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2. TEORIAS DE FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO À TERRA INDÍGENA

2.3 Direito originário à terra com base no fato indígena

2.3.2 O julgamento da Petição 3388 e a definição do conteúdo positivo do ato de

Trata-se a Petição 3388/RR de uma ação popular. Esse tipo de ação é manejada por qualquer cidadão visando anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (art.5º, LXXIII, CF/88). Prevê o art.5º da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, que também disciplina a matéria, que a competência para julgamento da ação será definida conforme a origem do ato impugnado, sendo a priori da Justiça dos Estados, do Distrito Federal ou da União. Contudo, no caso da Petição 3388, a ação foi admitida no STF em virtude de o próprio tribunal ter reconhecido, nas Reclamações nº 2.833 e 3331-7, a sua competência para julgar todas as ações acerca da TI RSS, por existência de conflito entre a União e o Estado de Roraima – que também envolvia os Municípios de Uiramutã e Pacaraima -, com incidência do art.102, I, f, CF/88.

A Petição 3388 foi ajuizada contra a União pelo Senador Augusto Affonso Botelho Neto em 20 de maio de 2005, com o fito de impugnar o modelo de demarcação contínua da TI RSS, que traria, segundo ele, prejuízo para a economia do Estado de Roraima, vez que os não índios que habitavam a área deixariam de produzir e de cultivar a terra, além de comprometer a segurança e a soberania nacionais, por tratar-se de região de fronteira. Ademais, alegava que uma significativa parte do território estadual passaria ao domínio da União. Além desses motivos de ordem fática, sustentava o autor que o processo de demarcação padecia de vícios insanáveis, como a parcialidade do laudo antropológico estariam localizadas em terras indígenas; a Ação Popular nº 1999.42.00.000014-7, promovida por Silvino Lopes da Silva e outros na Justiça Federal, seção judiciária de Roraima, com o fito de suspender e anular a Portaria 820/98, primeira a declarar a TI RSS; e as Reclamações nº 2.833 e 3331-7, propostas pelo PGR no STF, nas quais ficou evidenciado o conflito existente entre União e Estado de Roraima, configurando a hipótese do art.102, I, f, CF/88, razão pela qual restou fixada a competência daquela Corte para julgar todas as ações envolvendo a TI RSS, apenas para citar alguns exemplos.

assinado por Maria Guiomar de Melo, a ausência de oitiva de todos os interessados e a diferença entre a área da Portaria nº 820/98 e a da Portaria nº 534/2005. Ao final, requeria liminarmente a suspensão dos efeitos da Portaria nº 534/2005, bem como do respectivo decreto homologatório e, no mérito, a declaração de nulidade da mesma portaria.

Posteriormente, outros sujeitos passaram a figurar no processo, como o Senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti e o Estado de Roraima, como assistentes do autor e de comunidades indígenas (Jawari, Tamanduá, Jacarezinho, Socó, entre outras) e da FUNAI como assistentes da União, apenas para citar alguns. A atuação desses sujeitos contribuiu para trazer aos autos relevantes documentos e informações para o desfecho da causa, mas também serviu para reforçar a complexidade da matéria que estava sendo enfrentada pelo Supremo.

O pedido liminar foi indeferido pelo relator, cuja decisão foi confirmada pelo colegiado quando da apreciação do recurso de agravo regimental interposto pelo autor, em sessão do dia 06 de abril de 2006. Em 19 de março de 2009 a ação foi julgada parcialmente procedente, sendo declarada a constitucionalidade da demarcação contínua da TI RSS e a inexistência de vícios no procedimento demarcatório, estabelecendo-se, contudo, dezenove salvaguardas institucionais ou condições impostas ao usufruto dos índios sobre suas terras20.

20 As salvaguardas ou condicionantes são as seguintes: a) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos

existentes nas terras indígenas (§2º do art. 231 da Constituição Federal) não se sobrepõe ao relevante interesse público da União, tal como ressaído da Constituição e na forma de lei complementar (§6º do art. 231 da CF); b) o usufruto dos índios não abrange a exploração mercantil dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos, que sempre dependerá (tal exploração) de autorização do Congresso Nacional; c) o usufruto dos índios não alcança a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que sempre dependerão de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, tudo de acordo com a Constituição e a lei; d) o usufruto dos índios não compreende a garimpagem nem a faiscação, devendo-se obter, se for o caso, a permissão de lavra garimpeira; e) o usufruto dos índios não se sobrepõe aos interesses da política de defesa nacional ; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho igualmente estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa, ouvido o Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas, assim como à Fundação Nacional do índio (FUNAI) ; f) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito das respectivas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às respectivas comunidades indígenas, ou à FUNAI; g) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; h) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, respeitada a legislação ambiental; i) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades aborígines, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes deles, indígenas, que poderão contar com a consultoria da FUNAI, observada a legislação ambiental; j) o trânsito de visitantes e pesquisadores não índios é de ser admitido na área afetada à unidade de conservação, nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; 1) admitem-se o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios em terras indígenas não ecologicamente afetadas, observados, porém, as condições estabelecidas pela FUNAI e os fundamentos desta decisão; m) o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios, respeitado o disposto na letra l, não podem ser objeto de cobrança de nenhuma tarifa ou quantia de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; n) a cobrança de qualquer tarifa ou quantia também não é exigível pela utilização das estradas, equipamentos

Segundo o relator, toda demarcação é, de fato, contínua, porque somente esse formato garante os recursos ambientais necessários à reprodução física e cultural de uma dada etnia (BRASIL.STF, 2009, p.311). Assim, a extensão da TI RSS foi considerada proporcional, vez que a demarcação não fica restrita a critérios matemáticos, mas ao disposto no §1º do art.231 da CF/88. O tribunal também afastou qualquer incompatibilidade entre terras indígenas e faixa de fronteira, sendo viável tanto a proteção dos territórios indígenas quanto a defesa nacional, até mesmo porque as regiões de fronteira abrigam considerável população indígena, fato conhecido do constituinte, não havendo, portanto, incongruências na Carta Magna ao regular essas matérias. A alegação de fragilidade de proteção das fronteiras pátrias não pode servir como óbice à demarcação, por tratar-se de garantia constitucional que viabiliza o reconhecimento de um direito originário.

Quanto às salvaguardas ou condicionantes, como ficaram conhecidas, as mesmas causaram muita polêmica à época, sob a crítica de que o STF estaria extrapolando a sua competência e criando regras em matéria de demarcação e, ainda, sem ouvir as partes e os demais sujeitos processuais. Na sessão do plenário de 23 de outubro de 2013, no julgamento dos Embargos de Declaração opostos ao acórdão, cuja relatoria coube ao Ministro Luís Roberto Barroso, restou decidido que tais condicionantes eram válidas e decorriam da própria Constituição Federal, não havendo que se falar em inovação, contudo, aplicavam-se apenas ao caso da TI RSS, como consta na ementa do julgado:

[...]

3.As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada. Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material. Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos.

públicos, linhas de transmissão de energia ou outros equipamentos e instalações públicas, ainda que não expressamente excluídos da homologação; o) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que atente contra o pleno exercício do usufruto e da posse direta por comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput. Lei nº 6.001/1973); p) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha às etnias nativas a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativista (art. 231, §2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/1973); q) as terras sob ocupação e posse das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da CR/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; r) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; s) os direitos dos índios sobre as suas terras são imprescritíveis, reputando-se todas elas como inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CR/88); t) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, situadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento.

4.A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões (BRASIL.STF, 2013, p.2). Na prática, as condicionantes acabaram tornando-se tão recorrentes do ponto de vista argumentativo que comumente são invocadas como regras insuperáveis, tanto administrativa quanto judicialmente, justamente por ostentarem esse status de uma decisão da Corte Suprema. Basta notar como o próprio STF refere-se às condicionantes, a exemplo do julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29.087, sobre controvérsia envolvendo a terra indígena Guyraroká, da etnia Guarani-Kaiowá, no Estado de Mato Grosso do Sul, cuja ementa do acórdão contém a afirmação de que são orientações aplicáveis a todos os processos de demarcação (BRASIL.STF, 2014a, p.1)21. No mesmo sentido, busca a União regulamentá-las no âmbito administrativo desde 2012, com a edição da Portaria AGU nº 303, de 16 de julho de 2012, e, atualmente, com o Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, aprovado pelo Presidente da República Michel Temer, o qual determina a aplicação das condicionantes aos processos administrativos de demarcação, vinculando todos os órgãos da Administração Pública Federal.22

21 O cerne do RMS 29.087 é na verdade o marco temporal, tendo em vista que laudo da FUNAI indicou não

existir comunidade indígena há mais de setenta anos, porém a observância das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol é reafirmada nesse julgado. Outro precedente que enaltece as condicionantes é o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29.542, versando sobre a TI Porquinhos dos Canela – Apãnjekra, situada no Maranhão, ocasião em que foi aplicada a salvaguarda institucional proibitiva de ampliação de terra indígena já demarcada (BRASIL.STF, 2014b, p.1).

22 Em 2012 foi editada a Portaria AGU nº 303, de 16 de julho de 2012, determinando a observância das

condicionantes pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta. A norma teve sua eficácia suspensa em razão dos embargos de declaração opostos ao acórdão da Petição 3388 e também do Ofício nº 260/Gab/Pres-Funai, de 23 de julho de 2012, que solicitava a oitiva dos povos indígenas sobre o teor da portaria (BRASIL. AGU, 2017, p.11). Após o julgamento dos embargos, permaneceu o impasse sobre a atribuição de efeito vinculante às salvaguardas de um caso específico, bem como se o meio para fazê-lo seria por portaria. Ocorre que em 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União despacho do Presidente da República Michel Temer aprovando o Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, o qual determina a aplicação das condicionantes aos processos administrativos de demarcação. O parecer foi a via eleita como adequada para conferir à matéria o efeito vinculante almejado em virtude do exposto no art.40, §1º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica da AGU), in verbis: "O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento". No entanto, essa nova tentativa da União também é alvo de críticas, a exemplo da manifestação do Ministério Público Federal na Nota Técnica nº 07/2017-6CCR, de 22 de novembro de 2017, no sentido de que o referido parecer reproduz irrefletidamente as condicionantes, sem analisar os seus efeitos e, ainda, baseando-se em apenas três precedentes pós-Raposa Serra do Sol (RMS nº 29087/DF, ARE nº 803.462/MS, RMS 29.542/DF), não representando, portanto, uma jurisprudência consolidada do STF (BRASIL. MPF, 2017, p.29). Posteriormente, o MPF elaborou a Nota Técnica nº 02/2018-6CCR, de 20 de março de 2018, na qual recomenda à AGU a declaração de nulidade do referido parecer normativo e aos servidores da Administração Pública Federal que não se escusem de dar fiel cumprimento à legislação (constitucional, internacional e infraconstitucional) sob pretexto de observância daquele parecer (BRASIL. MPF, 2018, p.54).

Além das condicionantes, outro ponto de destaque do acórdão é o conteúdo positivo do ato de demarcação, de onde se extrai a teoria do fato indígena, foco do presente trabalho. Segundo o STF, à luz da Constituição Federal de 1988, o ato de demarcação reúne quatro marcos regulatórios: o marco temporal da ocupação, o marco da tradicionalidade da ocupação, o marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional e o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”.

O marco temporal da ocupação é, indubitavelmente, o mais polêmico, pois a sua exigência não está expressa na Constituição, sendo fruto da atividade interpretativa do STF. Como mencionado, a sugestão de um marco temporal de ocupação para fins de demarcação de terras indígenas surgiu ainda no processo administrativo da TI RSS, quando o Estado de Roraima e o Município de Normandia sustentaram que a ocupação indígena deveria perdurar até a data da vigência da Constituição de 1988, o que não foi acolhido pelo Ministro da Justiça da época, Nelson Jobim, tendo em vista que desde a Constituição de 1934 as terras indígenas são alvo de proteção especial (NÓBREGA, 2011, p.95-97).

Judicialmente, no entanto, a tese do marco temporal ganhou força, tendo o relator afirmado que o próprio tempo do vocábulo "ocupam", no presente, no caput do art.231 da CF/88, sinaliza um marco objetivo:

Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988 (BRASIL. STF, 2009, p.295).

A partir desse marco temporal firmado pelo relator, o Ministro Menezes Direito, que havia pedido vista do julgamento, concluiu em seu voto que a ocupação é um fato a ser verificado, aduzindo que

"Terras que os índios tradicionalmente ocupam" são, desde logo, terras já ocupadas há algum tempo pelos índios no momento da promulgação da Constituição. Cuida-se ao mesmo tempo de uma presença constante e de uma persistência nessas terras. Terras eventualmente abandonadas não se prestam à qualificação de terras indígenas, como já afirmado na Súmula nº 6502324 deste Supremo Tribunal Federal.

Uma presença bem definida no espaço ao longo de certo tempo e uma persistência dessa presença, o que torna a habitação permanente outro fato a ser verificado (BRASIL. STF, 2009, p.380).

23 Súmula 650 do STF: Os incisos I e XI do art.20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos

extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto (BRASIL, 2003).

24 Incisos I e XI e caput do art.20 da Constituição Federal: São bens da União: [...] I - os que atualmente lhe

pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; [...] XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (BRASIL, 1988).

Essa presença constante dos índios em determinado espaço foi denominada por Menezes Direito de "fato indígena". Frisa o ministro que essa presença é qualificada pela cultura e pelo modus vivendi, o que remete ao segundo marco, o da tradicionalidade da ocupação, indissociável do marco temporal para fins de configuração do fato indígena. Significa dizer que apenas a ocupação segundo os usos, costumes e tradições de uma dada comunidade, com perdurabilidade coincidente com a data de promulgação da CF/88, autoriza o reconhecimento do direito à terra e o processamento da sua demarcação.

Assim, sendo a ocupação tradicional um fato, este pode ser verificado cientificamente, como explica Menezes Direito:

Se o problema das terras indígenas há de ser resolvido com base no fato indígena, como aqui se propõe, os procedimentos de identificação e demarcação devem servir para demonstrá-lo. Todo fato está sujeito a observação. O que pode variar são os instrumentos e métodos a serem utilizados para essa finalidade. A mim parece que esses instrumentos e métodos podem ser definidos pela antropologia. No entanto, essa ciência não pode se basear apenas em opiniões, conjecturas e, especialmente, generalizações. Mas é de ser considerada também a participação de outros especialistas. Se a garantia dos direitos dos índios exige a extensão de suas terras até um determinado ponto ou marco geográfico, é isso que deve ser demonstrado. Ao lado do método de indagação direta aos povos envolvidos cabe o cuidado do tema para saber, por exemplo, se os índios conhecem determinada área e se já a batizaram com um termo próprio; se não houver elementos arqueológicos a configurar a presença em determinado local, que se passe, por exemplo, para a observação dos deslocamentos dos índios, de modo a se definir até onde eles vão para com isso se descobrir quais são as áreas realmente utilizadas nos termos constitucionais, tudo obviamente documentado. O que se busca em um procedimento tão sério e de tão importantes repercussões para a vida nacional é uma clara demonstração do ponto de vista científico. Não basta apenas a existência de mapas indicativos de ocupação. Pode-se e deve-se ir além. Menciono, como exemplos, as possibilidades de se fotografar e marcar sítios utilizados ou abandonados e de se realizar levantamentos aérofotogramétricos das áreas utilizadas sazonalmente e comparativos com o recurso a imagens de satélites. Os mapas indicativos de ocupação constituem um bom exemplo de que não pode deixar de haver a oportunidade para manifestações de interesses contrários que podem, eventualmente, contestar as indicações feitas pelos grupos da FUNAI. A estes, por certo, não pode ser dado o poder absoluto de definir a área a ser ocupada com exclusividade pelos índios. Há que ser respeitada a disciplina constitucional sobre o contraditório e a ampla defesa (BRASIL. STF, 2009, p.388-389).

Por todo o exposto, o ministro propõe expressamente a suplantação da teoria do indigenato, visto que o fato indígena representa "uma escolha que prestigia a segurança jurídica e se esquiva das dificuldades práticas de uma investigação imemorial da ocupação indígena" (BRASIL. STF, 2009, p.381).

Salienta-se que a teoria do fato indígena comporta exceção. Trata-se do renitente esbulho, ou seja, da privação involuntária dos índios de suas terras, hipótese em que não se exige o atendimento do marco temporal em virtude da impossibilidade de ocupação das terras reivindicadas à época da data da promulgação da Constituição. O alcance do conceito de

renitente esbulho não foi explorado no julgamento da Petição 3388, sendo desenvolvido pela Suprema Corte alguns anos mais tarde, como será visto.

Por fim, quanto aos dois outros aspectos do ato de demarcação, têm-se os marcos da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional e o do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade. Esses marcos referem-se às dimensões da ocupação, de modo que devem ser demarcadas as terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar da comunidade e as necessárias