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O Mercado Assume o Comando do Planejamento

2.2 Quando a Água é uma Ameaça

2.2.2 O Mercado Assume o Comando do Planejamento

Ainda que não haja um arquétipo que permita reunir em um formato único todas as cidades formadas ao longo de rios, percebem-se características comuns à maioria delas. Entre essas características, está a ação do mercado, que já influenciava de modo significativo a produção do espaço.

De fato, o mercado e a irrigação estão vinculados à origem de grande parte das cidades (KOSTOF, 2009, p.31). Do ponto de vista econômico, o rio já foi caracterizado de diversas formas: eixo de atratividade, fonte de subsistência, recurso de proteção, facilidade para produção, via de transporte, eixo de depreciação, obstáculo físico ao desenvolvimento e ameaça econômica devido ao potencial de inundações. Esses diferentes modos de ver o rio vão depender, basicamente, do grau de desenvolvimento urbano de cada cidade nos diferentes períodos da história.

O enfraquecimento da importância do rio para o desenvolvimento econômico da cidade encontra-se, historicamente, entre a I e a II Revolução Industrial. O primeiro marco da mudança ocorreu com a I Revolução Industrial, quando a força propulsora da economia foi transferida para a malha ferroviária, ocasionando, em muitas cidades, a decadência das áreas às margens dos rios. O segundo marco ocorreu com a explosão populacional e tecnológica da cidade, durante a II Revolução Industrial, e com o advento dos veículos automotores no final do século XIX, que iniciaram uma nova transferência de importância para a malha viária, o que suscitou a urgência de adequação do desenho da cidade.

Nesse momento, o rio passa a ser percebido como inconveniente ou como obstáculo ao desenvolvimento urbano. Exemplo disso foi o desaparecimento dos rios na superfície em várias cidades do Reino Unido durante o século XX.

Como se vê, em nome do desejado crescimento das cidades houve o estímulo à regulação, ao ordenamento e ao controle da paisagem natural. Esse processo de produção, baseado na contínua produção de capital durante o Século XIX, transformou o espaço numa mercadoria, atribuindo-lhe valor e condicionando seu uso (CARLOS, 2011, p. 92). Nesse sentido, Haussman, no desejo de adaptar Paris às exigências econômicas e sociais do Segundo Império, realizou uma obra que prejudicou a classe operária, incomodou os pequenos burgueses expropriados, contrariou os hábitos dos habitantes da cidade e, em contrapartida, favoreceu imediatamente os capitães da indústria e financistas, que constituíam, então, os elementos mais ativos da sociedade (CHOAY, 2007).

Pode-se definir esquematicamente essa ordem nova por um certo número de características. Primeiro, a racionalização das vias de comunicação com a abertura de grandes artérias e a criação de estações. Depois a especialização bastante ativada dos setores urbanos (quarteirões de negócios do novo centro, agrupados nas capitais em torno da Bolsa [...]). Por outro lado, são criados novos órgãos que, por seu gigantismo, mudam o aspecto da cidade: grande lojas [...], grandes hotéis, grandes cafés [...] (CHOAY, 2007, p.4).

A partir de 1970, uma nova configuração espacial foi articulada pela dinâmica econômica como efeito da globalização. Essa abordagem concedeu ao mercado, de modo mais evidente, o poder sobre a organização econômica e sobre a espacialização da produção. A incapacidade do poder público de interferir com eficácia nas decisões sobre a localização das atividades marcou sua submissão ao mercado (SANTOS, 2003, p.22).

Esse processo colocou o mercado como agente norteador das mudanças do meio urbano (natural e construído), tornando o urbanismo um instrumento regulatório das necessidades econômicas vigentes. Desse modo, as margens dos rios passaram a acomodar grandes avenidas de circulação rápida que precisavam conectar as áreas periféricas da cidade.

Mais do que a influência da economia sobre o modo de produção do espaço, a transformação da cidade promovida pelo Urbanismo de Mercado é marcada pela absoluta submissão ao mercado. Em uma simbiose de interesses políticos e imobiliários, esse novo paradigma de urbanização busca a transformação do espaço em oportunidades para a realização do capital (WHITAKER, 2010), favorecendo interesses privados e desprezando demandas urbanas coletivas.

As áreas centrais (o centro tradicional, mais especificamente) são setores críticos de atuação do urbanismo de mercado. Historicamente, sua estrutura é diversificada e comporta uma complexidade de usos e funções, atividades comerciais expressivas, convergência de transporte público (PANERAI, 2006). Trata-se de local consolidado, superequipado, fragmentado e de valor histórico, características que instigam a máxima exploração pelo capital, ao mesmo tempo que restringem seu desenvolvimento pela pouca flexibilidade espacial. As áreas centrais possuem papel fundamental no desenvolvimento e crescimento da cidade. O centro tradicional é o ponto de acessibilidade máxima de uma metrópole para a maioria da população (VILLAÇA, 2012, p.94), o que configura a importância do centro para toda a cidade.

A fragmentação do solo, comumente vista no dimensionamento de quadras e lotes, resultante do traçado irregular que foi adaptado à topografia, com as edificações ocupando os limites do lote (estimuladas pela concentração comercial), levou ao aumento significativo da impermeabilização do solo, características vistas em diversas cidades.

Esse padrão de ocupação colabora com a aceleração do escoamento do volume de água que chega simultaneamente ao sistema de drenagem, produzindo inundações mais frequentes do que as que existiam quando a superfície era permeável e o escoamento se dava pelo ravinamento natural (TUCCI; BERTONI, 2003, p.45).

Essa baixa capacidade de drenagem urbana e a grande exposição ao risco de inundação (Figura 25) ̶ devido à proximidade dos rios ̶ , associadas à intensidade e aos extremos climáticos, contribuem para a construção do cenário que desafia as cidades com seus rios. Existem vários exemplos de como a intensidade ou os extremos pluviométricos podem, separadamente, provocar grandes impactos sobre as cidades.

Figura 25 ̶ Convergência e risco na área central de Londres, sendo: (a) concentração do transporte público; (b) mapa de centralidade; (c) mancha de inundação; (d) mapa de convergência e risco

Conforme dados disponíveis sobre chuvas extremas, em um único dia é possível perceber que algumas áreas do planeta sofrem mais com esse tipo de evento. Cidades e países como Londres (LLOYDS, 2010, p.7) e Estados Unidos (GLOBAL HISTORICAL CLIMATOLOGY NETWORK, 2011), apresentam índices crescentes de ocorrência e intensidade de precipitações. Já na Índia (GUHATHAKURTA et al., 2010) e na Austrália (AUSTRALIAN INSTITUTE OF MARINE SCIENCE, 2011), as experiências observadas mostram uma diminuição na frequência desses eventos, mas não na intensidade (a Austrália foi fortemente atingida em 2007, 2010 e 2011, e a Índia tem sofrido com grandes inundações desde o ano de 2008).

Previsões de mudanças na intensidade e frequência de eventos extremos poderiam servir para ações emergenciais que, embora não ideais, auxiliariam a minimizar os danos provocados. Entretanto, os modelos climáticos se mostram ainda pouco confiáveis, sugerindo que ainda há um grau de incerteza nos cenários de projeção de clima futuro (MARENGO, 2007, p.154).

A análise do processo de produção do espaço às margens de rios é fundamental para compreender a situação crítica alcançada pelas cidades organizadas sob o paradigma da eficiência econômica e de padrões insustentáveis de desenvolvimento. Tal análise permite identificar pontos críticos da forma urbana que levaram à alta impermeabilidade do solo e à aceleração do escoamento do volume de águas no sistema de drenagem, fatores que contribuem para a ocorrência de inundações mais frequentes. Além disso, a alta hierarquia viária existente às margens dos rios e o aumento da incidência e intensidade das chuvas tornam essas áreas específicas da cidade um cenário crítico para o processivo agravamento dos efeitos das inundações, isto é, prejuízos e perdas materiais e humanas, interrupção da atividade econômica, contaminação por doenças de veiculação hídrica, contaminação da água pela inundação de depósitos de material tóxico e interrupção da dinâmica urbana durante a inundação e durante o tempo de recuperação.

Os prejuízos sofridos com as inundações urbanas não deixam dúvidas sobre a urgência de adaptação das cidades para reduzir sua vulnerabilidade a curto, médio e longo prazo.