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O novo rural agroenergético e a produção de alimentos

A “polêmica” relativa ao novo rural agroenergético surgiu com declarações irresponsáveis realizadas e disseminadas pelos chefes de Estado Hugo Chávez da Venezuela e Fidel Castro, de Cuba de que a produção agronergética poria o mundo em risco de abastecimento alimentar. Tais declarações geraram um princípio de polêmica. Aqui não gastaremos tempo precioso discutindo futilidades. Cabe, tão somente, do ponto de vista teórico, apresentar a posição adotada pela FAO em termos mundiais e pela sua representação na América Latina, hoje chefiada pelo Professor José Graziano da Silva.

Em artigo publicado em 06 de agosto de 2007, intitulado “AGROENERGIA: O COMPROMISSO DA FAO”, assinado pelo professor Graziano temos:

Para o bem e para o mal, a história do desenvolvimento nunca é monocromática. Suas circunstâncias não se completam num vazio de conteúdo político ou de mobilização social, mas num relevo marmorizado por contradições cujo desfecho depende de correlação de interesses para consumar a supremacia de uma tendência que, mesmo assim, nunca será exclusiva, ainda que dominante.

Essa equação se recoloca cada vez que a humanidade chega às bordas de nova fronteira econômica ou tecnológica. Foi assim nos primórdios da industrialização, no século 19. É assim com a agroenergia no século 21. É preciso desassombro e realismo histórico para distinguir os fatores que podem materializar as promessas inerentes a esses processos das dinâmicas que ameaçam distorcer todo um elenco de possibilidades.

Para não desperdiçar as chances da história nem se perder na massa de forças que ela aciona quando se movimenta, é preciso equilíbrio e coragem. Esse é o esforço de eqüidistância que o escritório regional da FAO para América Latina e Caribe se impôs diante do horizonte aberto pela transição da matriz energética (SILVA, José Graziano da. Agroenergia: o compromisso da FAO. Santiago,

Chile:FAO,2007.Disponível.em:<http//www.ecodebate.com.br/.../agro energia-e-seguranca-alimentar-compromisso-da-fao-por-jose-raziano- da-silva>Acesso em: 10 set. 2007).

A observação feita acima é translúcida. A história é complexa e as grandes transformações por que passou e continua a passar a humanidade geram perplexidades que não podem se colocar como obstáculos ao avanço. Faz-se necessário “desassombro e realismo” (coragem para atravessar a ponte que separa o

homem do super homem) para trabalhar as múltiplas facetas de cada etapa de determinado processo de desenvolvimento. Foi assim, e ainda o é. O que virá a ser será o produto da ação consciente e não de observações a priori que podem levar ao desperdício de chances históricas. É importante lembrar que as mudanças tecnológicas ocorridas no século XIX foram aproveitadas por países que vieram a se constituir no centro do enriquecimento humano e que de lá para cá, apesar de guerras, pestes e catástrofes variadas, não o deixaram de ser. Portanto, a perda do bonde tecnológico da história acarreta conseqüências drásticas para aqueles que por qualquer motivo o relegam a plano secundário. É preciso ficar mais que atento, com equilíbrio e coragem para que não desperdicemos as oportunidades históricas.

Há muito pouco tempo atrás em termos históricos, Celso Furtado e Raúl Prebisch lançaram a reflexão sobre os motivos do subdesenvolvimento da América Latina. Não retomaremos a tese na íntegra: ela é por demais conhecida. Reside na constatação de que as estruturas arcaicas não industriais latinoamericanas fossilizavam os países em baixíssimos níveis de desenvolvimento societário aprisionando-se à idéia de vantagem comparativa das suas produções primário exportadoras. Em termos das relações internacionais de troca, o que se tinha era uma permanente deterioração dos termos de intercâmbio entre países produtores de

produtos primários e aqueles produtores da base da estrutura industrial mundial. E não apenas a deterioração dos termos de intercâmbio mas, dentro desse espectro, a fragilização das economias primário-exportadoras no enfrentamento aos processos de crise cíclica do capitalismo mundial.

A superação do subdesenvolvimento exigiu rupturas e industrialização. Essa industrialização invadiu o campo criando novas atividades rurais (rompendo o ciclo de atividades secularmente tradicionais). Mas nunca em toda história, tais modificações puderam se constituir em tamanha radicalidade como se tornar eixo de funcionamento da economia mundial através da produção de energia. É uma oportunidade ímpar. Esse caráter único exige a repulsa aos falseamentos:

A cautela recomendável diante dessas mudanças de escala não significa ratificar uma percepção comum, mas falsa, de que o canibalismo entre agroenergia e lavouras de alimentos é inevitável. Segundo o Comitê Mundial de Segurança Alimentar da FAO, a produção mundial de cereais é suficiente para assegurar 2.810kg calorias/dia a cada habitante do planeta, quase um terço superior ao mínimo necessário de 2.200kg cal/dia. Na América Latina e Caribe a disponibilidade de alimentos é ainda maior, 2.880kg cal/dia.

Portanto, a fome tem cada vez menos a ver com a produção de alimentos e cada vez mais com as dificuldades de acesso. Nossa doença é social, e é isso que explica que 52,4 milhões de pessoas passem fome na região e outras 209 milhões (40% do total) lutem pela sobrevivência com menos de dois dólares por dia.

O cenário de exclusão contrasta com a disponibilidade de alimentos e de recursos para erradicar a fome e a pobreza. Estatísticas da FAO demonstram que há terras aráveis suficientes na América Latina e Caribe para a agricultura avançar dos atuais 150 milhões de hectares para 224 milhões, sem derrubar suas florestas. No Brasil, 80 milhões de hectares aráveis não são usados.

Essa inaceitável contradição entre oferta e acesso levou o escritório regional da FAO a abraçar a Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome, que busca erradicar a fome até 2025. Plantar combustíveis, como diz o presidente Lula, pode acelerar o processo. Partilhamos o entusiasmo sem ignorar os desafios que ele traz (SILVA, José Graziano da. Agroenergia: o compromisso da FAO. Santiago, Chile:FAO,2007.Disponível.em:<http//www.ecodebate.com.br/.../agro energia-e-seguranca-alimentar-compromisso-da-fao-por-jose-raziano- da-silva> Acesso em: 10 set. 2007).

A fome não apenas não pode estar ligada a produção agroenergética como esta produção poderá ser imensa aliada ao seu combate tanto no que diz respeito à demanda mundial por produtos de origem vegetal para a produção de álcool e óleo vegetal como também (o que não foi abordado por Graziano) gerará uma massa vegetal sem precedentes para alimentação animal, onde antes não existia. No entanto nada disso dar-se-á a partir de um laissez faire qualquer, mas antes será produto da

ação política que, inclusive, terá que ter a capacidade de se impor frente aos desafios que transformem essa possibilidade em ganhos sociais efetivos:

Trata-se de possibilidade histórica. Não uma certeza arrogante. Para que ela se materialize, a FAO considera indispensável um conjunto de providências que pretendemos difundir junto aos governos, como salvaguardas indissociáveis dos programas de agroenergia. Elas incluem impedir que a agroenergia desloque lavouras destinadas à alimentação humana; garantir o respeito aos direitos trabalhistas no campo; promover a participação dos pequenos produtores nessa nova fronteira; e trocar experiências em todo o continente.

Voltamos às possibilidades da história. Uma transição de ciclo de desenvolvimento, antes de ser equação técnica, é palheta de escolhas de diferentes tonalidades políticas. Requer, portanto, ações públicas para materializar as promessas e minimizar os riscos. Uma boa forma de balizar a nova paisagem é cercá-la de diretrizes e compromissos que permitam de fato plantar combustíveis para colher justiça social. Esse é o compromisso da FAO (SILVA, José Graziano da. Agroenergia: o compromisso da FAO. Santiago, Chile: FAO, 2007. Disponível em: <http// www.ecodebate.com.br/.../agroenergia-

e-seguranca-alimentar-ompromisso-da-fao-por-jose-graziano-da- silva> Acesso em: 10 set. 2007).

A questão é que a produção agroenergética é uma oportunidade histórica sem parâmetros, mas não pode ser encarada como o bem a priori mas produto de decisões

políticas que permitam que ela venha de fato a ser um excelente campo para o desenvolvimento econômico e social em toda América Latina (tendo obviamente o Brasil como epicentro) num meio rural que outrora foi considerado causa econômica estrutural do subdesenvolvimento.

Produzir biocombustíveis é produzir alimentos em caráter duplo (ou muito mais do que isso). Em primeiro lugar a geração de lucro, emprego e renda no setor e em

todos os que se multiplicam a partir dele, direta e indiretamente. Sabemos que a renda adicionalmente gerada, sobretudo para populações que não a possuíam ou possuíam em níveis muito baixos, vai para o consumo alimentar. Inicialmente comer mais. Se a renda continua aumentando come-se mais e melhor. Isso aquece o segmento produtor de alimento que não migra para a produção agroenergética, pois vê seus rendimentos crescerem graças ao aumento da demanda por alimentos.

Por outro lado, populações que antes não criavam animais por falta de forragem, passam a ter grandes quantidades de alimento (bagaço de cana, farelo de girassol, farelo de soja, folha de mandioca, entre outros) que traz em si a possibilidade de constituir ramos inteiros de produção de proteína animal (em terra e na aqüicultura) graças a existência desse subproduto da produção agroenergética.

As possibilidades de desenvolvimento sócio-econômico na era dos biocombustíveis são mais do que reais, desde que o modelo adotado seja efetivamente includente. Graziano também assim entende e o colocou em seu artigo

“O desafio social da agroenergia”:

A expressão aumento da produtividade pode ter muitos significados e distintas conseqüências. Inovação e avanço tecnológico é uma delas. Melhoria das condições gerais de infra-estrutura e escolaridade, é outra. Mas aumentos de produtividade podem ser conseguidos também pela super-exploração da mão-de-obra, especialmente a través da extensão e/ou intensificação da jornada de trabalho.

A cana-de-açúcar começou no Brasil acoplando ao latifúndio monocultor, a moenda e a senzala para definir um regime de trabalho escravocrata, que durante quatro séculos condicionaria nossa sociedade por caminhos pouco edificantes. Cicatrizes desse traço fundador permanecem abertas até hoje e de forma particularmente latejante manifestam-se na jornada de mais de 500 mil brasileiros que, segundo a PNAD-2005, são requisitados anualmente para o corte da maioria dos 6,3 milhões de hectares de cana do país.” (SILVA, José Graziano da. O desafio social da agroenergia

Santiago,Chile:FAO,2007.Disponível.em:<http//.www.rlc.fao.org/pr/qui

enes/dg/articulos/art02.swf> Acesso em 20 out. 2008).

Excelente exemplo. A cana de açúcar é apenas uma planta. A questão é sob qual modelo se implementa o processo de produção dessa riqueza. Produzindo açúcar num regime escravocrata e depois oligarca e absolutamente excludente esse modelo

gera cicatrizes perversas até o presente, quase 500 nos após a sua implantação. Acredito que essa perversidade, hoje, pode ser ainda maior, pois as necessidades de álcool combustível são infinitamente superiores as de açúcar e se a produção de etanol se restringir à cana de açúcar e no modelo definido pelas grandes usinas, o processo de exclusão poderá ser total na medida em que invariavelmente a mecanização tomará o lugar do trabalhador braçal no corte. Obviamente esse tipo de atividade é aviltante, mas é trabalho quase que fundamentalmente exercido por nordestinos que não conseguem espaço para viverem produtivamente na sua região. A agroenergia tem que se expandir fixando homens a atividades produtivas rentáveis:

Conforme sublinhamos em artigo de 29 de maio neste espaço, nossa meta é levar os governos do continente a abraçarem um conjunto de ações que permitam associar a expansão da agroenergia à luta contra a fome. Incluem-se aí medidas como o zoneamento agrícola para impedir que a nova atividade desaloje lavouras destinadas à alimentação humana; aperfeiçoamento dos contratos e direitos sociais, especialmente direitos trabalhistas no campo; expansão da pesquisa, da assistência técnica e do cooperativismo, de modo a propiciar a participação dos pequenos produtores não apenas como fornecedores de matérias-primas, mas protagonistas de corpo inteiro desse novo mercado (SILVA, José Graziano da. O desafio social da Agroenergia Santiago,

Chile:FAO,2007.Disponível.em:<http//.www.rlc.fao.org/pr/quienes/dg/a rticulos/art02.swf> Acesso em 20 out. 2008).

Disseminar a produção egroenergética entre pequenos e médios produtores rurais, evoluindo numa segunda etapa não mais para o fornecimento de matérias primas, mas para a participação no valor agregado pela produção de etanol e biodiesel. Essa é a grande inclusão agoenergética que nos tornará um país muito rico e com uma riqueza bem melhor distribuída. O Centro-Sul evoluirá. Além dos recursos do PAC lá existe pequenos e médios produtores rurais tecnificados e organizados. E essa evolução começa a dar seus primeiros sinais:

No dia 7 deste mês, a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 303/07, do deputado José Fernando Aparecido de Oliveira (PV-MG). O PL visa a criação do Programa Nacional de Produção de Biocombustíveis por Cooperativas (PNBC).

De acordo com a Agência Câmara, foram apresentadas pelo relator, o deputado Marcos Montes (DEM-MG), duas emendas que fazem dois acréscimos ao projeto original. A primeira emenda autoriza o agricultor rural, que seja pessoa física, a produzir biodiesel, quando o combustível for destinado ao consumo próprio ou à entrega à cooperativa a qual for associado.

A segunda isenta esses produtores rurais do pagamento da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do Programa de Integração Social (PIS/Pasep) que incidir sobre a produção do combustível. Esses dois tributos são os de maior incidência sobre a cadeia do biodiesel. O PL tramita em caráter conclusivo e ainda será analisado pelas comissões de Minas e Energia; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania (PL prevê a criação do Programa Nacional de Produção de Biocombustíveis por Cooperativas. Gestãoct, Brasília, 21 nov.

2007.Disponível.em:<http://www.gestaoct.org.br/eletronico/inov_ener

g/inform/IEnumero10.htm#2> Acesso em: 20 jun. 2008).

Associar a agroenergia à luta contra a fome é a grande tarefa. Mas essa tarefa que Graziano como dirigente da FAO na América Latina coloca como meta, não chegou sequer ao seu ex-chefe e amigo pessoal, o Presidente Lula. O modelo atual agroenergético implantado pelo governo brasileiro é o contrário do preconizado pela FAO e do esperado como política nacional de desenvolvimento econômico. Se no Centro Sul os pequenos produtores serão fornecedores de matéria prima (o que considero um avanço), no Nordeste não serão nem isso e não há nada que prove o contrário, apenas propaganda governamental desmentida pelos números e ações oficiais.