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Com a experiência, o pensamento estabelece uma nova modalidade de razão, operante, a partir das coisas do mundo. Experiência quer dizer prova, tentativa, ensaio. Na época dos descobrimentos, a palavra experiência designava o conjunto das aquisições do espírito em contato com a realidade. Já no fim do século XVI, o termo adquire conotações científicas, significando “praticar operações destinadas a estudar algo”. A etimologia nos ensina que experiência liga-se à importante raiz indo-européia per que quer dizer “ir adiante”, “penetrar em”, dando ainda origem às palavras perigo, pirata, porto. (NOVAES, 1998, p. 09 – grifos do autor)

A época das descobertas marítimas foi um momento de rupturas para o homem medieval, de conflito com a ideologia dominante, que o possibilitou sair do anonimato e proporcionou o surgimento de um novo homem que busca sua autonomia, seus próprios caminhos. Nessa circunstância, o homem passa a aventurar-se para além do horizonte, dos limites impostos, explorando intensivamente o globo terrestre e adquirindo novas experiências e novos conhecimentos. “Esta curiosidade, fundada na experiência, é, de início, por conseqüência, apenas empírica. Mas o agir a que ela conduz corresponde ao avanço de um conhecimento crítico, organizado, em domínios os mais diversos do saber.” (MARTINS, 1998, p. 185) Um saber quando adquirido traz consigo muitos outros, um caminho não só de experiências vividas, mas alicerçado em noções cada vez mais aprofundadas.

A própria técnica de construção das naus aperfeiçoava-se com base nas experiências dos navegadores, por meio do longo processo de adaptação de um conjunto de soluções herdado da prática de navegar. Nas viagens empreendidas, as inúmeras crenças que existiam davam lugar à experimentação, possibilitada por essa busca de autonomia, o que incitou transformações no velho mundo, como a criação de um novo sistema político e econômico. São essas “experiências variadas que iam aos poucos transformando a face do mundo conhecido.” (BIGNOTTO, 1998, p. 375)

Para lançarem-se aos mares revoltos os marinheiros serviam-se, além de toda a “ciência” disponível, do que estava ao dispor de todos: a observação do cotidiano. O cotidiano traduz-se em um saber-fazer, é a partir dele que olhamos o mundo. Logo, a vida cotidiana, com sua multiplicidade e complexidade, proporciona-nos uma ampla diversidade de experiências. “O cotidiano é, em si, uma maneira de experimentar a vida.” (BRETAS, 2006, p. 30) Necessitamos, portanto, estarmos abertos às novas experiências, a fim de que estejamos preparados para compreender os vários conhecimentos que se apresentam inicialmente na forma de saberes (sensos) comum.

“A palavra experiência vem do latim

experiri, provar (experimentar). A

experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem:

peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô, ir

até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.” (BONDÍA, 2002, p. 25)

Benjamin, em O Narrador,

distingue experiência e vivência. Experiência é o que Benjamin filosoficamente designa pela palavra alemã Erfahrung, isto é, o conhecimento que se aufere da vida prática. Já vivência (Erlebnis) é a revelação que se obtém num acontecimento, numa experiência íntima do sujeito, individual, imediata e transitória (apenas o instante de uma ocorrência).

Nesse sentido, a matéria da narração dos marinheiros é a experiência vivida cotidianamente. As viagens enriqueciam tanto as experiências de mundo dos marujos, com conhecimentos e culturas de cada um dos povos que tiveram contato, que deixavam traços em suas narrativas. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem todos os narradores.” (BENJAMIN, 1986, p. 198)

Para Benjamin (1986), a narrativa é a faculdade que possuímos de intercambiar experiências. Desse modo, a experiência humana pode ser expressa na forma de uma narrativa, como salienta Roland Barthes:

A narrativa está presente no mito, lenda, fábula, conto, novela, epopeia, história, tragédia, drama, comédia, mímica, pintura (pensemos na Santa Úrsula de Carpaccio), vitrais de janelas, cinema, histórias em quadrinhos, notícias, conversação. Além disso, sob esta quase infinita diversidade de formas, a narrativa está presente em cada idade, em cada lugar, em cada sociedade; ela começa com a própria história da humanidade e nunca existiu, em nenhum lugar e em tempo nenhum, um povo sem narrativa. Não se importando com a boa ou má literatura, a narrativa é internacional, trans-histórica, transcultural: ela está simplesmente ali, como a própria vida. (apud JOVCHELOVITCH e BAUER, 2010, p. 90)

A habilidade de narrar histórias, por conseguinte, baseia-se na arte de contá-las de novo, mas essa arte perde-se quando as histórias a serem contadas não são mais conservadas. “Ela se perde quando ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história.” (BENJAMIN, 1986, p. 205) O ouvinte só adquire o dom de narrar se tecer a rede das histórias que ouviu.

Portanto, a narrativa é uma forma artesanal de comunicação, não estando “interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma

O saber proveniente de informações é diferente do saber proveniente de experiências. “A informação só tem valor no momento em que é nova.” (BENJAMIN, 1986, p. 204) A informação vive apenas em um determinado momento e tem que apresentar sua mensagem nesse intervalo de tempo. A experiência, ao ser narrada, é diferente. “Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver.” (idem) informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador” (BENJAMIN, 1986, p. 205). Entretanto, para Benjamin (1986), são “cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.” (p. 197) O que vemos atualmente é o enfraquecimento da experiência no mundo moderno em detrimento da pura informação e, por consequência, a extinção da arte de narrar.

“A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.” (BONDÍA, 2002, p. 21) O que experienciamos torna-se cada vez mais raro, isto é, segundo Benjamin (1986), a pobreza de experiências que caracteriza o mundo moderno.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. (BENJAMIN, 1986, p. 203)

Recebemos todos os dias um bombardeio de informações por meio de inúmeras formas de comunicação, esse excesso de informações não deixa lugar para a experiência. A ênfase contemporânea em estarmos sempre informados resta por cancelar nossas possibilidades de experienciar algo novo, pois com essa obsessão por informação

“Para Benjamin, a arte do narrador é também a arte de contar, sem a preocupação de ter de explicar tudo; a arte de reservar aos acontecimentos sua força secreta, de não encerrá-los numa única versão.” (GAGNEBIN, 1993, p. 59) Ao contrário da informação, na qual o relato do narrador permanece irredutível a interpretações posteriores.

conseguimos fazer com que nada nos aconteça. (BONDÍA, 2002)

Consequentemente, com a perda da experiência ocorre também o esgotamento da narrativa, pois com o declínio da experiência e da memória coletiva deixa de existir um universo de prática e de linguagens que antes era partilhado. Os sujeitos são tomados, então, por uma pobreza de experiências comunicáveis. “Enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil.” (GAGNEBIN, 1986, p. 10)

Vemos, assim, o fim da experiência no sentido de impossibilidade de uma tradição compartilhada, o fim das formas tradicionais de narrativa, que possuem como fonte a experiência e a memória coletiva, uma memória construída e partilhada por todas as pessoas. Benjamin (1986) exemplifica essa perda de experiência com uma frase de Bertold Brecht: “Apague os rastros!” Os rastros são apagados e com eles a experiência vivida. O apagamento gradual dos percursos de construção do conhecimento leva ao afastamento dos sujeitos, valorizando a transparência em nome da objetividade e desconsiderando a complexidade do mundo. Os rastros são importantes reveladores da incompletude do conhecimento e do próprio homem.

Apague os rastros Separe-se de seus amigos na estação De manhã vá à cidade com o casaco abotoado Procure alojamento, e quando seu camarada bater: Não, oh, não abra a porta Mas sim Apague os rastros! Se encontrar seus pais na cidade de Hamburgo ou em qualquer outro lugar Passe por eles como um estranho, vire na esquina, não os reconheça Abaixe sobre o rosto o chapéu que eles lhe deram Não, oh, não mostre o rosto Mas sim Apague os rastros!

Como a carne que aí está. Não poupe. Entre em qualquer casa quando chover, sente em qualquer cadeira Mas não permaneça sentado. E não esqueça seu chapéu. Estou lhe dizendo: Apague os rastros! Sempre que você disser algo, não diga duas vezes. Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o. Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato Quem não estava presente, quem nada falou Como poderão apanhá-lo! Apague os rastros! Cuide, quando pensar em morrer Para que não haja sepultura traindo onde jaz Com uma nítida inscrição que o denuncie E o ano de sua morte que o entregue! Mais uma vez: Apague os rastros! (Assim me foi ensinado.) (Bertold Brech)

A dissolução dos vínculos promove o esfacelamento do coletivo devido à impossibilidade de compartilhamento das experiências. Isso impossibilita a descoberta pelos sujeitos da própria identidade e, consequentemente, o apagamento de vestígios da experiência individual na experiência coletiva. “Desprovido de experiência, o homem não deixa rastros.” (KRAMER, 2008, p.19)

No entanto, essa pobreza de experiências deve impelir-nos a começar de novo, partindo do pouco existente. Benjamin (1986) aponta a necessidade de reconstrução da experiência de modo a garantir a manutenção da memória coletiva, sendo que esse processo de reconstrução enseja também uma nova forma de narrativa.

Para que possamos reconstruir a experiência, temos que primeiro reconstruir o sujeito da experiência, tornando-o sensível ao que nos passa. “O sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo,

produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios” (BONDÍA, 2002, p. 24). Assim, quando o sujeito percebe a experiência como aquilo que nos acontece, torna-se espaço no qual tem lugar os acontecimentos e dá-lhes passagem por meio de sua narrativa.

Aquele que narra mostra um saber prático a seus ouvintes. Esse saber, como aponta Benjamin, pode tomar a forma de um conselho, pois “o narrador é um homem que sabe dar conselhos.” (BENJAMIN, 1986, p. 200) Contudo, não podemos considerar o conselho como uma tentativa de intervir na vida de outrem, devemos interpretá-lo como forma de “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada.” (idem) Esse conselho é tecido na substância viva da existência, traduzindo a experiência do narrador em sabedoria.

“O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.” (BENJAMIN, 1986, p. 201) Quanto mais natural for o narrador, mais facilmente o ouvinte apreenderá a história e a ligará a sua própria experiência, tornando irresistível a vontade de recontá-la um dia. Nessa perspectiva, a relação “entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado.” (Idem, p. 210)

Para Benjamin (1986), comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que lidam e trabalham a experiência. Dessa forma, a narrativa nunca age fora do homem, pois está intrinsecamente vinculada à experiência que possui. Logo, o narrador trabalha a sua matéria, a vida humana – a sua e a dos outros –, transformando-a em conselhos, saberes, conhecimentos.