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O município e os instrumentos da democratização da gestão local

CAPÍTULO 2. DEMOCRACIA E GESTÃO PARTICIPATIVA – BREVE REVISÃO E REGISTROS DA BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

2.2. O município e os instrumentos da democratização da gestão local

A Constituição Brasileira de 1988 fortaleceu o Município, reconhecendo-lhe a condição de ente federado. O Artigo 18 estabeleceu: “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta

53 Constituição.” (CF/1988).

A nova Constituição não resultou, na prática, em alterações imediatas na organização do município, mantendo-se as estruturas do municipalismo fortalecido desde a década anterior. A partir do início do Governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, deu-se início ao processo de (re)centralização - na União - das decisões de governo, em detrimento do papel dos demais entes, sob justificativas de construir a estabilidade da economia nacional.

Desse período em diante reformas constitucionais e leis complementares reordenaram a descentralização das atribuições contidas na Constituição Federal, com destaque para a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), Impondo-se mais firmemente o receituário neoliberal na organização do Estado Brasileiro23.

Os poucos programas sociais desenvolvidos nas últimas décadas ficaram dependentes de programas setoriais federais, com a transferência – informal, de certa maneira – de competências e responsabilidade para os municípios, sem a contrapartida fiscal. No modelo adotado, os municípios ficam obrigados a institucionalizarem conselhos municipais setoriais de gestão dos programas, como requisito exigido para a recepção dos recursos descentralizados voluntariamente pela União.

A constituição desses conselhos tem caráter mais de legitimação e controle dos recursos que de democratização das políticas. A transformação dessas instâncias em efetivos instrumentos democratizantes fica subordinada às formas como são compostos e como funcionam, ao grau de autonomia, às pautas e ao quanto elas passam a interferir nas políticas municipais setoriais.

Por outro lado, a formulação de projetos com a participação voluntária e direta da população beneficiada constituiu-se em outro importante instrumento democratizante e de controle das políticas públicas. A discussão do orçamento público e a formulação de projetos de urbanização de áreas degradas destacam-se

23 Ver "Os Municípios nos Governos FHC e Lula: uma abordagem sob o ponto de vista da ação

54 dentre esses.

No caso de Vitória, a administração local passou a contar com conselhos efetivamente instituídos, com representação da sociedade civil desde a década de 1980. Com a criação da Secretaria de Ação Social – Semas, em 1983, pela Prefeitura de Vitória, e com a fundação do Conselho Popular de Vitória - CPV, em 1984, pelas entidades comunitárias, ocorreram mudanças positivas nas relações entre os movimentos sociais e o poder público municipal (SILVA et al., 2009). O incremento na criação de conselhos foi significativo e inúmeras áreas da administração pública passaram a contar com esses instrumentos. A mudança de cultura da administração pública levou à instituição de mais de trinta distintos conselhos municipais e resultou no fortalecimento desses mecanismos de democratização da gestão e de participação social (SILVA et al., 2009).

Contraditoriamente, a administração municipal de Vitória, em 2002, avaliava que havia um número excessivo de conselhos e via neles “riscos à existência de particularismo na análise das questões, e personalismo, ou mesmo algum tipo de clientelismo, na atuação de representante propiciado pela proximidade do poder local” (PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA, 2002, p. 67). Na prática, independentemente dessa avaliação, novos conselhos foram instituídos nos períodos seguintes.

Dentre os problemas limitantes dos resultados de funcionamento dessas instâncias é que não são observados mecanismos de controle da forma de atuação dos representantes da sociedade civil, que não ficam submetidos ao exercício de mandatos imperativos. Da mesma forma, as deliberações nos conselhos não se vinculam a decisões prévias do conjunto de pessoas que representam. Essa dicotomia deveria ser superada para que fossem ampliados os ganhos e fortalecidos os mecanismos da democracia participativa (BOBBIO, 2010).

A maturidade desses conselhos depende, em inúmeros casos, da obtenção de capacidade para exercer as potenciais funções de formulação, deliberativa e de fiscalização. Esse estágio será obtido com a superação de deficiências de capacitação política e técnica e pela extinção de práticas baseadas em trocas de

55 favores e de cooptação de representantes. Maricato (2011) avalia que a cultura dominante nas administrações das cidades reproduz uma gestão das políticas públicas e dos orçamentos municipais que continua servindo aos interesses de forças dominantes. Para a qualificação da gestão do solo urbano, a autora defende o combate ao que designa como "analfabetismo urbanístico”, o que se daria com capacitação técnica e política dirigida "a funcionários públicos, lideranças sociais, profissionais, sindicais e acadêmicos, estudantes, jornalistas e intelectuais" (MARICATO, 2011).

A gestão participativa integral constitui-se em uma forma de administrar a cidade que permite “prospectar as novas necessidades, sabendo que tais necessidades são descobertas no decorrer de sua emergência e que elas se revelam no decorrer da prospecção” (LEFEBVRE, 2008, p.124). A administração pública, com isso, teve que se abrir para reconhecer novas demandas, mesmo desassociadas das políticas públicas tradicionais.

A presença do ator social na gestão pública pressiona o administrador a reconhecer suas demandas e contribui para a constituição de uma sociedade urbana menos desigual. Rompem-se propósitos da cidade neo-capitalista, com suas metas de crescimento econômico infindável e suas demandas apenas por dominação e pelo superlucro.

A cidade passa a cuidar das novas necessidades que surgem visando alcançar seu desenvolvimento urbano e socioeconômico. E essas necessidades, quando atendidas, contribuem para a promoção de novas trocas e a oferta de novos bens. Sob novas políticas, a cidade torna-se espaço onde o valor de uso sobrepõe-se ao valor de troca, “destinada aos usuários e não aos especuladores, aos promotores capitalistas, aos planos dos técnicos” (LEFEBVRE, 2008, p.127).

Baudouin e Collin (2012), consideram a possibilidade de as cidades ampliarem seu papel, alterando as formas de organização do Estado e citam exemplos de experiências no Estados Unidos da América e no norte europeu, mas ressalvam que as cidades brasileiras, dadas as condições da constituição do Estado brasileiro, encontram-se sob forte controle dos demais níveis de governo. Esses autores

56 avaliam que as cidades poderiam alcançar tal condição ao incluírem suas populações em processos participativos, com a instituição de instrumentos de mobilização produtiva, o que resultaria em ganhos para todos.

Baudouin e Collin (apud MIRANDA, 2016, s/n) consideram que “a partir do momento em que o desenvolvimento da cidade é apreendido pelos cidadãos como algo comum a todos, os atores utilizam cada vez mais o papel impulsionador dos conflitos, tornado produtivos os dissensos, no sentido dado por Jacques Ranciére” (BAUDOUIN; COLLIN, 2012). Ou seja, quando atingidas essas condições, a colisão de interesses do local com aqueles do Estado provocaria a revisão da “democracia da representação”, o que se vincularia e levaria à abertura de espaços para o exercício de formas de democracia direta.

Finalizando, a abordagem trazida neste Capítulo teve o propósito de contribuir para a elaboração das análises de situações específicas de práticas de democratização da gestão, positivamente entendidas como experiências democratizantes. As análises estão apresentadas no Capítulo 3 deste trabalho, principalmente na seção 3.3, que trata dos instrumentos institucionais de participação social na gestão e configuração dos espaços urbanos de Vitória.

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