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4.1 Duas maneiras de pensar

4.1.1 O método cartesiano

Descartes lançou um conjunto de quatro preceitos lógicos para um método para Şchegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capazŤ (DESCARTES,

2004, p. 54Ű55), enumerados a seguir para facilitar referência futura ŮDescartes mesmo não os numera:

1. Não aceitar nada como verdadeiro, apenas o que fosse indubitável.

2. Dividir cada diĄculdade em em tantas parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor resolvê-las.

3. Conduzir por ordem os pensamentos, começando dos objetos mais simples e fáceis de conhecer, para subir aos poucos, até o conhecimento dos objetos mais compostos. 4. Fazer enumerações tão completas e revisões tão gerais que dessem a certeza de nada

omitir.

Essencialmente estendeu os métodos do geômetras às demais áreas de conhecimento. A engenhosa aplicação do método, pelo próprio Descartes, para responder questões ĄlosóĄcas fundamentais levou-o a conclusões difíceis de refutar, embora muito se tenha tentado (DESCARTES, 2004, p. 69Ű73):

A prova da sua própria existência resumida no lema Şpenso, logo existoŤ. A prova impressiona pois o autor inicia o argumento ŞduvidandoŤ de tudo o que o leitor comum julga indubitável Ůseus sentidos, seu raciocínio, suas memóriasŮ para em seguida argumentar que não podia duvidar que estava pensando; e se estava pensando, necessariamente existia.

A separação entre mente e matéria pois sendo possível imaginar sua existência sem corpo, mas sendo impossível imaginar sua existência sem pensamento, conclui naturalmente que ele, Descartes, é, em essência, pensamento, que por se comportar de maneira tão diferente é uma substância completamente diferente da matéria. ∙ Como reconhecer verdades em decorrência da identiĄcação de uma única verdade

(sua própria existência): as verdades são Şcoisas que concebemos de maneira muito clara e distinta; há apenas alguma diĄculdade em observar bem quais são aquelas que concebemos distintamenteŤ.

A prova da existência de Deus que decorre da observação de sua própria imperfeição (já que duvidava) e a pressuposição da existência de algo que lhe apontasse para a

perfeição, ou seja, Deus.

É importante observarmos que as noções de clareza e distinção, necessárias para reconhecer as verdades, são abordados em outra obra sua (DESCARTES, 2014, ğXLVŰXLVI, 1a

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publicação em 1644) da seguinte forma: ŞclaroŤ é o que se pode enxergar através de uma impressão forte, em contraposição, por exemplo, a ŞobscuroŤ, que não deixa uma impressão forte, mas fraca; ŞdistintoŤ é aquilo que Şé tão preciso e diferente de todos os outros objetos de modo a abranger em si somente o que é claroŤ: ou seja, embora clareza seja pré-condição para a distinção, pode haver coisas claras que não são distintas. Descartes cita como exemplo a percepção da dor: Şquando qualquer um sente dor intensa, o conhecimento que ele tem da dor é muito claro, mas não é sempre distinto; pois os homens usualmente confundem-na com o julgamento obscuro que eles formam a respeito de sua natureza, e pensam que há na parte que sofre algo similar à sensação de dor da qual eles têm consciência, dela somenteŤ.

Algumas características do modo de pensar cartesiano podem ser inferidas a partir do que vimos até aqui.

∙ O primeiro preceito lógico, que preconiza aceitar como verdadeiro somente o indubi- tável, impõe o desaĄo (identiĄcado por Peirce, como veremos adiante) de reconhecer uma verdade indubitável: aĄnal, basta que o sujeito não duvide para ser verdade? Mas e se a ausência de dúvida for consequência de irreĆexão? Essas ponderações, se levadas adiante como fez Peirce, podem levar à conclusão de que o método cartesiano tem falhas importantes, e disso trataremos oportunamente.

No momento essa consideração nos leva a um questionamento: algumas proposições são mais difíceis de duvidar que outras? E a resposta é sim: as proposições baseadas em fenômenos naturais repetíveis tendem a ser mais difíceis de duvidar. Por essa razão, o método cartesiano encontra sucesso nas ciências naturais, as que são baseadas em observações de fenômenos naturais repetíveis: química, física, biologia etc. Já as ciências cujas premissas não têm essas característica tendem a ter menos vantagens no uso do método cartesiano, como são as ditas ciências humanas: história, sociologia, ĄlosoĄa etc. Nelas as conclusões são tão dubitáveis quanto as premissas. ∙ O segundo preceito lógico preconiza que uma diĄculdade seja dividida em parcelas

menores. Quão menores? O primeiro preceito ajuda a responder: tão pequenas quanto seja necessário para identiĄcar de forma indubitável o que é verdade e o que não é. A partir dessa fragmentação das diĄculdades é que se começa a arrazoar sobre elas, partindo do mais simples até chegar ao mais complexo. Os raciocínios passam a se mostrar baseados em verdades indubitáveis simples, que funcionam como os axiomas da geometria, que se compõem para chegar a conclusões mais complexas. Essa tendência à axiomatização tem a desvantagem de impossibilitar o uso do método para avaliar proposições essencialmente complexas Ůou seja, que não podem ser decompostas em proposição mais simples sem que Ąquem descaracterizadas.

∙ Ao preconizar que os raciocínios complexos partam dos mais simples, iniciando no que é indubitável e construindo a partir daí um arrazoado, o método cartesiano permite a construção de grandes edifícios teóricos a partir de premissas simples e raciocínios dedutivos Ůque dispensam veriĄcação experimental (ver 4.2.4). O caso expoente é a própria matemática, um corpo de conhecimentos tão vasto que não pode ser inteiramente conhecido durante uma vida e que é baseado em tão poucos axiomas que se contam nos dedos. Termina havendo uma supervalorização do encadeamento

lógico nos raciocínios, em detrimento, às vezes, da plausibilidade das conclusões.

Uma consequência é que pequenas variações no que se considera indubitável leva a enormes variações nas conclusões. Resulta comum que corpos de conhecimentos sobre o mesmo assunto sejam muito diferentes, como é o caso, por exemplo, das próprias teorias semióticas. Outra consequência é que essa capacidade termina por gerar corpos de conhecimento extensos que não têm pontos em comum com outras disciplinas, diĄcultando, quando não impossibilitando, posteriores abordagens multidisciplinares.

∙ Ao determinar que a distinção é condição necessária para o reconhecimento da verdade se está privilegiando argumentos que apresentam tal distinção. Mas esta distinção pode ser obtida través de um artifício estilístico: ao contrastarmos um conceito ao seu oposto destacamos mutuamente ambos os conceitos apresentados, da mesma forma que um ponto preto é melhor destacado sobre um fundo branco do que sobre um fundo acinzentado. O resultado é que os textos que apresentam uma

tendência à análise dualista, no estilo Şou isso ou aquiloŤ, tendem a parecer mais

verdadeiros.

Um exemplo é o texto desta seção 4.1: Duas maneiras de pensar, escrito proposital- mente nesse estilo: aqui se colocam as duas epistemologias lado a lado, e, ignorando todas as nuances intermediárias, praticamente as mostra como alternativas mutua- mente exclusivas, embora isso nunca seja aĄrmado. As razões pelas quais esse tipo de oposição introduz uma impressão de clareza podem ser explicadas por argumentos da epistemologia peirceana, como se verá na subseção 4.1.2: O método peirceano.