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O jovem e a sociedade: os movimentos de formação do indivíduo

A adolescência – uma fase compreendida durante os anos da juventude31 – caracteriza-se, principalmente, pela tentativa de afirmação de nova identidade, já que os padrões de comportamentos da infância são considerados socialmente inadequados nesta fase, levando o sujeito ao “reajustamento psicológico” para seu novo posicionamento no mundo. Devido à forma como as exigências de novos comportamentos e postura ocorrem e são internalizadas pelo adolescente, é que se estabelecerá seu relacionamento com o meio social. A lógica da identidade, que é a base da ideologia da sociedade atual, constitui a exigência máxima de formação dos indivíduos segundo os padrões psíquicos e comportamentais necessários à época em questão; constitui a força ameaçadora que inibe as manifestações do diferente, do não- idêntico. Um maior ou menor sentimento de ameaça pode gerar, assim, certa instabilidade emocional e necessidades de auto-afirmação, como tentativas de formação da identidade frente a tais ameaças. Mas, o processo de afirmação de uma nova identidade que também deveria resultar na construção da individualidade e, portanto, no incremento da autonomia dos indivíduos, pode, de outro modo, converter-se num mero processo de adaptação dos jovens ao sistema social. Se assim for, toda e qualquer possibilidade de resistência frente à imposição de uma identificação imediata de sujeito e objeto pode ficar paralisada32.

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GIOVINAZZO JR (2003), fundamentando-se em Erikson (1987), faz uma importante diferenciação entre os termos jovem e adolescente. Para ele, o primeiro “(...) designa a condição do indivíduo

pertencer às novas gerações e de estar vivendo um processo de educação e socialização que visa a sua inclusão na vida adulta, processo este vivido na escola, na família e no âmbito de outras instituições”;

enquanto que o segundo, “(...) refere-se à fase de desenvolvimento pela qual passam os indivíduos das

novas gerações que é caracterizada, principalmente, pela tentativa de afirmação de uma identidade em contraposição tanto à infância como à maturidade.” Embora essa diferenciação seja necessária, o autor

chama a atenção para o caráter social do conceito de adolescência, “(...) que pode ser interpretada

como uma ‘moratória psicossocial’ concedida aos jovens para que a transição da infância para a maturidade aconteça regida por determinados padrões em consonância com a ordem estabelecida e sob formas de controle que regulam até mesmo as transgressões e as resistências, toleradas desde que não signifiquem rompimento com os valores aceitos socialmente.” (p. 14-15).

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GIOVINAZZO JR (2003), ao discutir em seu estudo como alunos adolescentes se posicionam diante do seu contexto escolar, aborda que a consciência acerca desse posicionamento, bem como as possibilidades de resistência frente a esse contexto estão delimitadas “(...) pelo peso que as condições

objetivas exercem sobre os indivíduos (...)”, resultando em interpretações estereotipadas de temas e

situações, “(...) o que paralisa o movimento do sujeito e do objeto e dificulta a reflexão e a auto-

Conforme se assinalou no final do capítulo anterior, para ADORNO (1986a), a possibilidade do indivíduo contrapor-se à adaptação – um feito dificultado pela aparente inexistência de conflitos sociais, camuflados pelo véu totalizador – residiria na existência de contradições do próprio indivíduo, ou seja, na compreensão deste a partir do conflito entre consciente e inconsciente, representando a tensão entre as forças sociais introjetadas e suas forças pulsionais.

Essa compreensão acerca do conflito interno do indivíduo já está presente em FREUD (1988), em sua teoria sobre a libido, exposta no terceiro ensaio de sua teoria da sexualidade, de 1905, em que o autor discute as transformações que ocorrem no período da adolescência. A libido é concebida como a energia psíquica que em parte permanece no ego e em parte se dirige aos objetos; durante a puberdade, o encontro com o objeto é, na verdade, um reencontro, pois nesse período há uma revivescência do complexo edípico e uma atualização das fantasias infantis, o que se constitui como um processo bastante complexo e doloroso ao sujeito, uma vez que a escolha de objetos aos quais será investida sua libido significa também “(...) o

desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e velha gerações.”

(FREUD,1988, p. 214).

Esse desligamento da autoridade representada pelas figuras parentais é o que permite ao indivíduo opor-se à cultura existente e realizar novas experiências sociais; mas tal oposição é também fonte de sofrimento ao indivíduo, já que a civilização o pressiona a todo o momento a abrir mão de sua satisfação pulsional, em prol de seu progresso, conforme assinala o próprio FREUD (1976b), mais adiante, em sua obra O mal estar na civilização, de 1930: “(...) é impossível desprezar o ponto

até o qual a civilização é construída sobre uma renuncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não satisfação (...) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos” (p. 118). A civilização é apontada por Freud como meio regulador do

indivíduo, em que o ajustamento de suas pulsões à ordem social é condição de sua vida em sociedade.

A importância das tensões (internas) no indivíduo e da tensão entre este e a sociedade, destacada por Freud – de modo mais pronunciado em sua primeira tópica – como motor de transformações comportamentais, geracionais e sociais,

especialmente no período da adolescência, é deixada de lado por outros autores, como Anna Freud e Erik Erikson.

De acordo com Anna FREUD (1974), as tensões e os conflitos presentes na adolescência se dão em virtude de idealizações do adolescente em relação ao mundo adulto, produzindo um descompasso entre o jovem e a sociedade. Desse modo, para a autora, a ambivalência típica da juventude, ao contrário de Freud, não é vista como força transformadora, mas tem conotação negativa, ou seja, é concebida como desequilíbrio que deverá ser “corrigido” por meio do fortalecimento das defesas egóicas. Os mecanismos de defesa atuariam, assim, no sentido de favorecer um processo de desenvolvimento que possibilitasse a contenção das forças pulsionais e sua adaptação aos padrões sociais, dirimindo os conflitos existenciais e geracionais dos adolescentes. A intelectualização seria, para a autora, um desses mecanismos defensivos, dos quais o jovem deve lançar mão para que possa resolver os conflitos típicos desse período.

Partilhando de posição semelhante à de Anna Freud quanto à ênfase nas defesas egóicas – considerando-se, contudo, os diferentes argumentos de cada autor –, ERIKSON (1976), também aponta para a necessidade de fortalecimento das defesas psíquicas; isso seria importante para que o adolescente possa resolver suas “confusões

de identidade”, presentes, segundo o autor, com maior intensidade na primeira fase da

adolescência, devido às modificações fisiológicas e sociais desse período inicial. Para ERIKSON (1976), o fortalecimento egóico – e, conseqüentemente a formação de sua identidade, que implicaria na aquisição de confiança em si mesmo para que possa efetuar escolhas e decisões livremente, e em sua definição sexual e profissional – se dá na medida em que o adolescente se adapta, ao longo de seu processo de desenvolvimento, às exigências e pressões sociais. Concebida como período de adaptação, o significado social da adolescência é, segundo o autor, de uma

“moratória”, que funciona como um tempo de acolhimento das dificuldades do

adolescente frente à “integração dos elementos de identidade” (p. 129), ou seja, como uma espécie de período de tolerância para seu ajustamento aos novos papéis sociais33. A identificação dos jovens com esses novos papéis sociais – e, por conseguinte a

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Segundo Helena Abramo, essa moratória pode ser compreendida como um “adiamento dos direitos e

deveres da produção, reprodução e participação, um tempo socialmente legitimado para a dedicação exclusiva à formação para o exercício futuro dessas dimensões da cidadania.” (ABRAMO e

resolução (esperada) de suas “confusões de identidade”, de seus conflitos e instabilidades, propiciando ao adolescente, de acordo com o autor, maior fortalecimento egóico e consciência sobre o mundo – ocorre conforme eles se inserem em organizações e grupos sociais e se adequam às tendências tecnológicas e econômicas da sociedade.

As concepções de Anna Freud e Erik Erikson sobre a adolescência com ênfase nos aspectos psicológicos defensivos, além de reduzirem a psicanálise à psicologia do eu – desconsiderando a atuação de forças inconscientes nos indivíduos –, recaem no apelo adaptativo do indivíduo à sociedade.

Diferentemente do simples determinismo societário desses autores, a compreensão crítica da determinação social dos indivíduos não se opõe ao entendimento desses pelo conflito entre consciente e inconsciente; ao contrário, considera que as contradições sociais também podem ser reveladas ou reconhecidas por meio da reflexão sobre as contradições presentes do sujeitos34 – ou conforme a proposta de ADORNO (1986a) de se investigar as condições subjetivas da irracionalidade objetiva. Assim, para se compreender a totalidade pode-se partir da identificação do movimento do particular, que não se configura de igual modo entre os diversos sujeitos e contextos sociais e nem se reproduz em cada um deles de forma idêntica à sua ocorrência social, mas atualiza-se no confronto entre as exigências da realidade e as necessidades pulsionais. É esse movimento diferenciado do particular frente à realidade objetiva que o constitui que pode resultar em oposição a ela.

Se forem tomadas em consideração as concepções Anna Freud e Erik Erikson, afasta-se de uma compreensão sobre as diferenciações individuais e sobre o fato de que as novas experiências sociais que se abrem nesse período possam se traduzir para os adolescentes em profícuos momentos de reflexão sobre o mundo e sobre si mesmo.

Em perspectiva diferente desses dois autores e fundamentando-se nas concepções da Teoria Crítica da Sociedade e nos conceitos psicanalíticos freudianos sobre a importância dos conflitos individuais para a dinâmica da sociedade, FREIRE (2003, p. 06) considera:

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Retoma-se aqui a dialética entre sujeito e objeto, em que o primeiro é determinado pelo segundo (e por isso pode revelá-lo); por seu turno, o objeto se constitui como um objeto porque pode ser apreendido por um sujeito, do qual, portanto, se diferencia.

“As características adolescentes das ações impulsivas e dos questionamentos das verdades possibilitam-lhes uma aproximação dos aspectos essenciais dos homens – seu estar no mundo e a essência das relações – que podem gerar o fortalecimento egóico contra ilusões sociais e as tendências de debilitar o eu mediante do investimento em seus aspectos defensivos. Recriminar o adolescente por sua ambivalência é, primeiro, negar a existência desse mecanismo nos adultos e, segundo, impedir que a dúvida esteja presente como motor de transformação.”

O fortalecimento egóico, discutido pela autora, se dá à medida que as contradições internas do adolescente (e dos indivíduos, de um modo geral) são vividas intensamente por ele diante da realidade e daquilo que lhe foi colocado como verdade. A postura questionadora do adolescente frente ao mundo lhe permite contrapor-se criticamente aos mecanismos de integração da sociedade que visam padronizar suas experiências sociais e seria, desse modo, o passo fundamental em direção à sua tomada de consciência individual e social. Tal postura, própria da juventude, constitui-se, em si mesma, um elemento (potencial) de protesto, de recusa aos padrões socialmente estabelecidos.

A possibilidade de recusa (e resistência política) dos jovens havia sido apontada por Herbert Marcuse, na década de 1960, no tocante ao movimento estudantil. Em entrevista concedida e publicada em 1969, ele afirma: “Desde 1964

chamei a atenção para o significado do movimento estudantil e disse que, na minha opinião, existia ali algo mais e muito diferente de um conflito de gerações, tal como é por demais conhecido em nossa tradição; que ali elementos políticos são realmente ativados como em nenhum outro grupo ou classe social” (MARCUSE, 1999b, p. 72).

Para Marcuse, tanto nessa entrevista como em outras publicações35, a juventude desse período desponta como força potencial de oposição política ao sistema capitalista. Em face da cooptação da classe trabalhadora pelo capital na sociedade afluente, a juventude aparecia, por meio de suas diversas manifestações e protestos, como a “nova classe” em que as “esperanças de um mundo melhor” poderiam ser depositadas; embora, em alguns momentos, o próprio Marcuse tenha reconhecido que, apesar de revoltosa, essa juventude (ou mais precisamente o movimento estudantil) não era revolucionária: “(...)

considero a oposição estudantil como um dos elementos decisivos do mundo atual; não como uma força imediatamente revolucionária (...), mas como um fator entre aqueles

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No Prefácio Político de Eros e Civilização, de 1966; em sua fala aos estudantes norte-americanos, em maio de 1968, ou aos estudantes alemães, no mesmo ano; ou em suas últimas correspondências com Theodor Adorno, em 1969.

que poderiam um dia, mais facilmente transformar-se numa força revolucionária”

(MARCUSE, 1969, p. 51), ou nas correspondências com Adorno: “Naturalmente,

nunca afirmei o absurdo que o próprio movimento estudantil seria revolucionário.”

(LOUREIRO, 1997, p. 15). Era no protesto radical de tal movimento que o autor identificava o princípio da resistência aos modos de agir, pensar e sentir necessários à reprodução da sociedade capitalista. Na “nova mocidade que se recusa e se rebela” se encontraria, para o autor, a possibilidade da “junção das dimensões erótica e política”, a partir da qual a verdadeira liberdade humana (“a libertação das necessidades

instintivas de paz e tranqüilidade, do Eros ‘associal’ autônomo”, emancipado de

qualquer repressão social) poderia realizar-se, já que a recusa deveria resultar em uma transformação estrutural da sociedade industrial (MARCUSE, 1968).

Segundo ele, a recusa dos jovens teria um caráter “natural”,

“instintivo” (MARCUSE, 1968) ou “espontâneo” (MARCUSE, 1999b), o que

ultrapassaria o sentido das organizações tradicionais, sendo, por isso, “irreconciliável

com os requisitos da economia de mercado” (MARCUSE, 1968, p. 20), não estando,

portanto, a serviço da reprodução do capital. É esse caráter instintivo que asseguraria a essa revolta ser uma luta pela vida, uma luta contra a civilização e em defesa de Eros. Para o autor, era premente, portanto, que a recusa “natural” dos jovens pudesse se converter em uma recusa organizada (mas não no sentido ortodoxo ou partidário), constituindo uma luta “erótica” e política” ao mesmo tempo – ou seja, em favor de Eros e da liberdade e contra um sistema político e econômico de opressão social.

Nas cartas trocadas com Adorno, no período de abril a julho de 1969, Marcuse defendia veementemente o movimento estudantil como “o mais forte e

talvez o único catalisador para a decadência interna do sistema de dominação”

(LOUREIRO, 1997, p. 15); como o principal meio a partir do qual os jovens poderiam desenvolver sua consciência política. Entretanto, o autor reconhecia que, devido ao grau de integração a que se chegou nos países industriais desenvolvidos, tal movimento estava longe de ser revolucionário e carecia sobremaneira de uma teoria e de uma prática, em que sua organização política pudesse se respaldar, para fazer frente de forma mais eficaz ao capitalismo.

Em contrapartida, Adorno considerava que os meios empregados pelos jovens para a expressão de sua revolta guardavam tanta violência quanto os utilizados pela sociedade capitalista para a manutenção do status quo, e que, portanto, o

movimento estudantil poderia transformar-se em seu oposto: em um “fascismo de

esquerda”36, nas palavras de Habermas, utilizadas por Adorno em suas cartas, e dava a todo o momento “provas de uma regressão calculada”. O problema, segundo Adorno, estava na forma imediata como a teoria fora apropriada e tornada prática – um

“praticismo monótono e brutal”. Tal imediatismo na conversão da teoria em prática,

para ele, não teria levado em conta os limites e as contradições da sociedade e do próprio protesto estudantil (as especificidades da relação entre o objeto e o sujeito: as aproximações e as diferenciações entre ambos; o movimento dialético de negação e integração na qual se funda essa relação), perdendo, com isso, o movimento de crítica e autocrítica; essa última fundamental para evidenciar o “elemento de frieza em cada um

de nós”, imprescindível à reflexão e à contenção do imediatismo da ação (LOUREIRO,

1997, p. 9-10).

Essa exposição sobre as divergências de opinião expostas nas cartas entre os autores no tocante à díade adesão-resistência dos jovens às forças objetivas do capitalismo é relevante para se compreender o movimento de busca de autonomia dos jovens na sociedade atual, considerando-se não somente as características desse período da vida denominado juventude, mas as contradições presentes na formação do indivíduo (que podem resultar em adesão ou resistência às forças heterônomas) como contradições produzidas pelo próprio movimento da sociedade.