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6. UMA IDENTIDADE COLETIVA NO MERCADO

6.3. O MERCADO E A TRADIÇÃO

A importância das relações de trocas materiais para o surgimento e crescimento da cidade de Araçuaí, descrito no capítulo 3, faz com que o mercado municipal seja considerado pelos seus frequentadores como uma marca e uma tradição da cidade. Mercadores e feirantes relatam a importância do mercado de Araçuaí para toda a região, o que faz dele um espaço de valorização social da cidade e de seus frequentadores. “O melhor mercado da região é o nosso” (Dona Helena). “Aqui na cidade eu acho que o mercado municipal virou o ponto de referência viu, porque a cada dia eu acho que tá melhorando mais. Ele é muito bom”. O mercado se tornou ao longo do tempo uma referência da cidade, uma tradição para seus moradores e ponto obrigatório de passagem de quem vem de fora. O freguês de Belo Horizonte, Sr.Geraldo de Carvalho, relata a necessidade

de sua passagem no mercado durante suas visitas à cidade: “Olha, dizem que quem inventou a distância num conheceu a saudade. Toda vez que eu venho aqui se eu não passar aqui, eu deixei... ficou incompleta a minha viagem”. O ato de visitar o mercado, e lá estabelecer relações de trocas, é para muitos dos moradores da cidade ou que dos estão em Araçuaí a passeio, considerado uma tradição importante a ser perpetuada. Segundo Tatiane, pessoas de fora de Araçuaí “sempre vem visitar o mercado. Aquela coisa que é da tradição sabe. Você sempre quando mora fora, ‘Ah, eu tenho que ir lá, eu tenho que visitá, eu tenho que levá o que é da minha terra’, entendeu. Eles dão muito valor. Pra vê gente, reencontrá”.

Segundo frequentadores, através das relações sociais no mercado, costumes locais são reproduzidos e manifestações culturais preservadas.

Num pode deixar acabá o mercado nunca não. Cê tá doido. Se acabar a cultura acabou o povo né. Porque um povo que num tem cultura num é povo. O mundo sem cultura num é mundo. Isso é muito bom porque isso significa que a nossa cultura nunca vai acabar, entendeu? Sempre vai ter alguém que vai tá renovando aquilo que nossos antepassado deixou (Dona Helena).

De acordo com Dona Rita, caso a cidade de Araçuaí não contasse com o mercado, “ia perder cultura né. Ia perder a parte de cultura. Todo mundo fala do mercado, vão pro mercado”. As relações sociais de trocas materiais e simbólicas presentes no mercado, consideradas por muitos um costume da cidade a ser reproduzido, traz em si elementos culturais e morais das dinâmicas socioculturais locais. A religiosidade popular é um deles. Uma feirante, ao ser questionada sobre as relações sociais consideradas por ela mais importantes na vida cotidiana da feira, a amizade ou o comércio, respondeu: “Deus, amizade, depois o dinheiro”. A racionalidade religiosa está presente de forma significativa na vida social do mercado e da feira e influencia as relações de trocas. Em sua resposta, a feirante revela a presença de três racionalidades centrais em suas relações de trocas no mercado: a racionalidade religiosa (Deus), a racionalidade comunitária (amizade) e a racionalidade econômica (dinheiro). Como nos aponta a Nova Sociologia Econômica, muitos são os fatores que se correlacionam com as estruturas socioeconômicas, que não podem ser consideradas determinadas apenas por fatores econômicos. Dona Helena, em seu depoimento, aponta para nossa interpretação as racionalidades que a movem em sua vida diária, fora e dentro do

um freguês não vêm na minha mesa eu fico feliz porque Deus não quis. Primeiro vem Deus, depois a amizade, depois a saúde, depois da saúde o dinheiro. Porque dinheiro num é tudo não”.

No caso do mercado, a racionalidade econômica não pode ser atribuída constante e diretamente ao desejo de acumulação de riqueza, como apregoa o mito do homo economicus das economias clássica e neoclássica, mas principalmente a necessidade de sobrevivência. A renda conquistada através das “trocas mercadoria-dinheiro” no mercado, para a maioria dos comerciantes, significa a possibilidade de manutenção de uma vida digna para si e sua família. São valores, assim como os ofícios profissionais, transmitidos na maioria dos casos de forma familiar, de pais para filhos. Os filhos trabalham nas bancas das famílias muitas vezes para suprir uma carência financeira que não permite a contratação de funcionários, como relata Dona Emília. “Trabalho é com minhas filhas. Funcionário o que... num dá pra pagar não”. Mas não somente por isso. O trabalho dos filhos é o principal mecanismo de transmissão dos conhecimentos sobre a profissão e sobre os arranjos sociais presentes no mercado para futuros donos de banca. “O mercado é mais familiar. Todos que tem comércio aqui no mercado, a gente vê que é pai que passou pra filho, filho que tem barraca do lado do pai, né, sempre assim” (Dona Nieta). Apesar da maioria dos jovens araçuisenses não se interessarem pela vida do mercado por considerá-lo um local de idosos, “coisa de véio que ficou no passado que não existe mais o presente com os véios, é passado” (Dona Helena), muitos filhos de mercadores e feirantes se interessam pelas dinâmicas transmitidas por sua família.

O mercado é visto pelos mercadores como um espaço tradicional essencial para as cidades, como relata Seu Alírio: “Eu acho que a cidade que não tem um mercado pra mim não é cidade”. Segundo Seu Baiano, toda cidade deve possuir um mercado municipal que ofereça condições de trabalho e amizade entre os mercadores:

Eu acho que toda cidade deve ter um mercadozinho, pelo menos igual esse aqui né, bem arrumado, os banqueiro cada um com seu lugar certo, tudo vivendo bom uns com os outro, num tem ninguém com cara fechada pro outro e isso é bonito. Eu acho que porque no ambiente que eu fui criado num tem esse tipo de negócio de cara feia, de... cada qual trabalha e se num puder ajudar, deixa quieto. Prejudicar um amigo, aí... Cê prejudicando um amigo, que que acontece, mais tarde você sente prejudicado. “Eu prejudiquei fulano num merecia” e na hora que

botar a consciência se vê “eu num podia ter falado assim”. Se não pode ajudar deixa quieto porque o mundo é de nós todos. Deus diz: “faz sua parte que eu te ajudo”.