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TECENDO OS FIOS DA MEMóRIA

1.3. O Movimento de Natal

Em 1944, Natal começa a sofrer os efeitos da guerra e da ocupação americana. A instalação das bases militares e a chegada de técnicos e tropas americanas intensificam o desequilíbrio da organização social da área, ocasionando a elevação do custo de vida, proliferação de casas de prostituição, crise habitacional, mudança de comportamento, com a introdução de novos costumes que abalam a estrutura tradicional de Natal. A grande procura de mão-de-obra, para a construção e instalação do campo de Parnamirim e da Base Naval, contribui para intensificar a migração do campo para a cidade, em larga escala. Após a guerra, logo se fazem sentir as conseqüências da partida das tropas: crescimento demográfico, desemprego, prostituição, delinqüência juvenil e formação de favelas. Segundo dados dos Censos, em 1940 a população de Natal era de 54.836 habitantes. Em dez anos (1950) essa população cresceu para 103.215 e, em 1960, chegava a 162.537. (CAMARGO, 1971).

A Igreja Católica de Natal, que desde 1936 criara a Juventude Feminina Católica (JFC), fundou, em 1944, a Juventude Masculina Católica (JMC). Diante desse quadro na cidade, resolve ampliar sua ação social, de acordo com as diretrizes da ACB, que, a essas alturas, já havia assumido posições mais liberais e democráticas, sob a influência da reconversão política de Amoroso Lima, em 1938.

Através da Ação Católica, vários intelectuais vão contribuir para a difusão da sua doutrina social, agindo não mais no plano individual, mas dentro do social, tentando “modificar o meio” através da divulgação do ideário cristão.

A ação social, desenvolvida pela Ação Católica no Rio Grande do Norte, até 1945, era um trabalho puramente catequético. Ainda não havia um movimento social, pelo menos nos moldes introduzidos depois pelo Movimento de Natal. Frente a um quadro social preocupante a Igreja, procura agir

atendendo às necessidades imediatas da situação, principalmente através de associações religiosas, ao lado de outras entidades governamentais e privadas, com fins assistênciais, como a LBA (Legião Brasileira de Assistência)31

e o SERAS (Serviço Estadual de Reeducação e Assistência Social). Tentam-se medidas saneadoras, a necessidade de pessoal habilitado para planejá-las, executá-las e a preocupação em formar técnicos em serviço social

(CAMARGO; 1971, p. 68-69).

Chama-nos a atenção que, para dar um salto mais ousado no campo do assistencialismo, a Igreja aliou-se aos setores governamentais32

e privados, numa perspectiva de ampliação dos recursos humanos para tal empreendimento. É visível que, mesmo no campo de uma concepção assistencial, os desafios eram imensos, principalmente porque havia uma ausência das ações do Estado, que não tinha instrumentos para dar conta de determinadas políticas.

A Igreja Católica de Natal, para dar andamento operacional a essa estragégia que desembocaria num grande movimento, desenvolveu uma série de atividades nos anos seguintes. Em 1944, tendo em vista o agravamento dos problemas sociais, realiza a “I Semana de Estudos Sociais

do Rio Grande do Norte”, da qual participam representantes tanto das

entidades governamentais como de associações religiosas. Entre esses encontram-se Pe. Eugênio Sales e Pe. Nivaldo Monte.33 Era uma preparação

do terreno para os passos seguintes.

31 Tanto a LBA como o SERAS, organismos governamentais foram dirigidos simultaneamente

por Aluízio Alves, que seria deputado federal até fins dos anos 50, e governador do Estado do Rio Grande do Norte na primeira metade dos anos 60. A LBA promoveu, em 1942, o primeiro curso “Visitadoras Sociais em Natal”. Ver Cândido Procópio Ferreira de Camargo. Igreja e

Desenvolvimento. CEBRAP, São Paulo. 1971.

32 A Igreja Católica de Natal, enquanto instituição, aliou os seus interesses, no campo da ação

social, a alguns políticos que apresentavam sensibilidade para os desafios do desenvolvimento. As relações no campo social com Aluízio vinham sendo construídas desde os anos 40. O mesmo foi eleito o deputado mais votado em 1945 e reeleito muitas vezes deputado federal. Em 1960, foi eleito governador do Estado, tendo como vice-governador o Monsenhor Walfredo Gurgel.

33 Em 1954 o padre Eugênio Sales foi nomeado Bispo Auxiliar e Adninistrador Apostólico de

Natal. Em 1964 foi nomeado Administrador Apostólico de Salvador, acumulando, também até maio de 1965, a Administração da Arquidiocese de Natal. O padre Nivaldo Monte, em abril de1963, foi nomeado Bisbo Auxiliar de Aracaju, ocupando o cargo até 1965, quando sucedeu a D. Eugênio Sales na Administração da Arquidiocese de Natal. Hoje, D. Eugênio é cardeal- arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro e D. Nivaldo Monte é arcebispo emérito da Arquidiocese de Natal.

Em 1945, realizou-se em Natal a 1a Semana Diocesana de

Ação Católica tendo como temas “A cooperação da Ação Católica nas Obras

Sociais” e “O pensamento social da Igreja”, dando maior abertura para os

problemas sociais.

Podemos verificar, em decorrência desse trabalho desenvolvido no campo social e das necessidades de uma melhor formação de capital humano para essas ações, que foi criada em 1945, a Escola de Serviço Social34, tendo Dom Nivaldo Monte como um dos seus organizadores e

fundador35. Segundo palavras de Dom Nivaldo Monte (informação verbal)36, “a

necessidade de criar quadros culturalmente bem formados para não fazer a coisa assim ao léu” fez sugir a Escola. Ainda segundo Dom Nivaldo (informação verbal), “a Escola primava pelo Serviço Social de Comunidade; era a única do Brasil a fazer isso”. Portanto, a Escola de Serviço Social possibilitou a Igreja desenvolver uma maior racionalização do trabalho social (PAIVA, 2000).

A Escola, além de constituir-se num dos marcos criadores do Movimento de Natal, proporcionou uma maior racionalização do trabalho social, adotando “uma atitude favorável à pesquisa e uma abordagem mais científica dos problemas (FERRARI, 1968)”. Além disso, facilitou a mudança nas atividades, passando de meramente assistenciais para auto-promoção das pessoas assistidas, notadamente pelo uso do Serviço Social de Grupo e de Comunidade.

34 No trabalho “Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil”, Safira Ammann afirma

que, é na década de 50 que a ONU volta simultaneamente suas atenções para o Serviço Social, realizando três distintas pesquisas de caráter internacional, sobre a formação de seus profissionais (...). Em 1957, na Assembléia da Comissão Social do Conselho Econômico e Social, o Desenvolvimento de Comunidades é recomendado em larga escala, particularmente para as áreas rurais. A autora diz ainda que, na época, a preocupação do Serviço Social brasileiro com o Desenvolvimento de Comunidade atrela-se a um desenvolvimento de âmbito internacional, deflagrado oficialmente pelas Nações Unidas e referendado por inúmeros organismos interessados na expansão da ideologia e do modo de produção capitalista. É notório que toda essa ideologia ocorreu no contexto da guerra fria (capitalismo versus socialismo).

35 Ver publicação do SAR “Síntese histórica: revisão 73 – Plano de Trabalho 74.

36 Informação verbal de Dom Nivaldo, prestada à Professora Dra. da UFRN Marlúcia Paiva,

Conforme Marlúcia Paiva (2000), “a preocupação em atribuir

um caráter cientificista, racional, modernizador às atividades da Igreja, através da Escola de Serviço Social, demonstra que o trabalho não mais será improvisado, mas fundado em bases científicas, racionais, portanto mais produtivo”. Há uma crença exacerbada nos princípios científicos, sem se

avaliarem as relações de poder existentes naquela formação social, abstraindo- se o fenômeno estudado dos determinantes históricos concretos no qual estava inserido.

Com o desenvolvimento dos trabalhos assistenciais no meio urbano e uma preocupação científica com os problemas sociais, a Igreja de Natal desenvolve gradativamente uma percepção mais nítida de que as “causas” dos problemas de organização encontrados na cidade poderiam ser buscadas na própria estrutura agrária do Nordeste. Esse novo enfoque da problemática foi levantado e discutido nas reuniões do clero. Essas reuniões, que se revestem da maior importância para os acontecimentos posteriores, iniciam-se em 1948, através de reuniões informais entre os seguintes pastores: Eugênio Sales, Nivaldo Monte, Manoel Tavares, Expedito Sobral de Medeiros, Alair Vilar e Pedro Rebouças de Moura.

Um dos desdobramentos dessas reuniões é o estudo do meio rural, orientado por Hélio Galvão37, que apontava para as questões

sociais mais graves e carentes de uma ação social imediata e o grande desafio de empreendê-la. Lembramos que Otto de Brito Guerra38 era um dos

intelectuais católicos que já vinha produzindo uma série de artigos sobre o meio rural, desde 1947, no jornal A Ordem. Em um desses artigos, ele analisa as causas do fenômeno do êxodo rural, atribuindo o mesmo ao latifúndio

improdutivo, à excessiva divisão de propriedade pelo regime de partilha

37 Hélio Galvão foi advogado, escritor, professor e etnógrafo. Pertenceu à Congregação

Mariana da Catedral Metropolitana e foi assessor do Governo Aluízio Alves, no início da década de 60.

38 Segundo Alceu Ferrari, vários artigos escritos por Otto de B. Guerra foram sugeridos por D.

Eugênio Sales. Otto Guerra acompanhava D. Eugênio em todo esse processo de discussão sobre os problemas sociais.

forçada e à falta de crédito. E sugere, também, um plano de redenção econômica para o Rio Grande do Norte; o saneamento dos vales úmidos e a açudagem e perfuração de poços.

Surgiu, então, em 1948, o Movimento de Natal como resultado de todo esse processo, inclusive muito mais complexo do que o exposto. Tudo indica que esse nome foi dado pelo Pe. Tiago Cloin, ao conjunto de atividades sócio-religiosas empreendidas pela Arquidiocese de Natal39.

O Movimento de Natal era um misto de “movimento social” e de “movimento religioso”. Na realidade, ele não tinha uma estrutura, uma organização, embora tenha inspirado organizações em ambos os campos – social e religioso da ação da Igreja.