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47O MOVIMENTO DOS CURSOS PRÉ-VESTIBULARES POPULARES

Do ponto de vista teórico que formulamos até aqui, podemos considerar o Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares como ator social inovador e produtivo, cuja produção organiza, por meio de uma resistência criativa, uma luta política por inclusão não subordinada e, como tal, pela universalização dos direitos e democratização das instituições de ensino.

A multiplicação de Cursos Pré-Vestibulares Populares pelo Brasil a partir de meados dos da década de 1990 e na década de 2000 demonstra a explosão de uma nova demanda, que até o início dos anos de 1990 era pouco expressiva: a demanda dos pobres e marginalizados por acesso ao ensino superior.

E como já dissemos anteriormente, o trabalho do Movimento dos Cursos Pré- Vestibulares Populares consiste em ensinar conteúdos solicitados nos exames de seleção das instituições de ensino superior, a fim de preparar estudantes oriundos de classes populares e de grupos sociais discriminados para tais exames, os chamados vestibulares. Essa é a atividade fundamental, a que mobiliza pessoas num trabalho de cooperação e solidariedade. A partir daí, desenvolvem-se organizou-se uma luta, através de ações que passaram a questionar abertamente os processos de seleção e as dinâmicas internas das instituições de ensino superior públicas (especialmente as instituições públicas), o ensino básico (especialmente o ensino público), o mérito acadêmico, as desigualdades de possibilidades, a ausência de políticas públicas e institucionais de acesso e permanência no ensino superior para estudantes pobres e negros e os preconceitos e discriminações (raciais, especialmente) presentes nas

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práticas e discursos que mantém e reproduzem tal estado de coisas.

O Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares é, possivelmente, senão o maior, um dos maiores movimentos sociais urbanos do Brasil em número de pessoas envolvidas (estudantes, professores, colaboradores). Na década de 1990 tornou-se um dos movimentos populares mais expressivos, cujas práticas e dinâmicas políticas desenvolvem-se no sentido da abertura do acesso ao ensino superior para estudantes pobres e negros, mobilizando milhares de pessoas em todo país.

A mobilização promovida pelo Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares é muito mais que uma mobilização caridosa, de pessoas que se reúnem para ajudar outras que precisam. Embora notadamente seja um movimento solidário, o Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares produziu importantes e potentes questionamentos sobre a educação superior, a educação básica, às formas de seleção, ao currículo escolar e, em caráter geral, sobre o direito à educação, formalmente garantido pela legislação a todas as pessoas no Brasil.

E tudo isso não é por acaso. A educação brasileira, em geral, necessita melhorar quantitativa e qualitativamente, para que seja um dos principais vetores de desenvolvimento democrático das relações sociais, e da produção cultural, política, científica, tecnológica e, pois, de melhores condições de vida.

A existência de cursos pré-vestibulares populares, por si só, denuncia que as políticas educacionais, apesar de terem formalmente caráter universal,

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historicamente são pouco comprometidas com a democracia, com a universalização material do direito à educação; denuncia, também, desigualdades e a existência de preconceitos e discriminações no comportamento e nas dinâmicas das instituições educacionais.

De fato, no conjunto das políticas públicas no Brasil há uma ausência de mecanismos concretos que possibilitem acesso aos serviços formalmente definidos como direito de todas as pessoas e o desinteresse dos sucessivos governos republicanos e dos setores hegemônicos no poder de influência sobre o Estado, pela educação da maioria da população.

No que diz respeito ao ensino superior essa questão parece ser ainda mais complexa. O sistema de ensino superior no Brasil, composto por universidades, centros universitários e faculdades públicas e privadas, é historicamente herdeiro de um pacto social que entendemos como elitista (um pacto racista e conservador estabelecido pelos setores historicamente hegemônicos na política, na economia e na produção intelectual, que definiu hierarquias e lugares sociais). O formato de ensino superior fruto desse pacto é voltado para a classe proprietária e para os grupos sociais que gozam de privilégios dentro do referido pacto. Pobres e negros, notadamente, não parte do pacto.

Ou seja, o ensino superior brasileiro é, notadamente, lugar de produção e reprodução de uma elite e de uma tecnocracia oriundas dos setores sociais economicamente privilegiados (empresariado, profissionais liberais, alto funcionalismo público), em sua maioria composta pelo grupo da população que o

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica como brancos.

As denominadas universidades públicas parecem, nesse contexto, exemplos do uso privativo de recursos públicos, ou seja, das riquezas produzidas pelo trabalho comum. Seu funcionamento acontece de forma diferente do que determina seu estatuto formal. Por exemplo, a universidade pública não cobra mensalidades em seus cursos, mas para que se tenha acesso a ela é quase uma obrigatoriedade pagar colégios e cursos cujos preços são proibitivos aos mais pobres.

Nesse contexto, algumas análises concluem que as camadas da população brasileira de maior poder aquisitivo, que são as que podem pagar por cursos e escolas que capacitam para os exames de seleção das universidades públicas, são subsidiadas pelo Estado durante o ensino superior, ao passo que as camadas mais pobres ficam prejudicadas porque o mesmo subsídio estatal é deficitário para o ensino básico.

Estudantes de famílias com maior poder aquisitivo, que cursam escolas privadas até o vestibular, recebem subsídios do governo para freqüentar as universidades públicas de alto nível. Estudantes mais pobres freqüentam as escolas públicas de primeiro e segundo graus com poucos recursos e, normalmente, não conseguem passar no vestibular das universidades públicas (Telles, 2003, pág. 199).

Analisando desse ponto de vista, pode-se concluir que o ensino básico público não capacita seus estudantes, em sua maioria pobres, para o acesso ao

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ensino superior oferecido pelas universidades públicas, que em geral é de melhor qualidade e proporcionam melhores condições profissionais aos seus estudantes, por gozarem estas instituições de maior reconhecimento social. Ou seja, a culpa do baixo acesso dos pobres ao ensino superior é, em parte, atribuída à baixa qualidade do ensino oferecido pelas escolas públicas de ensino básico, que são de competência de estados e municípios. Há, entretanto, escolas federais e colégios de aplicação ligados às universidades públicas que oferecem um bom ensino (levando em consideração o sucesso de seus estudantes os exames vestibulares em relação aos estudantes das redes públicas estaduais e municipais), mas que funcionam como as universidades: o acesso é feito através de exames de seleção como os vestibulares e privilegia os estudantes oriundos de famílias que têm melhores condições econômicas.

Nesse contexto, as instituições de ensino superior ficam isentas de críticas e questionamentos, pois considera-se que seus exames de seleção são avaliações da qualidade do ensino básico. Porém, um dos questionamentos explícitos dos cursos pré-vestibulares populares é o caráter elitista dos processos de seleção dessas instituições.

Para o Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares as provas de vestibular das Universidades Públicas exigem conteúdos que estão fora dos parâmetros e diretrizes básicas do ensino médio, o que quer dizer que não é somente o ensino público que é de baixa qualidade, mas também que as universidades cobram conteúdos em seus vestibulares que não fazem parte das diretrizes

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curriculares da educação da maioria da população. E, além disso, falta nas políticas públicas e institucionais a escuta dos setores a que tais políticas se destinam.

Podemos citar, por exemplo, a denúncia de Frei David Raimundo dos Santos14, que afirma que “há vestibulares desonestos. A rede pública dá o conteúdo A. A rede particular ensina o conteúdo A+B. Os que têm mais dinheiro no bolso vão aos cursinhos caros, que têm o conteúdo C. Assim, 85% do vestibular da Fuvest15 explora os conteúdos B e C. É jogo de cartas marcadas, passa quem tem dinheiro. Um vestibular honesto não pode medir apenas acúmulo de saber em uma realidade tão desigual quanto a brasileira”16. Por outro lado, ainda de acordo com Frei David Raimundo dos Santos17, “Há, no mínimo, cinco redes públicas paralelas de ensino médio no Brasil: a) Escolas Técnicas Federais; b) Escolas Técnicas Estaduais; c) Escolas Públicas dos centros das cidades; d) Escolas públicas das cidades do interior; e) Escolas públicas abandonadas das periferias”. E, segundo Frei David, são nas “escolas públicas abandonadas das periferias” que estão “as grandes vítimas do ensino brasileiro: os afrobrasileiros”. Percebe-se nessas denúncias a crítica às instituições de ensino superior e também ao ensino básico público, explicitando comportamentos, digamos, elitistas e também diferenciações que produzem e

14Coordenador e principal porta-voz da EDUCAFRO (http://www.educafro.org.br), uma organização

católica que organiza uma grande rede de Cursos Pré-Vestibulares Comunitários.

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A FUVEST é a Fundação universitária para o vestibular, instituição que organiza exames vestibulares de várias universidades e faculdades no Estado de São Paulo.

16Disponível em http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_noticias/noticias_educacao/id050301.htm. 17 Apresentação na audiência pública realizada pelas Comissões de Educação e Assuntos Sociais do

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reproduzem desigualdades.

Outro importante exemplo é o posicionamento público do Movimento Pré- Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), através de uma Carta Aberta datada de 07 de março de 2004, quando em face do anúncio pelo governo da criação do Programa Universidade para Todos (PROUNI):

Nós, do Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), consideramos importante a preocupação do governo e apoiamos a idéia básica de ampliação das vagas no ensino superior. Entretanto, temos também preocupações, tanto em relação ao programa proposto quanto em relação à proposta de Reforma Universitária, e queremos ressaltar os seguintes pontos: 1) Como nas reformas anteriores (Previdência e Fiscal) e nas reformas em andamento (Política e Trabalhista), a proposta de Reforma Universitária carece de democracia em seu processo de discussão e elaboração. Discordamos da forma como o governo vem conduzindo este processo e achamos fundamental que haja ampliação do debate, que deve buscar a participação de outros setores, além do governo, dos empresários, da igreja católica e do setor acadêmico. Devem ser instituídos fóruns locais e regionais de discussão e ser ouvidos, por exemplo, os diversos grupos e organizações do Movimento de Pré-vestibulares Populares. 2) Em relação do Programa Universidade para Todos, discordamos da forma como está proposto. Consideramos a importância do caráter emergencial do Programa, pois conhecemos muito bem o tamanho da demanda das classes populares e dos grupos sociais histórica e socialmente marginalizados pelo acesso ao ensino superior, que é, na letra da lei, Direito de Todos. Entretanto, como está proposto o Programa pode aprofundar as desigualdades sociais, na medida em que se sugere que as vagas estatizadas nas instituições particulares sejam para negros, indígenas, portadores de necessidades especiais, ex-presidiários e pessoas de famílias de baixa renda. Todos conhecemos as dificuldades (em certos casos a falta de compromisso) das instituições particulares em manter um ensino de qualidade articulado à pesquisa. Para nós, é importante, urgente e fundamental para o desejado

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