• Nenhum resultado encontrado

1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

1.10 O mínimo existencial constitui direito-garantia fundamental autônomo

Para Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo, o jurista alemão Otto Bachof foi o primeiro a sustentar a “possibilidade do reconhecimento de

um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos para uma existência digna”99. Amparado no art. 1º, inc. I da Lei Fundamental da Alemanha, o referido

publicista considerou que o princípio da dignidade humana reclama, além da garantia da liberdade, um mínimo de segurança social, uma vez que a falta de recursos materiais para uma vida digna implica o sacrifício daquele preceito fundamental.

Posteriormente, tanto o Tribunal Federal Administrativo (Bundesverwaltungsgericht) quanto o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em casos concretos, concederam aos jurisdicionados o direito subjetivo ao recebimento do auxílio material por parte do Estado, tudo fundamentado no postulado da dignidade da pessoa humana. Reconheceu-se, assim, um direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna, que deve ser preservada pelo Estado mediante a adoção de políticas públicas permanentes.

Registram Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo que os arestos da Corte Alemã resultaram no “reconhecimento definitivo do status

97

PEREIRA, Usuários..., p. 326-327.

98

Para José Sérgio da Silva Cristóvam, “A garantia dos direitos fundamentais de liberdade e, principalmente, a implementação dos direitos fundamentais sociais, exige um ativismo judicial responsável e comprometido, que, embora reconhecendo os inolvidáveis limites da reserva do possível, torne viável e efetiva a paulatina realização dos compromissos sociais constitucionalmente assegurados”. CRISTÓVAM, Colisões..., p. 213-214.

99

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner; SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: Algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 24, julho de 2008. Disponível em: <htpp://www.revistadoutrina.trf4.jus.br>. Acesso em 14 de out. de 2008.

constitucional da garantia estatal do mínimo existencial”100. Segundo os referidos

autores, a doutrina alemã concebe que a garantia das condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, sendo uma de suas principais tarefas e obrigações101.

No Brasil, embora inexista uma expressa previsão constitucional assegurando a garantia do mínimo existencial, esta decorre da proteção da vida e da dignidade humana. Na Constituição Federal, a garantia de uma existência digna consta do elenco de princípios e objetivos da ordem constitucional econômica (art. 170, caput). Por outro lado, os direitos sociais específicos (como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros) abarcam algumas das dimensões daquele direito-garantia fundamental autônomo.

Toda a política fiscal de arrecadação de tributos tem um fim específico, que consiste na realização pelo ente estatal dos objetivos fundamentais da Constituição. E o primeiro deles é assegurar o mínimo existencial para todos aqueles que, em função das suas limitações físicas ou mentais, não conseguem obtê-lo com o seu próprio esforço102. Por isso, as metas constitucionais relativas ao mínimo

existencial merecem a total e irrestrita promoção por parte do Estado, devendo ser feita a devida compatibilização delas com as limitações orçamentárias existentes. Nestes termos, o mínimo existencial (saúde básica, ensino fundamental, assistência aos idosos, portadores de necessidades especiais e acesso à justiça) constitui o fim prioritário dos gastos públicos.

Assegurar a concretização do direito fundamental ao mínimo existencial é condição para viabilizar aos beneficiários o exercício de outros direitos também fundamentais, como é o caso do exercício dos direitos políticos. Caso o Estado se

100 Idem, p. 10. 101 Idem, p. 11. 102

Sustenta Andréas Krell que é “obrigação de um Estado Social controlar os riscos resultantes do problema da pobreza que não podem ser atribuídos aos próprios indivíduos, e restituir um status mínimo de satisfação das necessidades pessoais. Assim, numa sociedade onde existe a possibilidade fática da cura de uma doença, o seu impedimento significa uma violência contra a pessoa doente que é diretamente prejudicada na sua vida e integridade”. KRELL, Andreas J. Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na base dos direitos fundamentais sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada. Construindo Pontes entre o Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 42.

omita na promoção do mínimo existencial fisiológico e sócio-cultural103, restarão

também sacrificados os valores republicanos e democráticos, pois os excluídos serão pessoas sem o mínimo de dignidade para participar do processo democrático decisório104.

Os direitos sociais não visam apenas conferir aos cidadãos o mínimo. É preciso assegurar um mínimo existencial fisiológico e sociocultural. Não se pode limitá-lo a uma mera sobrevivência física. É preciso pensar aquela garantia também no sentido da viabilização de prestações em termos de direitos culturais. A Constituição reclama um horizonte de eficácia sempre crescente, para que se busque a máxima realização daqueles direitos fundamentais. O mínimo existencial é apenas para que o cidadão não perca a sua condição de humanidade105. Por isso, o

máximo deve ser a meta a ser buscada pelo ente estatal.

103

Asseveram Mariana Filchtiner Figueiredo e Ingo Wolfgang Sarlet: “De qualquer modo, tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situando-se, portanto, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesta perspectiva, que se uma vida sem alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à mera existência. Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler, para quem a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada “quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner; SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: Algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 24, julho de 2008. Disponível em: <htpp://www.revistadoutrina.trf4.jus.br>. Acesso em 14 de out. de 2008.

104

Ressalta Thiago Lima Breus que “(...) os direitos que contemplam o mínimo existencial se apresentam, na difundida classificação dos direitos materialmente fundamentais elaborada por Jurgen Habermas, como direitos que atuam como pressupostos para o exercício de outros direitos fundamentais. Em última análise, eles representam condições para o próprio exercício dos demais direitos, também materialmente fundamentais. Por decorrência, estes direitos funcionam, segundo Habermas, como limites à deliberação coletiva. Entretanto, eles não têm o seu fundamento último em fórmulas metafísicas, ou pré-políticas, ao contrário, se apresentam como fundamento para exercício da própria política democrática”. BREUS, Thiago Lima. Da Prestação de Serviços à Concretização de Direitos: O Papel do Estado na Efetivação do Mínimo Existencial. In: COSTALDELLO, Angela Cassia (coord.). Serviço Público – Direitos Fundamentais, Formas Organizacionais e Cidadania. Curitiba: Juruá, 2007, p. 255. A seguir prossegue: “Nas sociedades, no entanto, em que não se dispõe das condições necessárias para a plena realização de um processo deliberativo adequado, torna-se possível garantir que o interesse público que o Estado deve perseguir se volta, antes, à implementação das condições que possam tornar os cidadãos aptos a participarem e influírem no processo de deliberação acerca das ações normativas e materiais, administrativas, do Estado”. BREUS, Thiago Lima. Da Prestação de Serviços à Concretização de Direitos: O Papel do Estado na Efetivação do Mínimo Existencial. In: COSTALDELLO, Angela Cassia (coord.). Serviço Público – Direitos Fundamentais, Formas Organizacionais e Cidadania. Curitiba: Juruá, 2007, p. 256.

105

Registra César A. Guimarães Pereira “(...) a teoria dos direitos fundamentais aponta a existência de direitos a prestações positivas estatais mínimas, destinadas a assegurar a realização material dos direitos sociais fundamentais, especialmente os mais diretamente ligados à dignidade da pessoa humana. Além disso, tanto os direitos fundamentais quanto outros valores constitucionais impõem a implementação de políticas que promovam a sua realização mesmo para além de tais prestações mínimas imediatamente exigíveis”. PEREIRA, Usuários..., p. 267-268.

Por outro lado, registram Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo:

(...) a impossibilidade de se estabelecer, de forma apriorística e acima de tudo de modo taxativo, um elenco dos elementos nucleares do mínimo existencial, no sentido de um rol fechado de posições subjetivas negativas e positivas correspondentes ao mínimo existencial. Além disso, encontra-se vedada até mesmo a fixação pelo legislador de valores fixos e padronizados para determinadas prestações destinadas a satisfazer o mínimo existencial, notadamente quando não prevista uma possibilidade de adequação às exigências concretas da pessoa beneficiada e se cuidar de um benefício único substitutivo da renda mensal. O que compõe o mínimo existencial reclama, portanto, uma análise (ou pelo menos a possibilidade de uma averiguação) à luz das necessidades de cada pessoa e de seu núcleo familiar, quando for o caso. Tudo isso, evidentemente, não afasta a possibilidade de se inventariar todo um conjunto de conquistas já sedimentadas e que, em princípio e sem excluírem outras possibilidades, servem como uma espécie de roteiro a guiar o intérprete e de modo geral os órgãos vinculados à concretização dessa garantia do mínimo existencial106.

É imprescindível, portanto, que sejam empreendidos todos os esforços pelos entes estatais para assegurar às pessoas humanas as condições materiais mínimas. Sem isso, o exercício da liberdade fica comprometido.

1.11 A aplicação do princípio da proporcionalidade na concretização dos