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O LUGAR DA POLÍTICA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Na era da globalização, a política é tratada como mercadoria: está inserida na lógica do mercado. Esse fato produz crise, porque desequilibra o espaço da mediação. O mundo globalizado é um mundo em que o padrão não serve de meta, porque as estruturas são horizontais, as funções tendem a ser equivalentes, colocando-se em xeque a própria capacidade societal de produzir símbolos unificadores e contextos de relacionamento. À política cabe representar os interesses (mas também as expectativas, as vontades, as paixões), elaborá-los e transformá-los em critério para a estruturação de universos comuns de convivência, promovendo a conversão do conflito em fator de avanço e construção. A ausência de representatividade facilita a vitória de uma política vazia de sentido e conteúdo, reduzida as arenas de disputas entre candidatos de quem mal se conhece o pensamento. Esse é o quadro que se configura na política hoje, confirmado pelos depoimentos. Alguns eleitores que entrevistamos não conheciam a plataforma política do seu candidato, pautando-se pela possibilidade de ganhos emergenciais por eles oferecidos.

As mudanças trazidas pela globalização - isto é, pela mundialização do capital combinada com a revolução tecnológica e novos modos de comunicação - afetam os mecanismos e valores da representação, da governabilidade democrática e do Estado.

Dessas mudanças, estão emergindo sociedades desterritorializadas. Perde- se o território, por um lado, pelo fato de que as soberanias estatais ficam mais fracas, em decorrência da natureza transnacional das operações econômicas e financeiras, e, por outro, pela ampla difusão das comunicações de massa: por uma ampliação, em escala inédita, das possibilidades de comunicação, perde-se o diálogo entre as pessoas. A virtualidade se impõe como um próximo

estranho(NOGUEIRA, 2001). Nas falas dos nossos entrevistados, a política é vista com descrença e desilusão. Ela é tratada como algo sem valor, não sendo útil para construir decisões transformadoras.

O Brasil, em particular, confronta-se com uma sucessão de problemas no caminho da consolidação democrática, pois, para que esta se efetive, é fundamental a construção de um suporte material na mesma proporção do processo de democratização. Na falta dessa base material, o cidadão se frustra com a reconquista democrática. O fato de a sociedade não dar conta da demanda das pessoas transforma essa insatisfação em ações negativas e de descaso em relação aos assuntos de natureza política, favorecendo a continuidade de traços tradicionais da prática política, em que o clientelismo continua a existir.

O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos.

Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas que operam de modo autoritário. Favor e paternalismo evidenciam que a prática da participação política por meio de representantes é difícil de se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprirem o mandato que lhes foi designado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes, que recebem favores dos mandantes.

A “indústria política” - isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa, para a venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores, uma caracterização que se sustenta subjetivamente pelo estado de desamparo que esses fatores sociais engendram. Na verdade, não são realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão voto a alguém).

Nessa perspectiva, os meios de comunicação passam a influenciar, cada vez mais, desempenhando um papel na estruturação de atitudes políticas céticas, sem contribuir para a construção de uma cultura política ativa e participativa. Ações individuais passam a ser regra, em detrimento da construção de identidades

coletivas. Em decorrência dessa realidade, no cenário da sociedade a palavra “política” não absorve toda a complexidade social: a representação fica muito aquém da diversidade presente no âmbito social, mostrando-se distante da imediatidade com que os sujeitos hoje assumem a sua experiência.

A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: alguns eleitores por nós entrevistados acreditam no governante como enviado das divindades. Os eleitores que são motivados pela religiosidade são alvos desse tipo de concepção (o número de políticos ligados à religião, os pastores, fala por si).

Outro aspecto dessa questão é o do sistema político aparecendo dissociado da vivência do eleitor, como ente exterior à vida social concreta. Isso se reflete nas escolhas eleitorais através do voto que muda permanentemente de opção. Para nosso entrevistado, o político importa pouco nessa escolha, nada da própria identidade parece estar em questão. Há um descompromisso em relação ao próprio voto. Observamos que o eleitor não mais se compromete com o seu representante, uma configuração que também reflete uma possível reação ao desamparo humano. Como não há apelo possível, só resta o descaso em relação àquele que exerce a função social de cuidar do cidadão.

Com o crescente aumento das informações, a diferenciação da sociedade e a complicação das identidades, a política já não tem mais facilidade para reunir os múltiplos interesses ou mobilizar cidadãos ativos, isto é, indivíduos empenhados em ponderar, refletir e, acima de tudo, intervir conscientemente no processo mesmo de tomada de decisões. À política falta agora maior poder de sedução e maior capacidade de atrair os cidadãos para a esfera pública, para o desempenho de funções dedicadas a objetivar controles democráticos e decisões “gerais”, válidas para todos. Isso gera apatia, impotência, indiferença. Os depoimentos de nossos entrevistados apontam que o político não diz respeito a ninguém, está longe. Não se deixa captar na vida das pessoas, não se enquadra num campo cultural; a tendência é se escolher o sem importância, o agradável, o “soft”.

Esse quadro demonstra a importância da dimensão subjetiva da política. A política é feita de desejos e de medos, portanto é necessário perguntarmos por sentimentos involuntários, para refletirmos o significado político que pode ter o sentimento de medo e desamparo ou desencanto que se descobre em cada um,

dando uma visão política aos temores e anseios que esses sentimentos nos provocam (LECHNER, 1990).

Podemos pensar aqui na necessidade da ordem como aquilo que dá sentido, por isso é desejado: a ordem como transformação, como utopia, e não como a perpetuação do que existe. Uma vez que a realidade é uma infinitude de complexos fragmentos, ela impede toda intenção de ordenamento. Porém a ordem é necessária: é uma intenção de compartilhar, de fazer visível o coletivo. Só é compartilhado aquilo que elaboramos intersubjetivamente. A ordem está relacionada com a democracia e com a transformação social. É a esfera pública estabelecendo parâmetros (LECHNER, 1990).

Normalmente, refletimos a dinâmica institucional, a estratégia dos atores e os condicionamentos econômicos sem considerar a experiência diária das pessoas, seus medos e seus desejos. É necessário uma aproximação do substrato cognitivo- afetivo da democracia para se obter um ponto de vista diferente da política. Apontamos aqui a importância de adentrar no imaginário político, nas imagens que são formadas da sociedade como produção coletiva-conflitiva de uma ordem. Em cada época, cada grupo define a partir de sua experiência o sentido de “ordem”. A política é entendida como uma luta pela ordem coletiva, a organização de parâmetros sociais que viabilize a vida em sociedade.

Podemos pensar que, a partir da queda do muro de Berlim e com a crise do Leste Europeu, os significados mínimos e balizadores que foram construídos com base nas utopias modernas caem por terra, o mundo político perde seus referentes. E os reflexos se fazem presentes nas crises da representatividade.

Com o desmoronamento do socialismo real, colocou-se, no primeiro plano da reflexão teórica, um rompimento com o ideário do Iluminismo, construído no campo histórico da Revolução Francesa, que marcou profundamente a modernidade. A partir daí, nos encontramos ainda numa situação de impasse, na medida em que os modelos políticos que nos orientavam até recentemente entraram em um processo de bruscas alterações. Com isso, não conseguimos, no momento, construir parâmetros políticos para nos orientar no delineamento futuro da nova ordem.

A importância de toda essa discussão para a relação entre estado de desamparo e escolha eleitoral é que esse estado, próprio da constituição do sujeito, do fato de ele depender de um Outro para se constituir, coloca-o na condição de ser totalmente dependente dos referentes da cultura para manter seu próprio estatuto e

poder dar sentido à vida. A era moderna, pela caracterização esboçada, foi criando as condições para o desamparo, uma vez que a quebra de referências mais consistentes faz com que se dilua o lugar da política como um mecanismo que liga as pessoas, na construção de um mundo comum.

As pessoas por nós entrevistadas colocam os políticos em descrédito, de modo que estes não ocupam mais o lugar de referências políticas para a população, representam apenas um objeto a mais para ser consumido e utilizado. Eles não são levados a sério, principalmente pela população de baixa renda. Isso possibilita que as escolhas eleitorais reflitam a demanda social: elas estão cada vez mais mobilizadas pelo utilitarismo, pelo imediatismo, pela falta de critérios mais amplos e universais, muito mais pautadas pela negociação da migalha, sem qualquer vínculo com um projeto para a sociedade.

Considere-se, por exemplo, o clima de apatia e desinteresse que impregna nossas grandes cidades. As eleições não estão conseguindo despertar as pessoas ou mexer com o imaginário delas. Transcorrem como se estivessem despojadas de maior significado, como se fossem um momento a mais da via crucis da cidadania. São entendidas como “obrigação” e pouco provocam de interesse ou paixão. Os eleitores têm votado e participado politicamente para se defender, não para tomar a iniciativa e “atacar”; em suma, por razões mais éticas e moralizadoras do que propriamente políticas.

Vivemos numa cultura de desencantamento, somada a uma versão diminuta da democracia, embora percebamos o esforço que o governo atual vem fazendo para tornar mais substantiva a participação, através da valorização dos conselhos e das conferências. A vida política vai além do rito eleitoral. No entanto a grande maioria não percebe a importância da participação ou, mesmo percebendo, se engaja sem uma capacidade maior de elaboração. A motivação para o engajamento do nosso eleitor apresenta-se dificultada, haja vista a semelhança dos discursos dedicados apenas a justificar realizações e proclamar habilidades administrativas.

Parlamentares, partidos, instituições políticas de um modo geral não estão se mostrando à altura dos desafios e das expectativas das pessoas, e estas, impossibilitadas de reverter o quadro, viram-lhes as costas. Nos depoimentos, observamos quanto alguns eleitores estão confusos com a multidão de siglas e legendas vazias de significação e força efetiva, atrás das quais se escondem interesses imprecisos, oportunistas, mesquinhos. Eles buscam, dessa forma, outras

opções: fecham-se em si mesmos ou partem para a ativação de redes de solidariedade “informais”, estranhas ao governamental e à política tradicional, criando, assim, novos espaços de convivência e atuação, onde imaginam projetar soluções, levá-las à prática, fixar novas expectativas de direitos, enfim fazer aquilo que os políticos não fazem. No limite, agem como se estivessem dispensando o sistema representativo.

A função da política é também propiciar a conversão da disputa destrutiva em disputa construtiva, permitir a passagem do conflito paralisante para o conflito transformador. Como nos lembra Nogueira (2001), “sem assimilar os elementos histórico-culturais que estão na base de qualquer governo, sem incorporá-los ao ato mesmo de governar, o governante não governa: não pode ter a pretensão de interferir nos rumos de sua comunidade, direcioná-la” (NOGUEIRA,2001,103).

A política, portanto, não pode ser legitimada por interesses imediatos de um determinado grupo organizado, ou mesmo de uma “maioria”, mas sim pela capacidade que esse grupo (uma classe, um partido) tem de superar seus próprios interesses particulares e colocar-se na perspectiva da comunidade como um todo.

5 FALAS E CONTEXTOS

Realizamos um total de 44 entrevistas, quatro por bairro. Desse total, escolhemos 13 depoimentos para serem aqui analisados. São dois grupos de entrevistados: oito líderes comunitários e cinco moradores da periferia. Porém todos os depoimentos foram contemplados para efeito das análises dos dados, ou seja, apesar de apresentarmos 13 depoimentos, os 44 foram levados em conta para nossas conclusões.

Este capítulo apresenta, pois, o caminho que percorremos para fundamentarmos a nossa tese. Procuramos tratar com cuidado e rigor as falas dos nossos entrevistados, valorizando os discursos como pistas primorosas para um trabalho que tematiza os aspectos subjetivos das escolhas eleitorais.

Os depoimentos aqui apresentados nos trazem dados importantes acerca do lugar da política, para a população. As escolhas eleitorais refletem que as pessoas fazem uma diferença entre os políticos e a política. Esta última é considerada importante para a sociedade. A maior parte dos entrevistados espera dela uma saída para o seu cotidiano, embora a desvincule de projetos para a sociedade. É como se o propósito da política fosse simplesmente responder às demandas de necessidade das pessoas. Não importam muito os projetos coletivos, mas as mudanças propiciadas em suas vidas. No entanto os políticos não têm estado à altura das demandas da população, propiciando um descrédito e ameaçando o campo próprio da política.

5.1 APRESENTAÇÃO DAS ENTREVISTAS COM OS LÍDERES COMUNITÁRIOS