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2.1 Concepções sobre meio ambiente

2.1.3 O meio rural e a concepção de meio ambiente

Woortmann (1995, p. 29-66; 1998, p. 168) coloca que no meio rural existem concepções e valores - diferentes dos grupos anteriores - que influenciam as atuações sobre a natureza. A autora coloca que as práticas realizadas são orientadas prioritariamente pelo plano simbólico e que existe um controle familiar sobre uma parcela do território que representa um aspecto fundamental da organização local.

De forma geral, a família é um “grupo hierarquicamente organizado em torno de valores culturais e de uma moralidade”, onde existe uma subordinação do indivíduo ao todo representado pela família, sendo a aldeia ou vila, por sua vez, a mantenedora da família. A aldeia e a família são, desta forma, fontes de um sistema unificador de padrões e normas.

Além disso, a autora enfatiza que normalmente existem mecanismos de sucessão para não subdividir as propriedades, já que a terra não é apenas um fator de produção, mas também carregada de valores simbólicos. Em muitos casos, ainda é considerada um patrimônio e não apenas uma mercadoria. Desta forma, existem regras que regem o uso e o acesso aos recursos e espaços, tanto familiares quanto comunitários, muitas vezes ligados à divisão de gênero, ao parentesco e à dimensão da religiosidade.

A autora considera o parentesco como princípio organizatório e elemento central na reprodução social do campesinato, já que, em geral, a comunidade é um entrelaçamento de relações de parentesco. Queiroz (1983, p. 132) comenta ainda que "o parentesco surge como o primeiro nível de integração entre as unidades familiais, que são também as unidades produtivas fundamentais. Nesta concepção, as relações de parentesco aparecem como mecanismos constitutivos da vida sócio-econômica”.

Em locais onde são encontrados os sistemas de indivisibilidade da terra ou de partilha igualitária e seus correlatos - família nuclear ou extensa - estes só podem ser

explicados no plano da sucessão, da descendência e das trocas matrimoniais, ou seja, nos modos diferenciados de representação da terra, de concepção do patrimônio e das práticas de parentesco.

São muitas as etnografias que relatam um complexo sistema de herança da terra que permite o não fracionamento desse bem único e imprescindível à reprodução do modo de vida das comunidades rurais, visto que apesar de o número de filhos em uma família ser grande, nem todos permanecem na terra. Dentre as várias estratégias existentes podemos citar arranjos familiares de casamentos, celibato, fugas, migrações, formas de deserdamentos, entre outros (Cf. MOURA, 1978; WOORTMANN, 1998; WOORTMANN; WOORTMANN, 1993).

Cândido (1971, p. 76) complementa que o vínculo da solidariedade de parentesco, adicionado ao fundamento territorial, fortalece a unidade do bairro e desenvolve sua identidade própria. Segundo o autor, o aparecimento de bairros, muitas vezes acontece em função da subdivisão da propriedade, numa localidade que se encontra sobrecarregada de herdeiros, alguns dos quais, ao buscar oportunidades no sertão, acabam por formar novos povoados.

Entretanto, Leach (1971, p. 64) chama a atenção para o fato de o parentesco não poder ser considerado como um sistema isolado, mas sempre dependente dos direitos e interesses que o determinam. Os direitos de propriedade, por exemplo, referem-se aos indivíduos e aos grupos compostos como família. Assim, fazer parte de tal grupo, não é regido apenas pela genealogia, mas pelos interesses em comum (econômicos, legais, políticos ou religiosos). O nexo do parentesco, mais do que outro princípio de incorporação, é usado para conferir legitimidade.

Quanto às relações de gênero, Brandão (1999, p. 39-48), visando aprofundar o debate sobre o domínio humano sobre o ambiente, discute a questão da complementaridade e registra as diferenças de atuação masculina e feminina em Joanópolis - SP. Com isso, relata que embora as atividades fossem unificadas, havia sempre uma divisão nos momentos e atos de trabalho.

Woortmann (1998, p. 168,181), por sua vez, relembra que para cada espaço dentro da propriedade ou de outros territórios na comunidade, existem domínios ligados à divisão de gênero, significando muito mais do que uma simples divisão sexual do

trabalho. A autora ressalta que o trabalho em si “pode ser visto como um processo simbólico que constrói o gênero”.

Segundo Brandão (1999, p. 40), “no processo de socialização da natureza - de incorporação de espaços, seres e situações vividos e pensados como do mundo natural ao domínio da cultura”, os atos percebidos como de “domínio-destruição” são designados predominantemente como masculinos, e os de “incorporação-fecundação” são tidos como mais femininos. Desta forma, os homens estariam vinculados às duas pontas do processo constituído entre o plantar e o comercializar, ou seja, a mais voltada ao domínio da natureza e a mais associada às estratégias de relação com a sociedade. Cunha e Almeida (2002, p. 15), focados nas comunidades da Reserva Extrativista do Alto Juruá, comentam que cada gênero aprofunda conhecimentos em certas áreas, nas quais se especializam. Por exemplo, seringa e caçada são assuntos de homens; já capoeira, horta, canteiro e parto, assuntos de mulheres. Enquanto os homens observam estratos mais altos e coisas ao redor para vigiar a caça, as mulheres reparam mais nos estratos mais baixos, focando mais as plantas. Apesar da especialização, ambos os grupos dominam o conhecimento necessário à sua reprodução social e a troca de informações entre eles é freqüente e fundamental.

Woortmann (1998; 1999) em trabalhos realizados nos seringais do Acre e em comunidades pesqueiras no litoral do Nordeste, buscou apreender como se modifica a articulação entre os gêneros vinculada às mudanças ambientais e econômicas ocorridas ao longo do tempo. No litoral nordestino, segundo a autora, cabia às mulheres realizar atividades de agricultura e coleta nas áreas terrestres que faziam parte de seu domínio. Lá, produziam proteínas vegetais, calorias e outros elementos fundamentais que se encontravam presentes nos alimentos estocados ao longo do ano. Com estas ações, elas garantiam constância e qualidade na alimentação da família. Ao homem cabia, em seu domínio - o mar -, a obtenção das proteínas animais, de forma geral perecíveis e encontradas sazonalmente.

Nestas comunidades, a chegada da monocultura da cana, e posteriormente da agroindústria e do turismo, acabou por suprimir os espaços produtivos femininos (os mangues são poluídos ou aterrados; as terras onde faziam suas roças - chamadas de soltas - foram privatizadas; as áreas de coleta de frutos, desmatadas). Com seus

espaços produtivos reduzidos, as mulheres não são mais capazes de compartilhar com os homens a manutenção de suas famílias, passando a ser percebidas como preguiçosas e submetidas à violência. Podemos dizer, desta forma, que a degradação ambiental, nestas comunidades, levou à degradação da condição feminina (WOORTMANN, 1999, p. 105).

Já no seringal, a degradação atinge os espaços de produção masculinos. Nas colocações, com a queda da produção e preço da borracha, tornou-se disponível uma grande quantidade de mão-de-obra, também em função da forma de organização social presente na época, conhecida como família extensa. Ao mesmo tempo, houve o crescimento de espaços e atividades femininos. Desta maneira, o valor do trabalho masculino se deprecia, provocando gradativa queda na contribuição dos homens à reprodução do grupo doméstico. Neste caso, porém, a acusação de preguiçosos é dirigida a eles pelo patrão do seringal (WOORTMANN, 1998, p. 197).

Além disso, sendo o discurso público aquele que constrói a identidade do grupo, as comunidades estudadas do Nordeste, por exemplo, são percebidas como pesqueiras, por ser a pesca uma atividade masculina. Mas caso se levem em conta atividades e o ponto de vista feminino, essas comunidades serão também agrícolas, mudando completamente a forma de avaliação sobre o uso da terra e dos recursos naturais. Da mesma forma, nos seringais tudo se passa como se só existissem homens. Em ambos os casos existe um “processo de invisibilização das mulheres”, ou seja, no plano público, o reconhecimento das mulheres é nulo.

A autora coloca muita ênfase nesta questão, uma vez que os trabalhos acadêmicos, quando levam em conta a visão de apenas um gênero, dentro de um grupo estudado, contribuem para tal fenômeno (WOORTMANN, 1998, p. 190,198).

A dimensão do sagrado é outro aspecto do meio rural que não pode ser desconsiderado, já que não se separa o ambiente do universo humano, existindo uma relação de integração. Neste sentido, o meio está mergulhado na relação Humano- Deus-Natureza. Segundo Woortmann (1990, p. 62), as próprias lendas ou superstições, como o curupira, por exemplo, “remetem à noção de natureza como pessoa, isto é, um ordenamento do cosmo onde não se separam as coisas das pessoas; a um ordenamento holista do mundo”.

Woortmann e Woortmann (1997, p. 1-10), além disso, perceberam no conhecimento agrícola de comunidades rurais do Nordeste, uma dicotomia entre as categorias quente/frio e forte/fraco, que determinava certas técnicas de plantio por conta da natureza das plantas ou dos solos onde estas se encontravam. Porém, verificaram que estas categorias, além da área agrícola, abrangiam também outros campos semânticos (corpo - sangue quente, cabeça fria; relações sociais - os grupos fortes e os fracos; alimentos; remédios).

Vale ressaltar que, de modo geral, essas categorias não eram absolutas, e sim uma forma de perceber a relação entre as coisas. Na relação entre os alimentos e o corpo, por exemplo, uma comida podia ser muito forte caso um organismo estivesse fraco para ingeri-la. As categorias eram também dinâmicas, podendo variar ao longo do tempo: uma planta podia ser fria no início de seu desenvolvimento, mas se tornar quente em seu período de florescimento ou frutificação. Além disso, as categorias envolviam sempre gradações, ou seja, o esterco de gado era mais forte que serragem, mas mais fraco que esterco de galinha.

Desta forma, concluíram que estas categorias expressavam uma ideologia de equilíbrio e harmonia que ia além de aspectos meramente físicos e, comparam com outras etnografias, que também estavam presentes no modo de vida de outros povos da América Latina, do Mediterrâneo e mesmo da Nova Bretanha.

Assim, as práticas agrícolas, muitas vezes não expressam apenas um procedimento técnico, mas fazem parte de um determinado modelo cognitivo, pois ao falar de planta e solo, acabam por se referir à sua forma de sociedade, ao seu modo de ver o mundo. Isso significa que inovações tecnológicas serão ou não aceitas, desde que filtradas pelo modelo cognitivo onde estão inseridos (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 12-16).

Os modelos existentes de manejo, de acordo com a autora, constituem respostas às pressões sobre o campesinato ao longo de sua história. Muitos preconceitos sobre incapacidade, incompetência ou preguiça caem por terra quando a autora coloca que “a passagem de uma técnica agrícola à outra pode ser pensada como uma atualização ou redefinição desse saber e dessa lógica face às transformações sociais na região”.

Desta forma, é possível afirmar que a história de vida e o próprio ambiente onde se situa cada conjunto de produtores leva à construção de uma representação distinta a respeito dos recursos naturais onde estes se localizam, e conseqüentemente, das práticas a serem realizadas sobre eles.

Além disso, Woortmann, E. (1983, p. 164,192,202) afirma que o sítio é como um sistema fechado de partes articuladas, onde cada parte produz os insumos-produtos necessários à outra, no intuito de minimizar os gastos e manter internas as condições da produção.

Sendo assim, a proposição de técnicas ou formas diferenciadas de manejo, no que se refere às matas ciliares ou à microbacia, interfere diretamente na propriedade, na sua forma de gestão, e na interlocução com a família e sua comunidade.

Desta forma, antes da proposição de qualquer técnica a um agricultor ou a um grupo de proprietários, é fundamental que se conheça a forma de organização da comunidade rural envolvida. Esta é influenciada, em grande medida, pelas relações de parentesco, que determinam a percepção de cada grupo familiar sobre a propriedade e os espaços ali existentes; sobre os espaços comunitários e a forma de manejo e o comportamento relacionado a cada um deles. Da mesma forma, afeta o tipo de relação com os agentes sociais externos à família e à comunidade.