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1. D OAÇÃO E COLHEITA POST MORTEM :

1.1. D O ACONTECIMENTO DE MORRER AO CONCEITO DE MORTE

1.2.1. O MODELO ÉTICO JURÍDICO DE CONSENTIMENTO INFORMADO

O consentimento informado é entendido nos dias de hoje como um procedimento ético-legal indispensável no exercício da medicina. Este requisito é amplamente divulgado pela primeira vez no Código de Nuremberga, de 1947, no rescaldo das atrocidades cometidas no holocausto dos judeus, perpetrado pelos nazis, durante a Segunda Guerra Mundial, e é acentuado pela Declaração de Helsínquia, na primeira versão que data de 1964 e nas revisões e actualizações que se seguiram. O consentimento informado começa por ser afirmado como uma exigência no âmbito da experimentação humana, alargando-se rapidamente à prática clínica em geral.

O consentimento informado fundamenta-se no princípio ético da autonomia, na preponderância da vontade da pessoa, salvaguardando a integridade e dignidade que lhe são intrínsecas. A sua emergência deve-se ao movimento dos direitos humanos e à reflexão bioética que consolidam os princípios da dignidade pessoal. Nas palavras de J. Pinto da Costa “o consentimento informado decorre do conceito fundamental dos direitos humanos, especialmente nos direitos de autodeterminação e da inviolabilidade baseada na integridade corporal”156.

De um modo geral, o consentimento informado é a expressão máxima da autonomia do doente em detrimento do paternalismo médico, dando voz à vontade do primeiro relativamente aos procedimentos clínicos aplicados no seu próprio corpo. Neste âmbito, o doente deixa de receber de um modo passivo referências do médico sobre o

156

J. Pinto da Costa, “Interferência do consentimento informado no aspecto técnico-científico do exercício da medicina”, in O consentimento informado. Actas do I Seminário promovido pelo Conselho Nacional de

Ética para as Ciências da Vida (30 a 31 de Março de 1992), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa,

melhor tratamento clínico para o seu corpo. O doente começa então a participar e a colaborar nas decisões referentes à sua saúde, apoiando-se na informação técnico- científica transmitida pelo médico.

No domínio específico dos transplantes e da doação post mortem, o consentimento é um imperativo ético-legal de relevante importância, a fim de salvaguardar a vontade do dador. É o que João Loureiro designa por “disposições feitas em vida, que produzem eficácia post mortem”157.

A história dos transplantes na sua fase experimental relata várias práticas actualmente inadmissíveis de acordo com os padrões éticos e jurídicos que regulam a prática médica dos nossos dias. No entanto, quando nos anos 80 a transplantação passou do domínio experimental para o domínio terapêutico, entendida como uma intervenção clínica de sucesso, a exigência do consentimento informado, como expressão máxima do princípio de autonomia que assiste a cada um em relação ao seu corpo, é já entendida como um requisito ético e jurídico incontornável para se proceder à colheita de órgãos em cadáveres.

No domínio específico da colheita post mortem, o consentimento informado consiste num processo de transmissão de informação sobre a decisão de doar órgãos após a morte e o impacto que esta doação poderá ter para salvar a vida de outras pessoas. Assim, é colocada a possibilidade aos cidadãos em geral de, uma vez falecidos, permitirem que lhes sejam retirados os órgãos para serem transplantados em doentes que deles necessitam para viver e/ou melhorarem a sua qualidade de vida. Na perspectiva de Queiroz e Melo “esse procedimento deverá ser uma opção individual, baseado nas crenças e valores de cada pessoa. Nesta situação, quem obtém o consentimento é a

157

sociedade, através da aplicação de regras que permitam esclarecer condutas para as colheitas de órgãos e tecidos após a morte”158.

Por outras palavras, cada pessoa, em vida, é chamada a dar o seu consentimento, de forma explícita, por escrito, e revogável a qualquer momento, para se tornar dadora

post mortem. É exigida uma atitude positiva por parte do cidadão, na medida em que este

exprime e permite a doação e colheita dos seus órgãos após a morte. Na prática, é o cidadão que contacta os serviços competentes nesta matéria no seu país e, de forma informada e voluntária, se propõe como potencial dador depois de falecido. A sua identificação entra então no sistema nacional de dadores e é-lhe atribuído um cartão de dador que o deve acompanhar sempre.

O regime ético-jurídico de consentimento informado – opting in system – foi o primeiro a ser implementado no domínio dos transplantes e é ainda o que vigora no Reino Unido, na Alemanha, e também nos Estados Unidos159.

Este modelo pode assumir duas expressões distintas: a do “consentimento informado restrito” e a do “consentimento informado alargado”. No primeiro caso, exige- se que o consentimento que legitima a colheita e a doação de órgãos post mortem tenha sido obtido em vida do agora falecido e potencial dador. Este é o mais restrito de todos os modelos existentes, uma vez que é exigida uma autorização expressa exclusivamente do dador em relação ao processo de doação. O principal valor que se destaca é o da autonomia da pessoa (entretanto falecida), e que não pode ser superada nem pela família, nem por qualquer outro órgão público. O potencial dador é o único que pode decidir livre e esclarecidamente sobre a possibilidade de lhe serem extraídos órgãos para transplante.

158

João Queiroz e Melo, “Consentimento informado do receptor e do dador”, in Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald (coord.), Bioética, Verbo, Lisboa, 1996, p. 292.

159

Alberto Abadie e Sebastien Gay, “The impact of presumed consent legislation on cadaveric organ donation: a cross-country study”, Journal of Health Economics, 25 (2006), p. 619.

Na génese deste modelo está o respeito pela autonomia e a preocupação de salvaguardar a integridade do falecido no caso de não haver um documento que revele a sua vontade em relação à colheita de órgãos. Deste modo, garante-se a inviolabilidade do cadáver e de tudo o que este possa representar enquanto corpo vivido, bem como a garantia de que a colheita é efectuada em pessoas que, ao terem manifestado a sua decisão, estavam esclarecidas sobre o sentido da sua doação e sobre a utilização dos seus órgãos.

No entanto, o rigor do modelo de consentimento informado restrito, que visa sobretudo respeitar a decisão autónoma da pessoa, não favorece que todos os órgãos úteis para transplante sejam colhidos. Assim, verifica-se que nos países onde vigora este modelo a taxa de colheita post mortem é bastante reduzida. É o caso do Reino Unido, com uma taxa de colheita em cadáveres em 2005 de 10,7 p.m.p.160 e em 2007 de 13,2

p.m.p.161. Considera-se que dos cerca de 70% da população que teria o desejo de doar os

seus órgãos depois da morte, apenas 15% o venha a formalizar, inscrevendo-se no registo de dadores de órgãos162. É convicção generalizada que muitas pessoas que não têm

qualquer objecção a tornar-se dadoras de órgãos post mortem, não tomam a iniciativa de o declararem em vida devido a circunstâncias muito variadas, tais como desconhecimento do local onde o fazerem, falta de tempo e dificuldade de perspectivarem a sua própria morte.

A crescente necessidade de órgãos suscitada pelo sucesso das terapêuticas de transplantação conduziu a uma maior flexibilidade do sistema ético-jurídico sobre a colheita em cadáveres. É neste contexto que se enquadra o designado consentimento

160

Cf. Ariadna Sanz, Reginaldo C. Boni, Angelo Ghirardini, Alessandro Nanni Costa e Marti Manyalich, “IRODaT: 2005 donation and transplantation preliminary figures”, Organs, Tissues and Cells, 1 (2006), p. 10.

161

Cf. Conselho da Europa, “International figures on organ donation and transplant – 2007, Newsletter Transplant”, p. 4.

162

V. English e A. Sommerville, “Presumed consent for transplantation: a dead issue after Alder Hey?”,

informado alargado. Neste caso, permite-se que o consentimento para a colheita de órgãos post mortem seja obtido também junto dos familiares do falecido, desde que o falecido não se tenha pronunciado sobre a matéria em vida. O consentimento informado alargado permite efectivamente aumentar o número de colheitas em cadáver, passando a contabilizar aqueles que não se declararam dadores em vida, mas cujos familiares consideraram não existir objecções à doação.

O consentimento informado alargado é o que vigora nos Estados Unidos, tendo sido instituído pelo “Uniform Anatomical Gift Act”, de 1968 e revisto em 1987, como uma das condições para realizar a colheita de órgãos post mortem. Deste modo, “sempre que o falecido não haja expressamente proibido a dação dos órgãos, determinados familiares, segundo a prioridade estabelecida na Secção 3.ª (cônjuge supérstite; filho maior; ambos os progenitores; um irmão ou irmã, igualmente maiores), podem autorizar a realização da mesma. O consentimento dado por um familiar pode ser retirado por qualquer outro familiar que integre a mesma classe, e será eficaz desde que comunicado ao cirurgião até à hora da extracção”163. Esta iniciativa permite um aumento significativo

da colheita post mortem. Nos Estados Unidos, a taxa de colheita em cadáver foi de 25,5 p.m.p. em 2005164 e de 26,6 p.m.p. em 2007165, isto é, bastante superior à do Reino

Unido.

Não obstante o aumento das taxas de colheita, os valores são ainda claramente

163

Paulo Nascimento, “Transplantes de órgãos humanos: a natureza do cadáver e dos órgãos e tecidos à luz do direito privado”, in Homenagem ao Professor Doutor André Gonçalves Pereira, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 1036.

164

Cf. Conselho da Europa, “International figures on organ donation and transplant – 2005, Newsletter Transplant”, Vol. 11, 1, 2006, p. 14, disponível em http://www.coe.int/t/dg3/health/Source/2006

transplantNWSLTTR_en.pdf e acedido a 27 de Fevereiro de 2008.

165

Cf. Conselho da Europa, “International figures on organ donation and transplant – 2007, Newsletter Transplant”, p. 14.

insuficientes para as necessidades, ou seja, para atender a todos os doentes que figuram nas listas de espera, aguardando por um órgão, sabendo-se que, de modo genérico, dois terços morrerão antes de serem transplantados. Esta dramática realidade impulsiona o delinear de novas estratégias que permitam aumentar o número de órgãos disponíveis para transplante. É neste contexto que surge o novo regime ético-jurídico de consentimento, o designado consentimento presumido que tem vindo a substituir o modelo de consentimento informado.