• Nenhum resultado encontrado

Pseudoindividuação e integração social: do aparente ao contraditório

Se a ideologia da integração social reforça a irracionalidade dos indivíduos é porque precisa manter “contidas” e limitadas forças psíquicas que, apesar de estarem latentes, poderiam se voltar, sob condições favoráveis, contra a própria integração – conforme se assinalou antes acerca do ressentimento sobre o qual se assenta esse “igualitarismo repressivo”, nas palavras de CROCHÍK (2006, p. 160).

Compreender tal irracionalidade – ponto pelo qual o indivíduo é aprisionado pela manipulação ideológica e ao qual fica reduzido na sociedade atual,

afastando-se de sua racionalidade – e os mecanismos sociais que a suscitam e a reforçam cotidianamente é passo fundamental rumo ao esclarecimento acerca da regressão psíquica dos indivíduos e de suas possibilidades de resistência frente à integração social.

A fim de que não haja nenhum espaço para a contradição e para que possíveis forças de resistência individual possam ser eficazmente suprimidas, é necessário que cada vez mais, no processo de integração, se aumente a pressão social sobre o indivíduo, para que se renda completamente à totalidade.

Segundo ADORNO (1986a, p. 58),

“El concepto de integración que hoy se abre paso cada vez más (...) niega el principio genético e hipostasía seguidamente fuerzas psíquicas supuestamente originarias, tales como conciencia e instinto, entre las cuales ha de producirse un equilíbrio, en lugar de ser concebidas como momentos de uma autodesavenencia que no puede ser resuelta em la esfera psíquica.”

Isso quer dizer que, em movimento oposto àquele coordenado pela ideologia da integração, é necessário se entender o indivíduo a partir do conflito entre suas instâncias psíquicas (consciente e inconsciente), preservando a contradição entre elas; mas, para além disso e fundamentalmente, é preciso compreender que tal contradição não pode ser resolvida na esfera psíquica, já que não é inerente (e nem se limita) a ela, mas existe devido à cisão do próprio objeto, à cisão entre indivíduo e sociedade – “(...) os sujeitos que a psicologia se propõe a examinar não são somente

influenciados pela sociedade, como se diz, mas são formados até o âmago por ela.”

(ADORNO, 1986c, p. 58). Tal cisão tem gênese social e histórica, sendo desencadeada a partir do próprio desenvolvimento das forças capitalistas, que, ao se constituírem, apartaram o indivíduo da sociedade (mônada psicológica), não permitindo que ele se reconhecesse nela e nos demais indivíduos. Não é na mera conciliação entre ambos, nem, ao contrário, no fortalecimento dessa cisão (apreendendo-se o indivíduo e a sociedade como categorias isoladas uma da outra), que residiria a possibilidade de crítica e resistência do indivíduo – ambas as condições são ideológicas. Mas, é na reflexão sobre tal fragmentação que se pode buscar o fundamento da contradição social. Tal reflexão (sociológica) deve ser mediada por uma compreensão (epistemológica) acerca da relação entre sujeito e objeto, desenvolvida, brevemente, a seguir.

Segundo ADORNO (1995e), a relação esses dois pólos é ambígua, uma vez que pressupõe uma separação entre ambos, mas uma separação que ao mesmo tempo é “real e aparente”, verdadeira e falsa, porque, respectivamente, de um lado expressa “o cindido da condição humana” mas, de outro, essa separação “não pode ser

hipostasiada e transformada em invariante”, pois, se assim fosse se converteria em

ideologia: “A separação torna-se ideologia, exatamente na sua forma habitual, assim

que é fixada sem mediação” (ADORNO, 1995e, p. 182-83). Em outras palavras, é essa

separação que permite ao sujeito pensar-se como algo distinto do objeto (verdadeira), mas que é mediado e determinado por esse, do mesmo modo que o objeto encontra-se mediado pelo sujeito (falsa). Dessa forma, separação não significa ausência de relação; tampouco a relação sujeito-objeto se realiza por meio da identificação imediata ou indiferenciação entre ambos – falsa mimese. A relação entre sujeito e objeto deve ser permeada pela diferenciação dos mesmos, sem que essa recaia na reconciliação total ou na extrema antítese entre ambos. Diferenciação, aqui, deve significar possibilidade de comunicação entre sujeito e objeto, “a comunicação do diferenciado” – conforme se assinalou antes, onde haja medição recíproca, e não supremacia de um sobre o outro, que implicaria, para ADORNO (1995e), numa “relação de paz”: “Paz é um estado de

diferenciação sem dominação, no qual o diferente é compartilhado” (p. 184). Portanto,

essa “relação de paz” pressupõe uma relação dialética entre sujeito e objeto, na qual a “primazia do objeto” deve estar contemplada. Primazia do objeto não significa a negação do sujeito, mas sim que este deve voltar-se sobre si mesmo para perceber-se como objeto; para apreender-se objetivamente como cultura apropriada que é, mediada pela subjetividade (que, por sua vez, também é – mas não apenas – objetividade). Desse modo, essa lógica do objeto preserva o sujeito, pois o apreende como determinado materialmente, objetivamente, afirmando-o, por isso mesmo, como sujeito: a objetividade é mais do que referência, é condição para o sujeito subjetivar-se e objetivar-se. De acordo com ADORNO (1995e, p. 187-88): “(...) a primazia do objeto

significa que o sujeito é, por sua vez, objeto em um sentido qualitativamente distinto e mais radical que o objeto, porque ele, não podendo afinal ser conhecido senão pela consciência, é também sujeito.”

Mas, se essa lógica do objeto implica na compreensão da subjetividade como “configuração do objeto” (p. 191), ela também reconhece o quanto o objeto é mediado pelo sujeito, embora aquele “não está tão absolutamente referido ao

sujeito como o sujeito à objetividade”(p. 188). A esse respeito, ADORNO (1995e,

p.188) pondera:

“Se se quiser, entretanto, alcançar o objeto, suas determinações ou qualidades subjetivas não devem ser eliminadas: isso contradiria, precisamente, a primazia do objeto. Se o sujeito tem um núcleo de objeto, então as qualidades subjetivas do objeto constituem, com ainda maior razão, um momento do objetivo. Pois o objeto torna-se algo somente enquanto determinado. Nas determinações que aparentemente o sujeito apenas lhe agrega, impõe-se a própria objetividade do sujeito (...)”

Desse modo, o entendimento acerca das relações de medição entre sujeito e objeto permitem concebê-los como determinados mutuamente e dialeticamente: o objeto somente se torna objeto enquanto apreendido pelo sujeito, o qual é objeto enquanto consciência objetivada que é, mas que, no entanto (e em relação ao próprio objeto), não é somente isso.

Essa dialética entre sujeito e objeto materializa-se na dialética da relação entre a sociedade e os homens. Para ADORNO (1986c, p. 58), “a sociedade é

um processo global, no qual os homens, abrangidos, dirigidos e formados pela objetividade, mesmo assim, por um turno, reagem sobre ela (...). A autonomia dos processos sociais não e algo em si, mas estriba na reificação; também os processos alienados dos homens permanecem humanos.”

Sociedade e indivíduo somente podem ser reconhecidos em sua reciprocidade, na qual se constituem, respectivamente, como: meio de formação dos indivíduos e, ao mesmo tempo, produto das relações entre eles; e cultura subjetivada e a negação dessa cultura, como natureza não dominada.

Tendo-se em vista essa dialética, as possibilidades de contradição social – em que pese o avançado processo de integração na sociedade atual – podem ser iluminadas, a partir do entendimento da sociedade e do indivíduo pela sua negatividade e como negação determinada.

Assim, não se pode perder de vista, conforme se disse antes, que o desenvolvimento das forças sociais, se, de um lado, visa reforçar a irracionalidade dos indivíduos, distanciando-os de sua emancipação e liberdade, pode, de outro lado, contribuir com o fortalecimento do indivíduo, já que lhe fornece condições materiais de sobrevivência que podem possibilitá-lo avançar para além delas, e perceber as contradições sociais dissimuladas sob o véu totalizador. Nesse sentido, o indivíduo

pode ser pensado, para além de sua alienação social, como constituído pelo conflito imanente à contradição social, guardando por isso a possibilidade de resistência e autonomia.

Tal conflito é mais evidente nos jovens que nos adultos (embora esteja presente nestes, mas não se expresse de forma tão espontânea como nos jovens) e, talvez – por não estarem completamente adaptados ou integrados ao sistema nesse momento de suas vidas, o que os contrapõe, muitas vezes, a formas de pensamento, de conhecimento e de comportamento que se orientam de acordo com a norma social –, isso possa representar um potencial de resistência maior na nova geração do que nos adultos.

ADORNO (1986a), tece críticas a Anna Freud, em cuja revisão da psicanálise freudiana, recrimina os adolescentes em sua ambivalência e recai na negação do conflito nos adultos:

“Si lo que Anna Freud llama ‘comportamiento de los adolescentes’ difiere siempre del contenido de su conciencia – por razones no menos reales que psicológicas -, esta diferencia contiene justamente un potencial mayor que la norma de identidad no mediatizada entre ser y conciencia: que uno sólo puede pensar a tono con sua existencia. Como si en los adultos estuviese ausente la desconsideración, la deslealtad, la torpeza que Anna Freud recrimina a los ‘adolescentes’ – sólo que la brutalidad pierde más tarde aquella ambivalencia que, por lo menos, todavia les es propria mientras choca con el conociemiento, en pos de lo mejor posible, e incluso se dirige contra aquelllo con o cual se identificará más tarde.” (p. 70)

O autor reconhece na “juventud quimérica” a existência do conflito, decorrente não só dos dinamismos psicológicos, mas fundado nas contradições objetivas. Desse modo, é por meio da ambivalência que medeia as relações objetais dos adolescentes, ou seja, no confronto entre seus ideais, sonhos e idéias (aquilo que constituiria o menos ordinário em sua intelectualidade) e as demandas da objetividade (o “sentido ordinario” da cultura) que estaria a possibilidade de contraposição ao existente.

Cabe, portanto, realizar uma reflexão sobre a juventude a fim de se verificar em que medida, como uma categoria histórica, ela vem resistido ou sucumbido à integração social.