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O termo “letramento” pode ser considerado recente no âmbito educacional brasileiro. Segundo Soares ([1998] 2012), a palavra surge no discurso dos especialistas das áreas da Educação e Ciências Linguísticas na segunda metade dos anos 1980. Uma de suas primeiras ocorrências está no livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, de Mary Kato (1986). No capítulo introdutório de Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso, Leda Tfouni distingue alfabetização de letramento, em 1986, momento em que o termo parece ganhar estatuto técnico no léxico dos campos da Educação e das Ciências Linguísticas. A partir de então, a palavra torna-se recorrente no discurso dos especialistas, sendo que, em 1995, figura o título do livro Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a

prática social da escrita, organizado por Ângela Kleiman.

Mas o que explica o surgimento dessa palavra no campo da educação? O surgimento de uma nova palavra ou a atribuição de novos sentidos a vocábulos já existentes é um evento recorrente na língua e acontece quando surgem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreender os fenômenos. Em relação à emergência do termo letramento, é a partir das novas demandas de comportamento letrado que, vão surgindo no contexto social, que o vocábulo aparece, conforme escrito por Soares no ano de 1998, e que permanece na edição mais atual do livro Letramento: um tema em três gêneros:

À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e a escrever, e à medida que, concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na escrita (grafocêntrica), um novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever (SOARES, 2012, p. 45).

Tfouni (2010, p. 32) aponta que “A necessidade de se começar a falar em letramento surgiu, creio eu, da tomada de consciência que se deu, principalmente entre os linguistas, de que

havia alguma coisa além da alfabetização, que era mais ampla, e até determinante desta”.

Kleiman (2008, p. 15) explica que o conceito de letramento “[...] começou a ser usado nos meios acadêmicos como tentativa de separar os estudos sobre o ‘impacto social da escrita’ dos

estudos sobre a alfabetização, cujas conotações destacam as competências individuais no uso

e na prática da escrita (grifo da autora)”.

Dessa forma, um novo fenômeno é evidenciado, em meados dos anos 1980, a partir de mudanças ocorridas na sociedade, como as reflexões sobre o analfabetismo e o início de sua superação, e o fato de haver um número maior de pessoas aprendendo a ler e a escrever, não bastando apenas decodificar as letras e reconhecer as sílabas, mas sim saber fazer uso da leitura e da escrita. Assim, saber ler e escrever começa a não ser suficiente para o sujeito inserido em uma sociedade em desenvolvimento econômico e social. Essa mudança histórica das práticas sociais, ou seja, as novas demandas sociais de uso da leitura e da escrita exigiram uma nova palavra para designá-las. Surge, então, o termo letramento, conceito de difícil definição.

A busca por uma delimitação precisa para o termo “letramento” configura-se como uma tarefa árdua, uma vez que se trata de um fenômeno amplo e complexo. Conforme aponta Soares (2012), essa dificuldade e impossibilidade de delimitar o conceito com precisão devem-se ao

fato de que “o letramento cobre uma vasta gama de conhecimentos, habilidades, capacidades,

valores, usos e funções sociais; o conceito de letramento envolve, portanto, sutilezas e complexidades difíceis de serem contempladas em uma única definição” (SOARES, 2012, p. 65).

Isso explica por que as definições de letramento se diferenciam. Abordam, geralmente, duas dimensões: a individual e a social. Conforme Soares (2012, p. 18), “letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita". Tendo em vista essa acepção do termo, ao relacionar o letramento a processos subjetivos, o que se coloca em foco é a posição do sujeito nas práticas, sua condição de produzir sentido ao recorrer à escrita, ou seja, uma dimensão voltada aos processos individuais (MATÊNCIO, 2009).

O enfoque antropológico de letramento relaciona o termo à prática social, como aponta Kleiman (1995, p. 18) em “podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos

específicos, para objetivos específicos”. Nessa perspectiva, que percebe o letramento como

72) aponta, também, o letramento como “o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à

escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”.

Street (2014) assinala dois modelos de letramento: o autônomo e o ideológico. Segundo o autor, o primeiro funciona com base na suposição de que o letramento em si mesmo, de

maneira autônoma, terá efeitos em outras práticas sociais e cognitivas. Dessa forma, “este

modelo mascara as suposições culturais e ideológicas que o apontam, de modo que estas se apresentam como se fossem naturais e universais” (STREET, 2014, p. 44). O segundo modelo, o ideológico, apresenta um ponto de vista culturalmente sensível em relação às práticas de letramento, conforme variam de um contexto a outro, partindo de premissas distintas das do modelo autônomo. Segundo Street (2014), o modelo ideológico postula que

“o letramento constitui uma prática social e não unicamente uma habilidade técnica e neutra”

(STREET, 2014, p. 44).

Citando Street (apud SOARES, 2003, p. 105), Soares define as práticas de letramento como

“comportamentos exercidos pelos participantes em um evento de letramento, onde as

concepções sociais que o configuram determinam sua interpretação e dão sentido aos usos da

leitura e/ou da escrita naquela situação em particular”. Kleiman (2005, p. 12), conceitua as práticas de letramento como “um conjunto de atividades envolvendo a língua escrita para

alcançar um determinado objetivo numa determinada situação, associadas aos saberes, às tecnologias e às competências necessárias para a sua realização”.

Já os eventos de letramento, de acordo Heath (1983, p. 93), são “qualquer ocasião na qual um texto escrito é parte integrante da natureza das interações entre os participantes e seus

processos de interpretação”. Oliveira, Tinoco e Santos (2014, p. 21), entendem o evento de letramento como “uma situação qualquer em que uma pessoa ou várias estejam agindo por meio da leitura e da escrita”. Segundo as autoras, o evento de letramento é uma situação

concreta, da qual práticas de letramento emergem. Para Street (1993, p. 12), as práticas de

letramento não são observáveis concretamente, pois “envolvem valores, atitudes, sentimentos e relações sociais”. Já os eventos de letramento são episódios observáveis que se formam e se

Assim, tendo em vista o conceito de letramento e sua abordagem social, em que as práticas sociais devem ser consideradas como eixo estruturador do ensino, justifica-se a presente discussão. Uma vez adotada a concepção de linguagem como interação, em que os gêneros são importantes e as ações por meio dos textos também são relevantes, busca-se formar sujeitos capazes de agirem no mundo de maneira significativa. Dessa forma, como função, a Escola deveria criar condições para que seus estudantes desenvolvam a leitura e a escrita, em situações próximas ao que se faz na vida. Tal perspectiva é preconizada pelos projetos de letramento, proposta didática que será detalhada na próxima seção, uma vez que a metodologia de projetos é uma das bases do projeto didático de gênero (PDG), objeto de estudo desta pesquisa.