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4.3 Algumas considerações adicionais

4.3.3 SigniĄcado e vagueza em Peirce

A semiótica peirceana realiza-se num corpo ĄlosóĄco extenso que ainda não foi completamente explorado. Nele é possível encontrar uma visão lúcida do processo de signiĄcação, cuja descrição completa está além do escopo do presente trabalho e do alcance deste autor. Para apresentar o assunto resumiremos pontos de Nöth e Santaella (2011), que nos dão uma visão aguda do tema, inciando por uma citação de Peirce em Brier (2008):

Nenhum pensamento atual presente (o qual é uma mera sensação) tem qualquer signiĄcado, qualquer valor intelectual; isso tem base não no que é realmente pensado, mas com o que esse pensamento pode estar conectado em representação por pensamentos subsequentes; tal que o signiĄcado de um pensamento é de resto algo virtual. Pode-se objetar que se nenhum pensamento tem signiĄcado, todo pensamento [tudo o que se pensa] é sem signiĄcado. Mas isso é uma falácia similar a dizer que se em nenhum dos espaços sucessivos que um corpo preenche há espaço para movimento, então não há espaço para movimento através do todo. Em nenhum instante do meu estado mental há cognição ou representação, mas na relação dos meus estados mentais em diferentes instantes há (CP 5.289, 1868).

Nöth e Santaella apontam o enigma: primeiro, pensamentos e por extensão signos em geral aparentemente não têm signiĄcado sempre; segundo, o signiĄcado de um pensamento é Şde resto algo virtualŤ. Há dois sentidos em que um pensamento não tem signiĄcado. Num, é que há signos que interpretados pelo pensamento não tem signiĄcado próprio: são os signos indexicais Ůos índices. Eles não signiĄcam, mas transmitem informação, no sentido em que o termo é usado nas ciências naturais e da informação. O outro sentido é o endereçado na citação: o pensamento não tem signiĄcado quando é uma mera sensação. ŞPensamento atual presenteŤ não tem signiĄcado uma vez que ainda não está conectado com outros pensamentos, que ele poderia representar. Os autores notam que ŞPeirce distingue o pensamento do ato de pensar. O último tem signiĄcado sempre, uma vez que o ato de pensar, em contraste com o pensamento, é sempre dialógicoŤ. E citam Peirce novamente:

Todo ato de pensar tem forma dialógica. O si-mesmo de um instante apela para assentimento do si-mesmo mais profundo. Consequentemente, todo ato de pensar é conduzido em signos que são principalmente da mesma estrutura geral das palavras; aqueles que não o são, são da natureza daqueles signos dos quais temos necessidade de vez em quando em nossa conversa um com o outro para suprir os defeitos das palavras, ou símbolos. Esses pensamentos-signo não-simbólicos são de duas classes: primeiro, Ąguras ou diagramas ou outras imagens (eu os chamo de Ícones) tais quais devem ser usados para explicar as signiĄcações das palavras; e segundo, signos mais ou menos análogos a sintomas (eu os chamo Índices) dos quais as observações do entorno através das quais sabemos sobre o que alguém está falando são exemplos. Os Ícones principalmente ilustram as signiĄcações dos pensamentos-predicado, os Índices as denotações dos pensamentos-sujeito. A substância dos pensamentos consistem dessas três espécies de ingrediente (CP 6.338, 1908).

Portanto, o signiĄcado verbal (que Peirce chama de signiĄcação no texto) necessita de ícones. Mas em Peirce o signiĄcado pode não se incorporar, pode ser virtual, como vimos acima. Pode ser um esse in futuro, como nos lembram Nöth e Santaella citando (CP 2.148, 1902). Essa dupla natureza do signo é assim explicada pelos autores: a incorporação é fenômeno de secundidade. Assim, para transmitir seu signiĄcado em uma instância especíĄca de semiose, o signo precisa estar incorporado para criar seu efeito semiótico na forma de um interpretante. Mas logicamente o signo não é fenômeno de secundidade mas de terceiridade, e como tal não precisa estar incorporado numa instância especíĄca de uso. Como tal, o signo não tem ser, apenas necessidade lógica.

Mas signiĄcado não é um conceito chave na semiótica peirceana e não tem um lugar sistematicamente determinado nela, segundo os autores. É principalmente uma questão para o interpretante, mas também pertence ao objeto do signo. No caso de um símbolo, por exemplo, o seu objeto imediato é o nosso conhecimento colateral do objeto dinâmico do símbolo: é o signiĄcado transmitido pelo signo, e é complementar ao interpretante. Esse sentido é referido por Peirce na seguinte deĄnição: ŞUm signo representa algo para a ideia que ele produz, ou modiĄca. Ou, é um veículo transmitindo para dentro da mente algo de fora. Aquilo que ele representa é chamado seu objeto; o que ele transmite, seu signiĄcado; e a ideia para a qual ele dá origem, seu interpretanteŤ (CP 1.339, sem data). Finalmente, os autores consideram a questão da vagueza trazendo-nos o inesperado Ůe não obstante coerenteŮ ponto de vista peirceano, no qual a vagueza é uma Şnecessidade semiótica para o crescimento dos signos na troca conversacional, na pesquisa cientíĄca, e na linguagem e cultura em geral. [. . . ] Indeterminação e vagueza são inerentes à representação e interpretação. Nos diálogos, não é apenas impossível mas também indesejável ser absolutamente precisoŤ (NÖTH; SANTAELLA, 2011, resumo). Uma chave para a teoria da vagueza de Peirce é a doutrina do sinequismo, citada na página 86.

4.3. Algumas considerações adicionais 109

Lembrando-nos inicialmente que Şo sonho de uma linguagem livre de ambiguidades e vagueza tem sido acalentado desde que Francis Bacon fez seu apelo por uma linguagem livre de sentenças que Śimpõem sobre nós [aquelas] falsas aparênciasŠ Ť, prosseguem apontando diversos autores que estudaram o tema, alguns também considerando a vagueza um mal a ser extirpado. A teoria da vagueza de Peirce foi reconstruída graças ao trabalho de diversos autores que também mostraram que a lógica de Peirce resolve alguns problemas fundamentais no tema do signiĄcado vago. O próprio Peirce chegou a criticar a ausência de atenção sobre o tema de lógicos seus contemporâneos.

Seguem: para Peirce, indeterminação é parte tanto da vagueza quanto da generali- dade, e estas são antíteses análogas entre si: o geral é Şaquilo para o que não se aplica o princípio do terceiro excluído. Um triângulo em geral não é nem isósceles nem equilátero; nem [. . . ] escalenoŤ (CP 5.505, 1905). O vago, em contraste, é Şaquilo sobre o que o princípio da contradição não se aplica. Pois não é falso que um animal (num sentido vago) é macho nem que é fêmeaŤ (ibid.). Do ponto de vista retórico, elocuções vagas e gerais oferecem a oportunidade de tornar palavras e argumentos mais precisos no decorrer de uma conversa, se desejado; e abrem espaço para interpretações imaginativas: Ş ŚO homem é mortal.Š ŚQual homem?Š ŚQualquer um que você escolherŠ Ť (ibid.).

Os autores informam, citando Tiercelin (2005), que a vagueza é inerente à percepção e à cognição porque interpretamos nossas percepções com base em crenças e hábitos de julgamento, que são imprecisos: quando dizemos a cor de um objeto o fazemos por hábito, não através de uma cartela de cores. Uma vez que as cores formam um contínuo, o hábito de nomeá-las resulta em vagueza. Isso resulta na incerteza de um intérprete quanto ao signiĄcado pretendido por um falante cuja linguagem indeterminada permite várias interpretações Ůo que não se deve ao conhecimento incompleto do falante a respeito do estado de coisas, mas é intrínseco ao hábito da linguagem indeterminada.

Prosseguem apontando a vagueza no signo: Peirce considera suas próprias deĄnições insatisfatórias, denotando a diĄculdade essencial de se chegar a uma deĄnição precisa; a vagueza no objeto, que depende da classe do signo: o símbolo é vago por sua generalidade, o índice, sendo vazio de signiĄcado é intrinsecamente vago, e o ícone é o signo mais vago, já que a vagueza é essencial aos fenômenos de primeiridade pois envolvem qualidades, acaso, o indeterminado, o incerto, o sentimento, o espontâneo, frescor, originalidade, hipótese e conjeturas; e Ąnalmente a vagueza no interpretante, decorrente de sua natureza dialógica.

Finalmente apresentam as consequências da vagueza essencial dos signos, que não podem ser nem tão vagos a ponto de serem sem sentido, nem tão precisos que não possam crescer. A esse respeito concluem: Şuma linguagem que é absolutamente precisa não pode mudar sem se tornar menos precisa, e uma linguagem que não muda mais só pode ser uma

linguagem mortaŤ. Não podemos terminar este resumo sem lembrarmos a imutabilidade das ditas ŞlinguagensŤ de programação.

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5 Semiótica de Peirce em ŞSemiotics of Pro-

grammingŤ

Tendo exposto o livro de Tanaka-Ishii no cap. 3, e conceitos da semiótica peirceana no cap. 4, passamos agora à análise da aplicação que a autora dá a ela. Consideramos a seguir a abordagem que a autora dá ao tema, as consequências dessa abordagem no trabalho e, por último, fazemos considerações sobre alguns caminhos que o livro poderia ter percorrido.