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4. A figura do militar português

4.1. O militar em Murmúrios

Passando agora à obra em análise, podemos considerá-la uma espécie de anti-epopeia, na qual os jovens militares são levados a perseguir um ideal que se apresenta de certo modo justificado pela ideologia de manutenção do Império português. Reconhecemos nas suas páginas a marca da autenticidade de quem viveu, em toda a sua dimensão, a necessidade de cumprir um papel na História – de serem, enfim, dignos da mensagem dos Descobrimentos.

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Cf. José Manuel Saraiva, jornalista do Expresso, na apresentação do livro de Gustavo Pimenta, sairòmeM –

Guerra Colonial (Porto: Palimage Editores, 1999), em 10 de Dezembro de 1999.

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Luís Alexandre Ferreira, o noivo, mais conhecido pelos militares por Luís Alex, é um oficial das Forças Armadas que cumpre o serviço militar em Moçambique, um homem zeloso e cumpridor do dever pátrio, que embrutece mediante a violência das batalhas. Para ele, se não houvesse guerra, “até a calmaria criaria pedra!” (p.13). Esta frase demonstra a sua obsessão pela causa portuguesa, bem notória no final do conto, aquando do confronto com o repórter, quando ele pensa: “Tinha casado no dia anterior, mas a Pátria era a Pátria, e o casamento era o casamento” (p.36). Defensor da Guerra Colonial, o alferes interioriza as formas de tratamento exigido na tropa, passando a designar o capitão Forza Leal com a expressão “o meu capitão” (cf. pp.29-30). Ele, que antes frequentava os cafés de Lisboa, troca definitivamente a investigação matemática pela carreira militar e começa a ver o seu superior hierárquico directo como um modelo a seguir na descoberta da sua grande “intuição para [aquele] tipo de combate” (p.59), apresentando-o como “um herói” (p.13) e patriota. Admiração obsessiva, em especial pela cicatriz do capitão, a qual representa para ele um estatuto de “alguma dignidade” (p.30), só comparável à do seu “General” (cf. pp.55-56), e um sinal de um heróico comportamento militar: “Levou-me a ver a cicatriz como se mostra uma paisagem, um recanto, se vai até um miradoiro para tirar uma fotografia.” (p.66). Por isso, gradualmente, o noivo altera o seu comportamento e reproduz a lógica da violência da Guerra Colonial. A mudança nele operada é consciente e irreversível: “Eu, um estudante de Matemática? Nunca mais!” (p.26). O alferes encontra assim um sentido para a sua própria vida, combatendo e tornando-se uma sombra do seu capitão.

Quando era um pacato estudante universitário, Luís “estava à beira de encontrar uma solução globalizadora para que o Galois só tinha descoberto soluções intervaladas e acidentais” (p.47), porém, longe do seu país e confrontado com um cenário de luta, ele esquece o “M de Matemática” (p.26) e tenta de novo ser um herói. Deixa então de ser um ponderado matemático e torna-se apenas um corpo capaz de executar ordens, “incondicional pelo capitão” (p.150), reduzindo-se a Luís Galex, cognome pelo qual ficou conhecido, devido à apurada pontaria em “atirar contra o olho do cu das galinhas” (p.155). Mais virado para as letras, começa a compor gritos de guerra da sua companhia (cf. p.155) e a participar com orgulho em cenas de degola, em plena actuação guerrilheira.

Por sua vez, o seu modelo de guerra, Jaime Forza Leal, possui um orgulho militar que toca o ridículo e vê na sua exagerada cicatriz de guerra que carrega no peito, propositadamente à mostra através de “meia dúzia de camisas transparentes” (p.64), um motivo de inveja para os outros militares, chegando a comparar o seu simbolismo à

independência, à sobriedade, ao espírito de corpo e às distinções (cf. p.64). Por esse motivo, também o alferes não se cansa de enaltecer o seu capitão, ao insistir e desejar “uma cicatriz como a do [seu] capitão” (p.60), o que representa uma atitude imatura, uma plena entrega ao mítico combate militar e um desejo de heroísmo. Tal admiração confirma o pesar que o alferes sente quando fala a Eva dos seus velhos generais que participavam do conflito em África: “Já viste que é a última possibilidade que têm de se distinguir?” (p. 57) e lamenta ainda o facto da Nação carecer da “memória do seu inimigo contemporâneo” (p. 59).

Por outro lado, o capitão Forza Leal expressa, pela própria ironia do nome, uma bravura e lealdade institucional à Pátria, comprometida pela distorção ortográfica da sua “Forza”, competências adquiridas por treino militar, quando confrontado com cenários de violência: “o noivo sabia que o seu capitão havia sido ferido ao som duma Kalashnikov […] na Guiné” (p.65). O capitão defende que África pertence a quem faz algo por ela e, quanto aos avanços da guerra, acredita que só podiam ser favoráveis ao exército luso (cf. pp.70-73). Arquétipo de homem agressivo e impiedoso, com sentido de honra pessoal e patriótica, é caricaturado negativamente como machista, dando ordens à mulher com “um gesto” (p.78) e incutindo-lhe medo com um “assobio tremido, de ordem e chamamento” (p.69).

Luís Alex torna-se uma figura caricata ao treinar o passo fantasma e as técnicas de silêncio, saindo do guarda-fatos do quarto do casal, com “as mãos na posição de quem segura uma arma, sem arma nenhuma verdadeira” (p.82). Imitando o seu modelo, corta “um dos lábios” (p.83) com uma faca de fruta, gesto silencioso e sangrento de ameaça preventiva à esposa, caso lhe fosse infiel, tal como acontecia na antiga mitologia.

Luís combate com o capitão e desenvolve-se, assim, um pacto de sangue, uma união cimentada pelo perigo. Nasce uma verdadeira amizade entre eles, estabelecendo-se uma espécie de “onda viril/ do fraterno afecto”129, fortalecida pela obsessão comum pelas lides e artes guerreiras. Gostam de comer marisco, de passear num descapotável à procura do melhor cocktail da cidade e de atirar sobre os flamingos para, assim, fazerem o “gostinho ao dedo” (p.49). O alferes, no clímax da narrativa, imitando o seu capitão num caso semelhante, ao ter conhecimento da infidelidade conjugal de Evita, convida o seu amante, o jornalista Álvaro Sabino, para uma partida de roleta russa. Podemos assim dizer que “Luís e Jaime Forza Leal são [quase] a mesma pessoa. Forza Leal é o interior de Luís, e de Luís só resta uma espécie de corpo sem alma, um recipiente vazio”130.

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Manuel Bandeira, apud Rui de Azevedo Teixeira, A Guerra e a Literatura, p.75.

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O capitão e o alferes fazem e amam a guerra, são men at war, simbolizam homens fortes, de inteligência prática, que não apreciam o mundo feminino. Forza e Alex, na ilusão de uma vitória, defendem a ditadura e o Império até ao limite, com um sentido de Pátria que lhes dá “aquele brilho que sempre conduz o homem até ao último esforço do músculo […] à última colina da montanha” (p.36). Eles representam assim todos os que se esgotaram na violência e no sofrimento, perseguindo uma imagem imperial: “a geração combatente, a última que viveu e morreu no Império”131.