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4 EM FOCO: OS EDUCADORES E SUAS SIGNIFICAÇÕES

4.1 Lugares de ensinar e aprender

4.1.2 O lugar de dar aulas: barracão de depósito

É no acampamento Josiel Alves Pereira, no município de Fraiburgo, que jovens e adultos têm, como espaço físico para em grupo de 15 educandos participarem das aulas, um barracão de depósito. Os moradores chamam o

36 Função exercida por militantes que têm como responsabilidade buscar, identificar e articular as

acampamento de pré-assentamento37, e está situado numa grande área abandonada. O herdeiro, filho do dono da área, mora na França, não deu continuidade ao empreendimento de beneficiamento de maçãs e aproveitamento de pinus38 implementado pelo pai já falecido. O MST está solicitando, através do usucapião a posse definitiva destas terras onde, conforme informações do INCRA (2003), vivem dez famílias.

O caráter de pré-assentamento, bem como algumas benfeitorias reaproveitadas pelos acampados, imprime ao local e conseqüentemente às pessoas que lá vivem um caráter de estabilidade. Isso se traduz no plantio e cultivo de algumas culturas que necessitam de um tempo maior para seu desenvolvimento e colheita, como o milho, feijão, batata inglesa, cebola, diferentemente de outros acampamentos, onde somente a horta é cultivada. A fixação das famílias nessa área pode indicar, além de sua sobrevivência, a manutenção de uma turma de EJA.

O acesso a esse acampamento pode ser feito por duas vias, ambas em estrada sem revestimento asfáltico. Uma delas, com cobertura de areia grossa, permite trânsito seguro de carros e caminhões mesmo em dias chuvosos; já a outra, que é entre altas árvores, torna-se perigosa em dias chuvosos. No entanto, do lugar onde estávamos, o caminho mais seguro seria o “mais longo” para chegar até o acampamento. Como já estava anoitecendo, seguimos pelo “mais curto”. Foi por essa estrada mais curta, porém mais perigosa, que conheci a turma de EJA. No dia anterior à visita choveu muito. Somando-se a isso estava ocorrendo na região o corte e transporte de pinus. O tráfego pesado de caminhões na via sem revestimento adequado para tal uso gerou uma estrada lisa e com muito barro. O trajeto é feito com muitas dificuldades e sujeito a sustos39.

37 São terras que, pelo processo de vistoria do INCRA, serão desapropriadas e negociadas com o

proprietário para então serem reconhecidas como assentamento.

38 Árvore de fácil plantio e de rápido crescimento. Utilizada na fabricação de papel, foi trazida para a

região na década de 60, após ampla retirada da araucária, árvore nativa da região serrana.

39 O que ocorreu numa das viagens do grupo à região de Campos Novos em Santa Catarina: num

grande declive o carro não obedeceu aos comandos mecânicos e deslizou, parando sobre um bueiro que faz às vezes de uma pequena ponte, sobre um riacho. Isso resultou em um grande susto e no impedimento de seguir com o carro, que ficou trancado. Ao serem avisadas, muitas das pessoas que nos aguardavam vieram em nosso socorro. Os homens que vieram até nós literalmente levantaram o carro, tirando-o do iminente perigo de cair riacho abaixo. A solidariedade do educador e dos seus educandos se fez no gesto e na “prosa” durante o restante do percurso que fizemos com eles a pé, até chegarmos ao barracão onde o restante do grupo de educandos, assim como seus familiares, aguardavam-nos para reunião. O abandono e a reclamação feita a mim por um educando de aproximadamente 65 anos traduz o descaso das autoridades – que nós, por sermos da Universidade, naquele momento e na concepção dos acampados representávamos – em relação ao sistema viário na área rural: “É, vocês passaram aí uma vez só! É bom para ver como nós vivemos ... sempre

Chegando ao local via-se uma grande construção, coberta e iluminada, que se diferenciava na escuridão da noite própria de áreas rurais. De forma retangular, o grande barracão, sede do acampamento, com um dos seus lados maiores sem parede, abrigava inúmeros instrumentos agrícolas e marcas de atividades, indicando ser um local onde adultos trabalham coletivamente. Na sua parte interna, além de um caminhão, um pequeno trator e pilhas de sacos de forragem compunham o entorno de uma “sala de aula”. Em seu interior, integrava-se articuladamente a “sala de aula”, que assim se constituía pela delimitação de um quadro negro fixado na parede e facilmente visível ao se entrar no barracão. No espaço entre a parte superior do quadro negro e a bandeira do MST, colocada bem no alto, próximo à cobertura, encontravam-se cartazes que apresentavam os trabalhos produzidos pelo último tema gerador desenvolvido pelo grupo de EJA. Numa das laterais do quadro encontravam-se no chão duas grandes pilhas de recipientes vazios de plástico, que eram contidos por tábuas. Esse material fazia parte da atividade desenvolvida com o tema gerador e que resultara nos trabalhos expostos. Bancos de madeira e cadeiras formavam um grande semicírculo, deixando livre o espaço em frente ao quadro.

Desse modo essa comunidade nos dá a conhecer a reverência e o valor atribuído à educação, quando ao compor o semicírculo não se fica de costas para o quadro. O que também é extensivo à ação do educador, que, ao ser convidado para tirar uma foto, do que lhe fosse mais significativo naquele momento, chama todo o grupo e em frente ao quadro, com os trabalhos ao fundo, faz o seu registro fotográfico. É assim que ele legitima e configura, naquela área que é de todos e que eles mesmos em outra atividade ocupam, um espaço que é seu e de seus educandos, indicando harmonia com a ambientação.

Ao organizar-se a turma de EJA não havia no local mobiliário próprio ou mesmo energia elétrica. A comunidade formou uma comissão com o intuito de ir até a prefeitura e fazer a solicitação devida para que uma turma de EJA ali se constituísse, já que a luz elétrica os próprios educandos “puxaram” do poste com fios que eles mesmos trouxeram de suas casas. Após marcar uma audiência com o

atolados e no meio do barro, ninguém dá bola para esta estrada... é pouca gente que usa mesmo! “ (João Maria).

prefeito do município, reuniram a comissão40 para discutir qual seria o procedimento para as solicitações e, conforme o próprio educador relatou: “Reunimos a comissão e saímos para a audiência com o prefeito, e aí falamos para ele o que a gente queria, que era um quadro grande com giz e as carteiras para poder ter as aulas. Ele disse que em dois ou três dias o material estava aqui. Quando nós ainda não tínhamos chegado de volta aqui no barracão, o caminhão quase chega com a gente, trazendo tudo o que pedimos.”

Vemos que tais ações do educador e educandos são marcadas pela prioridade que o MST outorga ao coletivo: a construção da consciência coletiva e política, não só pelo ato de requerer junto aos poderes públicos o que já lhe é de direito, mas por se colocar como sujeito no processo de alfabetização. Isso confere legitimidade vivencial ao que é apontado num dos princípios da educação do MST, ao expor que o coletivo educa o coletivo, espaço em que “todos devem aprender a tomar decisões, a respeitar as decisões tomadas no conjunto, a executar o que foi decidido, a avaliar o que está sendo feito, e a repartir os resultados da ação coletiva.” (MST, 1999, p.20).

Esses fatos representam situações nas quais o marco posto pelo Movimento é o desenvolvimento do coletivo como o grande educador que traz em si o germe do novo homem; este forjará uma nova sociedade fundada nos princípios da consciência coletiva e que é, conforme Caldart, o próprio MST:

enquanto movimento de luta social e enquanto organização política dos trabalhadores e das trabalhadoras sem terra, [é] o grande Educador/Formador de quem nele participa ou quem nele se envolve. Daí se constitui toda a riqueza pedagógica que se desdobra nas diferentes

situações formativas. (CALDART, 1997, p.16)

Por outro lado, essas reivindicações aqui tomadas e reconhecidas como situações formativas a se que refere Caldart, inserem os acampados no que é defendido pelo Movimento: que o processo educativo se inicie a partir das suas próprias vivências sociais e políticas, pois acredita-se que isso “revela aos trabalhadores que eles são os forjadores da transformação ... esta apreensão os torna sujeitos pessoais e coletivos do processo histórico onde estão inseridos”. (MST, 2000 a, p.9)

40 Essa comissão faz parte do setor de Educação do pré-assentamento e é composta pelo educador

Com esses encaminhamentos e concepção, vemos a possibilidade de educadores exercerem sua função junto com sua comunidade, transformando necessidades coletivas em tarefas realizadas coletivamente, produzindo desse modo, no exercício do seu papel, as condições de iniciação nas leituras e escrituras de alunos de EJA, numa “escola” que não seria, pelas políticas educacionais oficiais, considerada viável para alfabetização. Nessa direção, e apesar das críticas que o Movimento sofre em outras situações que ao longo do texto foram colocadas, é importante mostrar que neste caso a ação coletiva indica ser mais que uma reivindicação, ela constitui os sujeitos e lhes dá sentido, construindo comportamentos e modos de ser e estar no mundo.

Desse modo circulam e ampliam-se os sentidos conferidos a ações individuais que, como possibilidades coletivas, serão diferentemente significadas e apropriadas pelos educandos e educadores. As diferentes funções de educador e educando, assim entrelaçadas, vão se constituindo baseadas em princípios e ações que priorizam a coletividade. Mediada por essas ações, a compreensão de alfabetização se singulariza. Revestindo-se de elementos constitutivos do mundo adulto, a escrita e a leitura tomam um sentido particular, pois se fazem inscritas nos significados das ações cotidianas do educador e educandos. Pois, conforme Ribeiro, numa pesquisa desenvolvida junto a jovens e adultos,

se os estudantes tivessem na escola mais oportunidade de planejar e controlar seus próprios procedimentos ou processos envolvendo mais pessoas, vivenciassem mais situações em que é necessário ampliar as fontes de in formação, gerar novas formas de compreensão, expressão e ação, poderiam experienciar, assim, o poder instrumental da escrita e formar atitudes que correspondam ao melhor aproveitamento de suas

habilidades. (RIBEIRO, 1999, p.240)

Configura-se assim a possibilidade de reconhecer que saberes são produzidos em diferentes espaços e que, incorporados aos saberes sistematizados pela escola, indicam o que vem sendo discutido ao longo deste texto: que a escola não é o único espaço educativo.