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5. O olhar masculino sobre a guerra

5.1. Os meios logísticos

“Com o tradicional talento do improviso e a chaga da falta de meios, com a resiliência do soldado de quadricula a letal ansiedade combativa do soldado de elite, com armamento pobre mas com um bom pensamento estratégico […] e com a reprovação quase geral do mundo, Portugal consegue manter três

teatros de guerra noutro continente durante mais de dez anos.”158

Foi desta forma improvisada que Portugal participou numa guerra de guerrilhas, em Angola, Guiné e Moçambique, opondo o exército português aos exércitos independentistas daqueles territórios, para conservar as suas colónias.

Esta guerra caracterizava-se por ter tropas escassas no terreno, com pouca preparação para enfrentar uma guerra subversiva, que tinha como objectivo principal as pessoas, vendo no atacante o fraco e no defensor o forte. Para combater este tipo de guerra foi muito importante o pensamento estratégico-militar português, caracterizado em especial por um controlo das povoações mais importantes e concentração das populações nativas, em aldeamentos estratégicos (segundo o modelo francês na Argélia). Assim, os militares, para além de irem a zonas onde estavam os guerrilheiros, tinham como missão recolher as populações dispersas no mato e trazê-las para aldeamentos controlados pelas tropas. Para os promotores destas operações, a verdadeira medida do seu sucesso, mais do que nos resultados concretos de detecção e neutralização de combatentes nacionalistas, estava no número de camponeses das aldeias que conseguiam envolver. Deste esforço de conquista das populações nasceram os aldeamentos em Moçambique.

Era habitual ouvir expressões tipicamente militares, como “saio para o mato” (p.79) e “ando em missão” (p.59), que querem dizer sair do aquartelamento em missão e andar a conquistar a população. Estas provam que o factor essencial da guerra subversiva era a conquista da população. Daí o grande esforço colonial de instalação de estruturas de acção psico-social que, operando dentro de determinados parâmetros, conseguissem transformar as populações, de meros camponeses, em defensores activos da ordem colonial, em

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combatentes contra o movimento nacionalista armado. Muitas vezes, era através de altifalantes que tentavam persuadir o inimigo:

“Guerrilheiro, rende-te, nós somos os teus verdadeiros amigos, e a nossa pátria é só uma, a portuguesa. Pega nas tuas mulheres, nos teus bens, nos teus sobrinhos e família, teu tio, teu pai, tua mãe, e rende-te à tropa portuguesa. O português é teu amigo, o que os outros dizem são falsas panaceias” (p.113).

Também foi utilizada a estratégia de defesa das principais linhas de transporte e o rastreio do mato, ataque e destruição dos acampamentos inimigos. Era usual queimar as palhotas, para que não pudessem servir de abrigo aos guerrilheiros rebeldes “que, no acto de desespero, haveriam de [as] queimar eles mesmos […]” (p.113).

A guerra estava dividida em duas áreas: uma exposta (quartéis, povoações e estradas) e outra imperceptível (mato), onde o dispositivo guerrilheiro se escondia. A primeira era defendida pela tropa de quadrícula, por sua vez, a área do espaço da selva estava a cargo de tropas especiais, pois tinha um carácter ofensivo. Podemos dizer que o exército português se distinguia ora por ser punitivo, isto é, tentando destruir o inimigo, ora conciliador, quando procurava conquistar as mentes e os corações dos africanos.

Porém, em Moçambique os portugueses não conseguiram extinguir a guerrilha, “nem pela estratégia de conquista das mentes e corações nem pela estratégia de mata e esfola”159. A confirmar esta ideia, e como apreciação final ao modo português de fazer a guerra, John P. Cann defende que

“os portugueses optaram por pequenas patrulhas que pudessem penetrar em terrenos acidentados para reunir informações, matar guerrilheiros […] acima de tudo fazer contactos com as populações […] quando faziam estas práticas, como em Angola e na Guiné, tinham êxito. Quando se afastavam, como em

Moçambique, com a operação ‘Nó Górdio’, sofriam as consequências.”160

Por outro lado, havia problemas relacionados com as fardas dos combatentes, pois estas eram inadequadas para o Verão africano e dificultavam os movimentos, e com o armamento, considerado o elemento essencial da guerra, embora de fraca qualidade e de dispersão de origens. O material bélico português tinha um carácter de refugo de variada

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159

José Freire Antunes, op.cit., p.279.

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proveniência: restos da OTAN, sobras da Segunda Guerra Mundial fornecidas por norte- americanos e armamento de mercadores internacionais. Esta realidade foi um factor que afectou de modo negativo o ânimo das tropas, o seu espírito de combate. Tal como afirma Robert O’Connell: “uma premissa fundamental diz que a relação entre o homem e as suas armas é muito mais íntima e complexa do que até agora se tem admitido [pois as armas são] artefactos de máximo significado”161. A falta de qualidade também passava pelos veículos de transporte, registando-se “carros parados por falta de peças, remetem-se aquelas que não haviam sido pedidas e chega-se a comprar elementos para material nunca utilizado ou já posto de parte”162.

Em relação às tropas, podemos dizer que apresentavam sintomas graves de má nutrição (distrofia), pois a qualidade das rações de combate (mais conhecidas pelas salgadas “rações E”) não existia. A cadeia logística caracterizava-se, assim, pelo descuido, má organização e corrupção com produtos de baixo valor.

Quanto às vias de comunicações, estas apresentavam-se em más condições, estando isoladas e sem estarem asfaltadas.

Portugal enfrentou não só os guerrilheiros habituados à adversidade das terras africanas, mas também às emboscadas armadas pela própria natureza, repleta de florestas virgens e de selvas impenetráveis. O conflito colonial foi, portanto, um duelo travado pela tropa em condições emocionais desgastantes. A iniciativa parecia pertencer ao adversário: “surprise is the essential feature of guerrilla war; thus, the ambush is the classic guerrilla tactic”163.

Suportando ainda armamento pesado e fome, os militares passaram de atacantes a alvos fáceis dos ataques surpresa e das minas terrestres que os guerrilheiros colocavam como obstáculos para o avanço das tropas. A única aparente vantagem era possuírem aviões, carros de combate, artilharia e meios mecanizados de transporte militar, embora de utilidade limitada face às condições do terreno.

Devido ao desenvolvimento da guerra, Portugal chegou a recorrer ao uso de armas químicas, como o “napalm”164, e a todos os meios militares ao seu dispor para combater a

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161

Robert O’Connell, apud Rui de Azevedo Teixeira, p.10. Cursivo do autor.

162

Joaquim Vieira, “Introdução histórica”, in Os Anos da guerra, 1961-1975. Os Portugueses em África. Crónica,

Ficção e História, organização e prefácio de João de Melo, Volume I (Lisboa: Círculo de Leitores, 1988), p.51.

163

Michael Walzer, Just and Unjust wars (New York: Basic Books, 2000), p.176.

164

Matéria química incendiária que pode ser lançada em bombardeamentos aéreos ou em terra, como arma de ataque.

guerrilha, incluindo unidades de tropas especiais, como os comandos, os chamados “rangers”, os fuzileiros e as chamadas “forças auxiliares”165. Contudo a grande prova do esforço das tropas foi o “apoio logístico à operação ‘Nó Górdio’ [o qual representou] uma notável demonstração de capacidade de previsão, planeamento, coordenação e execução dos militares portugueses, realizada em condições do mais alto grau de dificuldade”166.

Os combatentes sentiram dificuldades desde o início, não só devido à sua falta de preparação e desconhecimento da realidade, mas também à participação de muitos dos intervenientes no processo da guerra, e às falhas do sistema nos aspectos de programação, logística, meios disponibilizados e sensibilidade às condições existentes no terreno operacional. Como testemunhou António Lobo Antunes: “A instabilidade e improvisação caracterizam esta guerra.”167; “É incrível a guerra que aqui fazemos sozinhos e sem meios, contra um inimigo cada vez mais numeroso e bem preparado.”168; “[…] os tipos já estão melhor armados do que nós, com canhões sem recuo e morteiros 82, que nós não temos. O que os nossos soldados têm é imensa coragem e um espírito de sacrifício […]. Saem para a mata mal comidos e pessimamente dormidos com um estoicismo extraordinário”169.

Apesar dos poucos meios logísticos, os esforços das tropas portuguesas foram dignos de nota:

“Entre 1961 e 1974, Portugal enfrentou a tarefa extremamente ambiciosa de dirigir três campanhas de contra insurreição simultaneamente: na Guiné, em Angola e em Moçambique. Nessa altura Portugal não era um país rico nem desenvolvido […] constitui um feito notável que Portugal, em 1961, conseguisse mobilizar um exército, o transportasse para as suas colónias em África, a muitos milhares de quilómetros, aí estabelecesse numerosas bases logísticas […] o preparasse com armas e equipamento

especial.”170