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4. AS TEORIAS DE FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO À TERRA INDÍGENA À

4.3 O fato indígena e o futuro das minorias no Brasil

4.3.1 Uma breve teoria dos precedentes judiciais

Já foi citado no Capítulo 2 que a decisão do caso Raposa Serra do Sol, apesar de não ter força vinculante, “ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País” (BRASIL.STF, 2013, p.2). Assim, faz-se necessário compreender melhor como essa decisão funciona na prática.

A decisão de mérito no caso Raposa Serra do Sol é tido como um precedente judicial quando o assunto é o ato de demarcação de terras indígenas. Juraci Mourão Lopes Filho define precedente da seguinte forma:

Precedente, portanto, é uma resposta institucional a um caso (justamente por ser uma decisão), dada por meio de uma applicatio58, que tenha causado um ganho de sentido

para as prescrições jurídicas envolvidas (legais ou constitucionais), seja mediante a obtenção de novos sentidos, seja pela escolha de um sentido específico em detrimento de outros ou ainda avançando sobre questões não aprioristicamente tratadas em textos legislativos ou constitucionais (LOPES FILHO, 2014, p.281- 282).

A partir do supracitado conceito, é possível extrair-se algumas conclusões sobre o precedente. A primeira delas é que, sendo uma resposta de um caso, o precedente é fruto de perguntas. Para o autor, a interpretação é um jogo de perguntas e respostas, por meio do qual o intérprete – no caso do precedente, geralmente o magistrado- vai construindo a decisão por meio da aplicação ao caso concreto de uma disposição legislativa ou constitucional (LOPES FILHO, 2014, p.282-283).

Outra conclusão é a de que a decisão só constitui um precedente quando representa um ganho de sentido ou ganho hermenêutico, consistente: na obtenção de novos sentidos; na escolha de um sentido específico em detrimento de outros; ou no avanço sobre questões não aprioristicamente tratadas em textos legislativos ou constitucionais. Esse ganho hermenêutico é da própria natureza do precedente, pois ele nasce para enriquecer o sistema jurídico de sentido, podendo ser utilizado, por isso mesmo, no futuro para a compreensão do Direito (LOPES FILHO, 2014, p.281-282).

58 A noção de applicatio adotada pelo autor vem de Gadamer e significa que interpretação e aplicação da norma

Cumpre esclarecer que o precedente como ganho hermenêutico serve para abrir o sistema jurídico a novas possibilidades e não para torná-lo fechado, funcionando como um paradigma coercitivo para os intérpretes posteriores. Longe disso, como explica Lopes Filho (2014, p.438):

Ao ser inserido no sistema, o precedente passa a ser moldado, trabalhado, erigido e reestruturado por seus vários operadores. Por essa razão, os critérios para uso ou não uso de um julgado não obedece exclusivamente a concepções formais pré-fixadas, ainda que prescritas por lei ou pela Constituição.

E acrescenta:

É necessário aferir os vários elementos que tornam um precedente mais ou menos relevante para o caso posterior, o que, além de elementos meramente formais, demanda uma análise de sua justificação e coerência ampla com outras fontes produtoras de sentido jurídico, afinal, o Direito não é apenas aquilo que os tribunais dizem o que ele é; nem os tribunais superiores nem o Supremo Tribunal Federal podem ser considerados ilhas cognitivas e de sentido, estão inseridos em uma rede sistêmica mais ampla (LOPES FILHO, 2014, p.438).

Uma terceira conclusão decorrente do conceito inicialmente apresentado é a de que o precedente ocasiona uma economia argumentativa. Significa dizer que o precedente proporciona aos julgados posteriores um ponto de partida, evitando-se o dispêndio de tempo com questões já anteriormente por ele solucionadas (LOPES FILHO, 2014, p.440).

Assim, o precedente ao ingressar em um sistema jurídico vem para aprimorá-lo e não para servir de óbice ao seu desenvolvimento. Pelo contrário, ele fomenta a exploração dos sentidos dos textos normativos, bem como põe à prova os sentidos já obtidos. Um precedente não é uma verdade inexorável, é um pronunciamento judicial passível de teste, uma matéria- prima que precisa ser lapidada e confrontada constantemente com a realidade na qual está inserida. É o que se está fazendo no presente trabalho, analisando-se o precedente que resultou na teoria do fato indígena.

Aliás, tal precedente tem sido reproduzido acriticamente por muitos juízes singulares e tribunais, até mesmo porque, como afirmou o relator da ação, Ministro Ayres Britto, o marco temporal funciona como “uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena” (BRASIL. STF, 2009, p.721). Ou seja, o precedente foi criado justamente para que fosse utilizado como um limitador do direito à terra, visando uma aplicação futura, como é o caso do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29.087, por exemplo.

O RMS 29.087 teve por objeto controvérsia envolvendo a terra indígena Guyraroká, da etnia Guarani-Kaiowá, no Estado de Mato Grosso do Sul. Ao final, foi dado

provimento ao recurso, declarando-se a nulidade do processo administrativo de demarcação da referida TI. O STF baseou-se no laudo da FUNAI, o qual indicava que há mais de setenta anos não existia comunidade indígena na área contestada, e reafirmou, na oportunidade, a observância das condicionantes e do marco temporal estabelecidos na Pet 3388 (Raposa Serra do Sol). Até aí nenhuma novidade, pois era o que se esperava da Corte. Contudo, merece destaque a discussão travada entre os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes acerca da concessão da segurança.

Lewandowski, então relator do caso, manifestou-se contrário ao deferimento do pleito, alegando que não havia prova suficiente que sustentasse a nulidade da demarcação e que a via do mandado de segurança, por exigir prova pré-constituída, não era a adequada para a produção e/ou revisão de provas, como já decidido pelo Supremo no RMS 24.531/DF, no MS 25.483/DF e no RMS 22.913/AM, dentre outros (BRASIL.STF, 2014a, p.7-16).

Após o voto do relator, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes. Opondo-se a Lewandowski, Mendes entendeu que era possível sim analisar, em recurso ordinário, o atendimento dos requisitos do procedimento demarcatório. Por conseguinte, respaldando-se no laudo da FUNAI, que registrava a expulsão dos índios da área por pressão dos fazendeiros e, portanto, a sua inexistência na terra no marco temporal de 05 de outubro de 1988, manifestou-se favorável ao provimento do recurso. Para ele, o fato de os índios permanecerem no local trabalhando nas fazendas, cultivando os costumes de seus ancestrais e mantendo laços com a terra não era suficiente para legitimar a demarcação, como havia decidido anteriormente o Superior Tribunal de Justiça – STJ (BRASIL.STF, 2014a, p.21-27).

Quando em plenário, Lewandowski levantou a questão da expulsão dos índios por fazendeiros, o que chamou de “novo genocídio” (BRASIL.STF, 2014a, p.30), enquanto Gilmar Mendes demonstrou preocupação com a demarcação de terras altamente produtivas (BRASIL.STF, 2014a, p.32). Segue um trecho da discussão:

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Não. O acórdão está calcado no laudo da FUNAI, e o laudo da FUNAI diz que há mais de 70 anos não havia famílias indígenas.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Mas são terras tradicionais, a Constituição assim o diz.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Terra tradicional é Copacabana, terra tradicional é Guarulhos.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Bem, mas Copacabana não chamou a atenção da ONU, e Mato Grosso do Sul chamou, interessante isso, não é?

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Agora, a ONU é o argumento para o quê?

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Não, Copacabana é o argumento para o quê?

(...)

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - A solução jurídica está na desapropriação, segundo os parâmetros. Agora, os dados que estão no acórdão são claramente dados de que não havia posse indígena há mais de 70 anos, e para isso o próprio acórdão do STJ diz que alguns índios continuaram, com base no laudo da FUNAI, a prestar serviço como peões.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Mas, o agronegócio quer isso mesmo: expulsa os índios e depois os contrata como boias- frias. É assim que está acontecendo no Brasil todo.

(...)

(BRASIL.STF, 2014a, p.33-34).

O entendimento do Ministro Gilmar Mendes prevaleceu e pouco tempo depois, no julgamento do ARE 803462 (caso da TI Limão Verde, citado no Capítulo 2), que versava sobre a ocupação dos índios Terena, também em Mato Grosso do Sul, o STF limitou o direito à terra ainda mais ao elucidar o conceito de renitente esbulho. É que, à semelhança da terra indígena Guyraroká, da etnia Guarani-Kaiowá, a ocupação não foi considerada tradicional pelo STF, muito embora tenham os índios permanecido nas imediações da Fazenda Santa Bárbara - como passou a ser denominada a região - e preservado o seu modo de vida, com a prática da caça e da coleta e a utilização dos recursos naturais da região. Assim, foi aplicado o marco temporal e desconsiderado o esbulho sofrido pelos Terena, apesar de eles terem formalizado algumas reclamações junto ao antigo SPI e à FUNAI.

Ademais, as duas situações acima narradas configuram processos espontâneos de retomada - conceito visto no capítulo anterior - constituindo-se estratégias dos índios para permanecerem ligados aos seus territórios tradicionais, cultivando-os, extraindo os seus recursos, praticando a caça e a pesca, utilizando-os para os seus rituais sagrados ou até mesmo trabalhando para os não índios, se assim for necessário. Contudo é rara a compreensão desses processos de retomada como formas legítimas de ocupação pelos órgãos do Poder Judiciário, mormente quando as demandas chegam ao STF, para o qual a fórmula do marco temporal resolve toda e qualquer questão.

Destarte, essa reprodução acrítica do precedente distorce a sua função primordial de explorar as potencialidades do Direito. Com efeito, tratar o precedente como uma norma geral e abstrata, aplicável por subsunção a inúmeras situações sem uma análise mais acurada do caso concreto é uma mácula da tradição jurídica brasileira que acaba reduzindo a sua importância. Para Lopes Filho (2014, p.435), a solução para o problema seria a seguinte:

[...] o precedente deve ser tomado por uma perspectiva hermenêutica que submeta sua apreensão e uso posterior a um cotejo sistêmico mais amplo com vários elementos. Isso evita reduções simplificadoras que, sob pretexto de garantir uma

impossível segurança como previsibilidade, tornam o Direito judicial autoritário e de cúpula.

As questões fundiárias sempre geram polêmica no Brasil, pois a terra é um fator de produção de riquezas muito cobiçado. Quando se trata de terras indígenas a situação não é diferente, verificando-se uma disputa muito desigual, tanto em termos fáticos quanto jurídicos. Esse quadro de desigualdade é bem nítido na construção da jurisprudência sobre a temática, que tem desprezado o histórico de esbulho sofrido pelos povos indígenas, bem como as suas dinâmicas de resistência para permanência em seus territórios tradicionais, prejudicando uma atividade hermenêutica mais condizente com a realidade.

A teoria do fato indígena foi formulada com a intenção de proporcionar segurança jurídica e pacificação social. Mas segurança jurídica para quem? Pacificação social onde? Os conflitos proliferam-se por todo o país e situações jurídicas consolidadas têm sido desfeitas, com a declaração de nulidade de demarcações. Tamanha instabilidade tem reverberado na seara internacional, gerando inclusive responsabilização para o Estado Brasileiro, a exemplo do caso dos Xucuru processado na Corte IDH, o que demonstra a necessidade premente de rever-se o sentido atribuído pelo STF ao art.231 da Constituição Federal.