuais, como a edificação de uma varanda315, ou a colocação de um tanque para a lavagem dos pés,

sem que o edifício original tivesse que passar por profundas mudanças para passar a acolher uma igreja católica.

Assim se verifica como não havia qualquer tipo de pudor ou receio na reutilização destes espaços. Os edifícios tinham um valor intrínseco, ou seja, valiam sempre enquanto estruturas edificadas, pela dificuldade que muitas vezes havia em arranjar locais dignos e confortáveis, mas também porque, de alguma forma, a sua distribuição interna e articulação espacial permitia uma transição relativamente tranquila de uma religião para outra. Na verdade, a existência de um altar, com imagens expostas, no topo de uma estrutura ampla e preparada para receber uma vasta audiência, não era muito diferente das necessidades que os missionários jesuítas tinham. Em termos arquitectónicos não havia, portanto, barreiras intransponíveis.

No entanto, a missão jesuíta no Japão não era atravessada por uma homogeneidade de pensamento e de acção, e naturalmente que nem todos os missionários encaravam de forma pacífica estas transições de templos em igrejas. Muitos deles consideravam um pré-requisito indispensável a destruição do templo, mesmo que fosse construída a igreja no mesmo local316. Casos houve em que a própria comunidade

destruiu o templo para que, quando a oportunidade surgisse, fosse construída uma igreja

312 Cf. Carta de Luís Fróis, Nagasaki, 02.01.1584, CE, tomo II, fl. 102; 313 Cf. Historia de Japam, IV, p. 30;

314 Cf. Historia de Japam, II, p. 324;

315 Cf. Carta de Luís de Almeida, Yokoseura, 17.04.1563, CE, tomo I, fl. 125;

316 “[Takayama Ukon Justo] buscou o mais apto e conveniente sítio que alli havia, aonde primeiro estivera huma

varela de bonzos, aonde edificou huma igreja de madeira grande que lhe custou mais de trezentos cruzados.”,

no seu lugar317, não sem antes marcar o lugar enquanto cristão, com a colocação de

cruzes e bandeiras318. Pensamos que nestes casos existia uma necessidade de

demarcação e distanciamento claro da realidade budista, que obrigava a estas tomadas de posição mais drásticas, provavelmente em reacção a posições extremistas das comunidades de não baptizados e dos próprios monges.

Os principais patrocinadores deste tipo de doações foram, naturalmente, senhores convertidos ao cristianismo, como forma de apoio à sua nova religião, mas também antigos monges budistas baptizados, que chegaram a transformar as suas residências e igrejas319. No entanto, e como em todos os casos já relatados, também

aqui encontramos gentios que por sua iniciativa entregaram templos aos padres para posterior ocupação, ou adaptação320.

Contudo, estas ocorrências não nos permitem saber se foram ocupados mais templos budistas que xintoístas, ou se se preferia um em detrimento do outro. Pensamos, no entanto, que a grande maioria dos casos registados se reportam a templos budistas, até porque quando sabemos efectivamente que foi entregue um mosteiro xintoísta, este vem mencionado na documentação321. Como vimos no segundo capítulo deste trabalho,

o panorama religioso japonês não impossibilitava de forma nenhuma a circulação de formas e conceitos entre o Budismo e Xintoísmo, bem pelo contrário. O sincretismo religioso definiu não só numa contaminação de ritos e doutrinas, mas também de arquitecturas, o que ajuda a compreender que um gentio desse um templo para igreja.

No período posterior ao édito de 1587, registaram-se casos de transformação inversa, ou seja, de igrejas em templos, embora tenham sido casos muito pontuais322,

317 Cf. Historia de Japam, II, p. 141

318 “[os recém-baptizados derrubaram alguns templos xintoítas] aplicando logo o sítio pera nele se fazer logo huma

igreja, e levantar huma cruz [...] e assi levantamos uma fermoza e alta cruz, que foi o primeiro estandarte de Cristo que naquele reino se alevantou”, carta de Luís Fróis, Kuchinotsu, 31.10.1582, CE, tomo II, fl. 58v;

319 “Depois que ouviu alguns dias as couzas de Deos e fez dellas bom entendimento, o baptizou o Padre, e da

varela em que o bonzo residia fez o Padre huma igreja e levantou alli huma cruz aonde os christãos dalli por diante se havião de enterrar”, Historia de Japam, II, p. 76; “[um monge que se converteu ao Cristianismo] e que em reconhecimento desta misericordia offerecia tambem sua caza e sítio que tinha pera se fazer alli huma hermida de Nossa Senhora e sua pessoa para nella ser hermitão se assim parecesse bem ao Padre”, Historia de Japam, III, p. 297; cf. Historia de Japam, IV, p. 428;

320 “A varella que nos deo o tono hé muito capaz e tem boas cazas para se habitar nellas, e com pouco gasto de

podem bem acomodar”, Historia de Japam, IV, p. 501;

321 “[vice-rei Vatodono não era cristão, mas tinha decidido favorecer o padre e fazer-lhe uma igreja na sua fortaleza]

e pera isso ei de tomar um templo grande dos camis que está hum pedaço fora da fortaleza”, carta de Luís Fróis, Kyoto, 12.07.1569, CE, tomo I, fl. 276;

tendo em conta as fontes disponíveis. Pensamos que devia existir um maior preconceito e pudor em reutilizar um espaço onde anteriormente tinha sido veneradas divindades estrangeiras. Por isso, as igrejas acabavam invariavelmente por ser desmanteladas, aproveitando-se a sua madeira para outras construções, como era recorrente, ou então eram reocupadas enquanto casas e residências, ou mesmo como armazéns, como tinha sido desejo de Hideyoshi para a igreja de Nagasaki.