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O fato de o projeto social da modernidade ter entrado em crise e não conseguir dar respostas às buscas existenciais dos homens forjou uma cultura que caracterizou um modelo de subjetividade, conforme aponta Figueiredo(1985):

São as situações de desenraizamento profundo tanto das sociedades em relação às suas condições naturais, como dos indivíduos em relação às suas comunidades que engendram as mais intensas exigências de cuidar de si e de construir/reconstruir nossas moradas, exigências cada vez mais vividas como deveres do indivíduo diante dos direitos alheios e diante de si mesmo. Ao mesmo tempo, naturalmente, são estas as situações em que mais desnorteados estão para empreender esta construção (FIGUEIREDO, 1995, p. 9).

Diante desse contexto, o indivíduo vai perdendo sua capacidade de responder e passa a ter uma postura defensiva e desinteressada diante do mundo. Ao mesmo tempo que se ampliam os grupos de referência dos indivíduos, superficializam-se suas relações. O indivíduo passa a não confiar mais nas referências coletivas, contando mais consigo mesmo e estabelecendo suas formas de se relacionar com os outros.

Isso nos remete para a problematização da fragilização das identidades posicionais, em que a cultura das “práticas de si” coloca como saída para o indivíduo cada um consigo mesmo, transformando-o no edificador de sua própria morada.

Essa cultura das “práticas de si”, característica das subjetividades modernas, por não possuir uma base coletiva consensual, se manifesta distanciada da esfera pública. Tal cultura, que pode ser chamada de narcísica, carece de um peso histórico e se fixa em “agoras” repetidos e descontínuos, gerando um personagem sem experiências que possam ser significadas (FOUCAULT,1995).

O presente torna-se a única referência fecunda do pensamento. Nesse presenteísmo, revela-se um hedonismo do cotidiano em que as relações sociais não são mais regidas unicamente por instâncias transcendentes a priori e mecânicas; do mesmo modo não são mais orientadas por um objetivo a atingir, sempre longínquo. Os nossos eleitores revelam, nas suas escolhas eleitorais, uma postura desinteressada diante do futuro: não projetam, nem se interessam por saídas a longo prazo.

O mundo torna-se objeto de uma atividade estética: a vida, uma obra de arte, como observa Walter Benjamin no livro Experiência e Pobreza:

De um lado, a vida já não se deixa conter pela narrativa edificante das gerações mais velhas para as mais jovens, de modo que a idéia tradicional de “experiência”, como reflexão sobre o vivido e dedução de lições para a conduta, se perde, tornando-nos mais “pobres”; de outro lado, o mundo é o que se vai fazendo, com os materiais de nossa época, sem preocupação com sua profundidade, sem atribuir- lhe qualquer aura, e sem deixar nele qualquer marca de nossa passagem – o que seria o caso se fôssemos sujeitos plenos, densos, detalhistas, como o burguês novecentista que decora seu ambiente de tal forma que tudo ali o lembre e exprima (Benjamin, 1987).

Com o campo das subjetividades políticas problematizado pela fragmentação dos interesses, pelo excesso de individualismo, pela fuga do que é comum, o cidadão fica sem eixo. Entra em crise, enfartado de direitos que não conseguem efetivar-se.

A subjetividade, na época moderna, e mais precisamente na época atual, poderia ser pensada como a perda do poder orientador dos ideais, que produz a fragmentação das identificações em sua intersecção entre o sujeito e seu Outro coletivo, em que os traços identificatórios estão muito mais aderidos a alguma consistência imaginária de gozo, afetados pelas exigências do mercado, nutrido pela fabricação ininterrupta de objetos ofertados pela ciência. A cultura já não se ordena mais a partir dos ideais. Estes não estão mais no lugar de causa do desejo; nesse

lugar se instalou o ganho de gozo, ratificado pela chuva de objetos que caem sobre nossas cabeças.

Os elementos que fundam a modernidade - a ciência e o mercado capitalista - se distinguem por uma resistência à castração. Castração, aqui, resumidamente, seria uma estruturação simbólica, a partir do Édipo, que organiza a capacidade de suportar a falta. Quanto à ciência, um saber que trabalha só e sem limites, que não está submetida a nenhuma autoridade, nada há que possa detê-la. E, quanto ao segundo, o mercado, a presença prolífera desses objetos “feitos para gozar” se impõe às pessoas.

O sujeito, no mundo contemporâneo, está, pois, habitado por uma falta que não se recobre com valores, pois ele encontra diretamente os objetos capazes de aplacar essa falta. São pequenos objetos que se encontram em todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, e cuja multiplicação foi feita para causar o nosso desejo, porque agora é a ciência que o governa. De tal forma que a subjetividade acabou por ter perdidas as suas referências; ela acabou, enfim, por ser consumida em seu próprio consumo.

Os desdobramentos desse excesso de consumo é também perceptível na busca de alívio para o mal-estar social, seja na indústria química, com o uso abusivo de antidepressivos, seja nas drogas pesadas, produzidas pelo narcotráfico.Tanto a farmacologia quanto o narcotráfico propõem um mesmo modelo de subjetividade: ambos estão pensando estancar a dor que acomete o sujeito. Para aplacar a sua angústia, ele tanto pode usar o tranqüilizante como as drogas.

O mal-estar provocado pela globalização, pelo advento da sociedade de risco, torna a vida insegura e cria as condições para uma reatualização do desamparo. Não é que a condição de desamparado vá acabar algum dia, pois essa condição é estrutural, mas são necessários alguns pontos de referência, pelo menos para que o sujeito se viabilize no contexto social, ultrapassando a significação da vida para além do campo da necessidade. Essas mudanças, que deram forma e conteúdo às subjetividades contemporâneas, precisam ser pensadas. E isso exige uma nova postura diante de algumas teorizações sobre a relação sujeito-cultura.

A dimensão afetiva da vida política, os sentimentos comuns, as paixões coletivas que participam das práticas políticas constituem um domínio de difícil conhecimento, um desafio, portanto. Como compreender e explicar a intensidade de

uma emoção coletiva e suas conseqüências, a persistência de um apego, a violência de um amor ou de ódios políticos?

A recusa de enfrentar essas dificuldades tem sido a solução mais comum. A ciência positivista optou por eliminar de seu campo de observação essas experiências cotidianas, para somente reter da “realidade” política aquilo que pode ser traduzido racionalmente. Mas essa escolha custa o preço de um fracasso: é impossível dar conta da experiência concreta dos agentes da história tal como eles a vivenciam ou a sofrem. O nosso trabalho aponta a importância da inclusão da subjetividade para entendermos as dimensões que afetam as escolhas eleitorais. As falas dos nossos entrevistados revelam quanto os afetos estão presentes no ato de escolher o seu candidato.

A existência de um vínculo duradouro entre a identidade e a afetividade (o lugar dos laços afetivos na construção das identificações) se confirma pelas experiências quotidianas das pessoas por nós entrevistadas. O parâmetro de escolha dos candidatos estava afetado pelo componente subjetivo, conforme apontamos no projeto ordenador da vida do eleitor. As identidades coletivas, profissionais, partidárias, nacionais não deixam de ser marcadas pelas satisfações ou frustrações, por todas as gradações possíveis do prazer e da dor e, em casos extremos, pela exaltação dos sucessos ou pela agonia da perda, do desmembramento.

Os depoimentos apontaram, portanto, que toda identidade ganha espessura e sentido mais profundo por meio do componente afetivo e é transformada incessantemente pelas alterações das emoções, dos sentimentos e das paixões. As saídas encontradas pelos sujeitos na vida são respostas diante do seu desamparo. Uma afirmação identitária pode tanto favorecer a confiança do indivíduo em si mesmo como a agressividade em relação ao outro. Os sentimentos de superioridade, por sua vez, podem colaborar para a legitimação da violência, assim como os de inferioridade favorecer o desencorajamento. Não se pode negar, ainda, que os conflitos de identidade sustentam a dinâmica das hostilidades e, eventualmente, a dominação.

Os atuais acontecimentos sangrentos em vários pontos do mundo, incluindo a “civilizada” Europa, confirmam ações justificadas ou movidas, em parte, por ódios seculares e ressentimentos coletivos. No registro do enfraquecimento das identidades, sua perda pode favorecer a “ruptura” social, a busca instável de outras

satisfações afetivas ou a emergência de revoltas individuais; pode gerar, enfim, novas identificações através de caminhos, eventualmente, dolorosos e caóticos.

O mundo globalizado estrutura um tipo de subjetividade que é preciso analisar para se entenderem seus efeitos, também na crise da representatividade.