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4 EM FOCO: OS EDUCADORES E SUAS SIGNIFICAÇÕES

4.1 Lugares de ensinar e aprender

4.1.1 O lugar de dar aulas: uma barraca de lona

A provisoriedade de qualquer acampamento do Movimento guarda em sua organização física e estrutural elementos urbanos que, afora a proximidade entre as barracas, lembram o modelo de construção das pequenas cidades do interior do estado. Conforme Castells (2001), o traçado dos acampamentos privilegia, com a proximidade das barracas, a solidariedade, um valor caro ao Movimento, que desse modo anuncia e prepara objetivamente os futuros assentados para a vida em coletividade. Sobre isso a autora coloca:

Os recortes espaciais correspondem, em muitos casos, à procura de traduzir, dentro da provisoriedade e precariedade, os padrões de expectativas dos sem-terra no referente a como deverá ser a moradia definitiva, assim como devem ser as relações sociais privadas e públicas. (CASTELLS, 2001, p.131)

Dentre tantas expectativas que convivem com a provisoriedade dos acampados encontramos em primeiro plano, ao sair da BR 470, em cujas margens está o acampamento Terra à Vista33, um “lugar de dar aulas”. Saindo do asfalto e após uma pequena distância coberta pelo barro, que dá pistas de uma chuva

32 Conforme informações da Secretaria Estadual de Educação de Santa Catarina, a escola assim

denominada é implantada quando uma comunidade tem um número insuficiente de alunos para compor uma turma por série. Para tanto reúnem-se numa mesma sala alunos das quatro séries iniciais do Ensino Fundamental para os quais ministrará aulas um só professor/a. No entanto, encontramos assentamentos onde mesmo esse tipo de escola está sendo desativado e os alunos vão à escola no perímetro urbano, transportados por ônibus.

33 Esse acampamento, localizado no Município de Brunópolis, foi transferido para outra área dentro

do mesmo município, dois meses antes da conclusão da pesquisa, devido à Medida Provisória nº2.183-56, de 28/04/2001, que dispõe sobre a vistoria em terras ocupadas para posse definitiva das mesmas.

recente e um intenso trânsito de pedestres, vê-se um portal de entrada. Na guarita que precede uma porteira, está a bandeira que identifica o MST, ao qual pertence o acampamento.

Logo que desembarcamos os acampados que naquele momento faziam de dentro da guarita a vigilância do local, que é permanente34, vieram nos receber. Acompanhados pelo educador do acampamento fomos acolhidos e encaminhados ao interior do mesmo, que é demarcado por uma via central que corta todo o espaço delimitado para o acampamento e vai desde a guarita até o final da área que estabelece o entorno do espaço. A partir da via central, que organiza o que os assentados denominam de “embaixo” e “em cima” e tem largura suficiente para transitar precariamente um carro e pedestres, vê-se uma concentração maior de barracas na encosta do “em cima”, espalhadas por um pequeno aclive.

O início da parte marginal do “em cima” é marcado por uma pequena barraca que tem, amarrado sob seu beiral ampliado, um instrumento que faz a comunicação de todo o acampamento, apresentado como “o nosso telefone interno”. É um grande disco de metal, lembrando um gongo, e sua percussão, conforme informações do educador, anuncia reuniões e/ou, pelo número de batidas, manda diferentes mensagens aos acampados.

Na parte do “embaixo” e logo no começo do acampamento está a primeira barraca, destinada às lideranças, que é ocupada pelo educador que nos acompanha. Próxima a ela se encontra uma barraca grande: é a escola. A distinção de sede que esse local recebe no acampamento é definida não só pelo tamanho da construção mas também pela bandeira que, presa a um bambu, está perpendicularmente colocada na sua parte frontal. Duas paredes feitas de bambu tramados, e as outras duas de lona preta que se estendem até a cobertura, fazem também as vezes de telhado. Dois cômodos são a sua divisão interna. No menor funciona uma cozinha onde é feita e distribuída a merenda para os alunos que, pelo sistema de Escola Itinerante35, cursam as séries iniciais durante o dia. No período noturno esse cômodo maior é utilizado para as aulas com a turma de EJA e, como

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Ver mais sobre esta questão quando descrita e analisada criteriosamente por Castells (2001) , em especial no Cap.IV da sua tese de doutorado.

35 Uma modalidade de escola que funciona em acampamentos e é desativada logo após o

assentamento das famílias. O movimento pela legitimação da Escola Itinerante iniciou-se em 1987 no R.S e, conforme Caldart (1997, p.32), a sua legalização “aconteceu no dia 19 de novembro de 1996, quando foi aprovado um projeto específico de escola para a situação de acampamentos de sem-terra, chamado de ‘Escola Itinerante’ “.

espaço comunitário, abriga reuniões, encontros e é até ponto provisório de venda de roupas usadas para os acampados.

Os materiais que a identificam como escola foram “negociados” pelos representantes do acampamento na prefeitura do Município próximo. Entrando na escola, que tem como assoalho o chão de terra batida, vê-se na parede oposta à da entrada o quadro negro apoiado sobre uma mesa de madeira e encostado num dos troncos que faz a sustentação da barraca. As carteiras de madeira com assento, que acomodam duas pessoas, eram um convite a sentar-se e inevitavelmente lembrar dos (meus) tempos de escola “primária” onde dividir a carteira, numa rígida escola dirigida por freiras, era a maior chance de risos e cochichos. Um fio que cruzava transversalmente o espaço acima de nossas cabeças estava tomado de trabalhos que expunham a produção dos alunos.

O primeiro levantamento feito pela coordenação da EJA no Movimento apontou 20 adultos que não estavam alfabetizados no acampamento Terra à Vista. Devido ao caráter provisório que tem um acampamento, torna-se impossível ao acampado plantar o suficiente para a sobrevivência da sua família. O plantio fica restrito a pequenas hortas, normalmente cultivadas pelas mulheres. Nesse acampamento a turma de EJA, por várias vezes, reiniciou seus trabalhos, pois vivenciou um processo marcado pela descontinuidade. Esse processo foi desencadeado pela necessidade de sobrevivência que levou os acampados, dentre eles os educandos, a buscar trabalho nas grandes plantações de alho e maçã situadas nos municípios próximos.

As aulas à noite tornaram-se inviáveis por duas razões de ordem prática. A primeira delas devia-se ao cansaço e à hora tardia em que os trabalhadores , depois de ter saído de “madrugadinha”, retornavam do trabalho das plantações ou da “roça”. A segunda, à falta de energia elétrica, substituída por um liquinho a gás que não ilumina o suficiente para manter adultos atentos ao processo de alfabetização, situação assim descrita pelo educador Pedro: “depois da janta e com a luz fraca do liquinho, para eles que já têm pouca vista... o cansaço é mais forte, e ainda sem enxergar direito, eles não conseguem prestar atenção.”

Além disso, o educador, que no Movimento tem outras responsabilidades, também encontrou dificuldades em manter-se no acampamento cumprindo as tarefas, próprias da função para a qual o Movimento o designou. Dentre as funções que o educador desse acampamento desempenha no Movimento, uma é fazer parte

do que é denominado como “frente de massa”36. Sua barraca, como vimos, é a primeira após o portal de entrada, o que lhe outorga autoridade e conseqüentemente muitas responsabilidades na articulação, estruturação e manutenção do acampamento, ou de outros para os quais esse antigo militante possa ser chamado a colaborar. É em meio a tais condições de vida e trabalho que o educador exerce que se forjou seu papel de educador de EJA. Constituídos numa forte vinculação política com o Movimento, explicitam-se os sentidos/significados que, relacional e mutuamente, identificam-no como sujeito educador em um dos seus registros fotográficos:

Esta foto do painel da escola de Fraiburgo significa a recordação da luta pela conquista da terra, onde entram em conflito: latifúndio e Sem Terra, quando muitos Sem Terra vão perdendo a própria vida para conseguir o sustento para a própria família. (Pedro)