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CAPÍTULO 3: A GARGALHADA DIONISÍACA E(M) ZARATUSTRA

3.2. Simbologia em Zaratustra: possíveis perspectivas

3.2.3. O(s) novo(s) sentido(s) de alegria

Zaratustra é um livro leve, despreocupado da tarefa de entregar algum tipo de fórmula a seu leitor. Transcorre vivaz enquanto seu protagonista percorre os lugares na tentativa de anunciar o Übermensch. Não é exatamente uma caminhada livre de percalços ou de sofrimentos. Como a vida de qualquer um de nós, a caminhada de Zaratustra expõe muitas vezes o cansaço que pode nos assaltar após percebermos a dimensão trágica da existência. No início do segundo livro, quando Zaratustra decidiu voltar às montanhas e à solidão, confiante em ter realizado sua missão, ocorre-lhe um sonho estranho: ao se olhar no espelho vira um demônio ridente no lugar de sua própria imagem. Interpretou assim que seus ensinamentos estavam sendo deturpados e decidiu visitar novamente os amigos que abandonara. O interessante é que, mesmo diante da iminência de ter seu nome e ensinamentos distorcidos, ele é tomado de uma intensa alegria, que irradiava. Sob o olhar admirado de seus animais, ele até reconhece que sua felicidade é tola, por ser jovem, mas que “todos os sofredores me servirão de médico!”434. Dessa forma, mesmo feliz, o profeta

admite que, para que sua alegria deixe de ser tola e jovem, ou seja, amadureça, precisa encarar novamente o sofrimento, o embate, a dor. De certa forma, enfrentar aqueles que querem destruir sua imagem é uma boa prova para esta felicidade. Então, ao invés de se fechar, ressentir ou criar possíveis cenários de vinganças futuras, Zaratustra se reconcilia com os fatos e jubiloso diz: “Também meus inimigos são parte da minha ventura”435. Ou

seja, sua felicidade estava não somente em encontrar os amigos que deixara, mas também os inimigos que teria que enfrentar. Ele abraçava as forças que se colocavam a seu favor e também aquelas que a ele se opunham.

Com essa passagem queremos sublinhar alguns temas a serem articulados nos

434 NIETZSCHE, AZ, Segunda parte, O menino com o espelho, 2014, p. 79. 435 NIETZSCHE, AZ, Segunda parte, O menino com o espelho, 2014, p. 79.

parágrafos seguintes: a constatação de que a metamorfose da existência joga-nos constantemente num abismo trágico, de que não há sono tranquilo; o uso do esquecimento para que haja uma abertura aos acontecimentos cujo controle não nos pertence; o fortalecimento da ideia de que a criação é a grande libertação do sofrer ; o apontamento do novo sentido da alegria que há em Zaratustra, que usa inclusive das intempéries para afirmar a existência trágica, finalmente chegando ao riso.

O que assustou Zaratustra no fatídico sonho e lhe tirou do momentâneo sossego em que pousava foi a imagem no espelho, que fugia muito do esperado. O uso da imagem nessa passagem não é gratuito: de fato, é a aparência a responsável por nos lembrar infinitas vezes que tudo parece estar em desacordo com nossas vontades. O espelho de Zaratustra com o demônio que ri está diariamente diante de nossos olhos quando não vemos a nós mesmos nele, mas sim uma imagem deturpada por diversas quimeras morais, sociais e estéticas. No nosso espelho estão imagens que indicam uma disparidade entre aquilo que gostaríamos que fôssemos e o que estamos realmente sendo. “A vaidade ferida não é a mãe de todas as tragédias?”436A aparência dos outros, dos fatos e do mundo também passa pelo mesmo

processo que nos leva à insatisfação e ao sofrimento. A aparência está no campo da vida, submissa às mesmas leis que a regem, por isso ela não está livre de sofrimento, de dor, de tragédia, de degeneração. É a aparência, somada às nossas idealizações, que acusa em nós o que há de desacordo com o que gostaríamos que tudo fosse.

Entendemos que todo ser humano, afligido ou não pelo sofrimento, passa pela vida em busca de um sentido para ela, pois assim aprendeu a pensar. A preguiça que o acomete o leva a depositar esse sentido em tábuas escritas por mãos alheias e aplicar a si mesmo um receituário moral que responda suficientemente a suas ansiedades. Por outro lado, tudo o que sai do planejado causa insatisfação. “Inquietante é a existência humana, e ainda sem sentido algum: um palhaço pode lhe ser uma fatalidade”437.

Sabemos que o tema da tragédia é recorrente no autor em estudo. Porém, aqui, ele chega a uma nova compreensão desse tema, ligada a uma interpretação fisiológica e não mais metafísica dele, diferente portanto daquela vigente em O nascimento da tragédia. Não existe mais consolo, pois não há mais esperança. Não se busca mais cura, pois a ferida é permanente. Como só há a materialidade, estamos todos mergulhados no trágico, ambiente refratário a redenção ou salvação.

436 NIETZSCHE, AZ, Terceira parte, Da prudência humana, 2011, p. 136. 437 NIETZSCHE, AZ, Prólogo, § 7, 2014, p. 21.

Dessa maneira, alguns comentadores438 concordam que existem em Nietzsche dois

tipos de vivência do trágico: a daqueles que se posicionam como dramaturgos ou diretores da existência e que querem escrever seus roteiros, direcionar suas ações a partir de algum sentido ou thelos, não abrindo mão de tentar controlar os eventos, e a daqueles que assistem distanciados439 a existência, que amam a vida e querem o mais possível o que ela tem a

oferecer, que promovem o riso por não quererem corrigi-la nem redirecioná-la, que se abrem para a alegria como um posicionamento potente ante o sofrimento que lhes é apresentado.

Zaratustra é o trágico do tipo expectador ou ator, que conseguiu a leveza de observar a vida do alto e de longe e por isso adquiriu o terceiro olho440 a que Nietzsche se refere em Aurora, o olho de teatro que entende a existência como uma grande e risível comédia de erros, apresentada por grandes atores sérios que não se deram conta de suas falhas.

Já não sinto como vós: essa nuvem que vejo abaixo de mim, essa coisa negra e pesada da qual rio – justamente isso é vossa nuvem de tempestade. Olhais para cima quando buscais a elevação. Eu olho para baixo, porque estou elevado. Quem, entre vós, pode ao mesmo tempo rir e sentir-se elevado? Quem sobe aos montes mais altos e ri das tragédias do palco e da vida.441

Zaratustra desce da montanha para reafirmar um novo sentido para a vida, agora não mais fora da realidade, em um mundo ideal. Ele precisava assegurar-se que o que falara sobre o Übermensch ser o sentido da vida fora bem recebido. Ele é o que o homem pode ainda se tornar, mas ele precisará partir do que tem para viver sob esse sentido, e a vida que o homem tem é puramente trágica. O Übermensch é, pois, o que provém de uma vida encarada autenticamente como trágica, da superação de si mesmo para tornar-se o que se é. Da construção de si mesmo e dos diversos sentidos possíveis para a vida. É necessário um ultrapassamento do espelho, da imagem, da barreira ideológica criada por ele. Sendo assim, perdem-se as referências externas e até superiores e passa-se a entender o corpo, a vida, o mundo como lugar de possibilidades, de experimentação e de criação, mesmo com as cores fortes da tragédia. “Um corpo mais elevado deves criar, um primeiro movimento, uma roda que gire por si mesma – um criador deves tu criar.”442 É o nascimento de um novo artista e

de uma nova arte, portanto, de novos sentidos. Para dar sentido à vida, o homem (como

438 Principalmente Maria C. F. Ferraz em “O Bufão dos Deuses” e (2009) e Miguel A. de Barrenechea, em

“Nietzsche e a alegria do trágico” (2014).

439Distaanciamento aqui não significa inação, imobilidade ou indiferença. Quer trazer a noção de um pathos

da observação, da capacidade re-agir, de não tentar controlar o fluxo, mas de ser refluxo. O distanciamento é só um movimento para uma melhor interação com o meio, para uma melhor preparação para se entrar no jogo.

440 Cf. NIETZSCHE, AA, § 507, já comentado no último tópico do Capítulo 1 desta dissertação. 441 NIETZSCHE, AZ, Primeira parte, Do ler e do escrever, 2011, p. 41.

imagem) precisa ser ultrapassado e os temores abandonados. Zaratustra critica a idealização desse tipo de homem que foi erigida pela cultura e agora precisa ser abandonada: “(...) o homem tornou-se um animal quimérico, almejando uma vida fantasmagórica, pressionado e violentado a corrigir sua própria natureza; até é obrigado a tornar-se estranho a si mesmo, um bicho excêntrico que se coloca fora e além de si”.443Não se torna artista de si para uma

espécie de autoaperfeiçoamento nem de construção de beleza, mas para a celebração da vida que escorre em nós. O Übermensch é o embriagado Dioniso alegremente afirmando a existência, no meio dos homens ele é o artista. Essa nova arte, não mais moral nem metafísica, surge como tônico da vida, como capacidade de expressão da vontade de potência, como motor do aumento de vida. “Havendo-se excluído da arte o fim da pregação moral e do aperfeiçoamento humano, não se segue daí que seja sem finalidade. (...) A arte é o grande estimulante para a vida”444. Então, está posto neste ponto o porquê é vantajoso

continuar sendo artista mesmo que a arte não elimine o sofrimento. Ela não o elimina mas aumenta diante dele a potência de vida que ele pode querer esgotar. E é no ápice da dor que ela deve aparecer como totalidade de nós mesmos. Somente assim continuaremos sendo inteiros, mesmo em meio a situações que nos dilaceram.

[...] temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo.445

Assim, a ideia de felicidade446estará deslocada da ideia de virtude moral e será

mesmo independente da vivência de momentos felizes, ou da expectativa do cumprimento de promessas. O ser feliz estará na afirmação da vida como totalidade trágica e na condição de criador de sentidos. “E assim falei muitas vezes, para meu consolo: ‘Muito bem! Adiante, velho coração! Uma infelicidade te sucedeu: goza disso como tua – felicidade’”.447 Quando

assim agimos estamos reconciliados com a vida e não de luto por nossa vontade não ser realizada.

Um dos mecanismos humanos de produção de ansiedade, de ressentimento e portanto de sofrimento é o mau uso da memória. Se Zaratustra, ao sentir, através do sonhos, que o

443 BARRENECHEA, 2014, p. 129.

444 NIETZSCHE, CI, Incursões de um extemporâneo, § 24, 2013, p. 77. 445 NIETZSCHE, GC, Prólogo, § 3, 2012, p. 12.

446 Mesmo sabendo da complicação etimológica e semântica, continuaremos usando essa palavra ligada à

palavra Glück usada nos primeiros parágrafos da Segunda parte do Zaratustra.

que dissera estava sendo deturpado por seus inimigos, tivesse usado de forma ressentida sua memória, traria de novo às lembranças os momentos que passara com seus discípulos e o quanto foi eficaz na instrução deles. Assim, se entregaria à angústia pelas imagens que criaria deles sendo enganados e desorientados novamente. Mas não, o profeta não usou do passado para projetar possíveis acontecimentos futuros, simplesmente agiu como um novo começo, como um novo agora e foi encontrá-los sem levar consigo a bagagem do ressentimento.

Em Nietzsche, não só a falsa imagem que criamos de nós e nem somente nossa vaidade ferida são geradoras de sofrimento. Nesse processo, o acúmulo de lembranças também pode potencializar a noção de tragédia que vivemos e tornar nossas forças inertes. A memória serve não somente para guardar uma determinada interpretação de um fato passado, mas para criar expectativa para um fato futuro, dando-lhe quase a mesma força de um presente, pois ele não nos desocupa, não abre espaço para novidades e diferentes experimentações da vida. Cria-se uma ficção em relação à impressão passada recebida que se aloca no homem e gera-se uma vontade de uma realização futura que, por ocupar grande parte da memória e por exigir grande energia, torna a pessoa sua escrava. Mas há um querer envolvido nesse processo: o querer não esquecer-se, a luta por lembrar-se constantemente, o “(...) ativo não- mais-querer-livrar-se, um prosseguir querendo o já querido, uma verdadeira memória da

vontade(...)”448. É uma prisão ao fictício mascarado de verdadeiro, é como percorrer uma

sombra que nunca se deixa alcançar. Esse uso da memória nos torna pesados, presos, incapacitados de agir. É o esquecimento que nos libera do peso da insatisfação e da sensação de falta.

Esquecimento, porém, não é um mau funcionamento da memória ou uma falta de cuidado da razão com os fatos, mas uma atividade do homem que aprendeu a desprender qualquer fato ou acontecimento de outros tempos ou pessoas que se acumularam nele de forma destrutiva ou doente. “Esquecer não é uma simples vis inertiae (força inercial), como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência (...)”449.

Ao não estabelecer relações causais, que por sua vez gerariam memória para exigir recompensa, o esquecimento é também uma atividade da mente, não seu desleixo. A expectativa e, portanto, a frustração, nascem da memória, do acúmulo de informações mal

448 NIETZSCHE, GM, II Dissertação, §1, 2013, p. 44. 449 NIETZSCHE, GM, II Dissertação, §1, 2013, p. 43.

conectadas. É preciso abandonar o pensamento causal, que vê e antecipa a coisa distante como se fosse presente e que se prepara, se organiza, calcula, conta e estabelece sua vida em relação a este futuro-presente.

Na Genealogia da Moral, o esquecimento aparece como uma espécie de guarda da consciência saudável. Ativamente ele se posiciona não permitindo que experiência passadas se impregnem em nossa consciência e criem imagens de possíveis consequências. Então, “(...) o esquecimento não viria apagar as marcas já produzidas pela memória, mas, antecedendo à sua própria inscrição, impediria, inibiria qualquer fixação.”450 A memória

seria uma espécie de má digestão451. A metáfora fisiológica traz a ideia de que a memória

deixa-nos com a sensação de carregar em nós mais do que devíamos, a necessidade de nos livrarmos de pesos extras. Uma mente obstinada com aquilo que vivenciou no passado seria tomada agora por uma ‘indigestão’ psíquica, incapaz de absorver novos alimentos, ou seja, não haveria desejo nem disposição para se experimentar o novo, pois se estaria preso a um passado que não passou. Desprezar-se-ia o presente e o futuro em função de algo que deveria ter sido digerido e não foi. Percebe-se, então, em que medida “(...) o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte (...)”452.

Um homem que não possuísse de modo algum a força de esquecer e que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em si, vê tudo desmanchar-se em pontos móveis e se perde nesta torrente do vir-a-ser: como o leal discípulo de Heráclito, quase não se atreverá mais a levantar o dedo. A todo agir liga-se um esquecer: assim como a vida de tudo o que é orgânico diz respeito não apenas à luz, mas também à obscuridade.453

Zaratustra rompe com essa ideia de continuidade e autodependência dos acontecimentos no tempo, como uma sucessão de fatos interligados pela lógica da causa e consequência e também desfaz a ideia de que somos produzidos pela sucessão de coisas que acumulamos e não também daquelas de que nos livramos. Se desligar do que se foi é assumir a leveza, não aceitar os fardos e viver aquilo que aqui e agora está.454 “Esta é a minha

450FERRAZ, 1999, p. 28.

451 Vattimo (2010) classifica esse posicionamento em relação ao passado como uma espécie de “doença

histórica”, em que o excesso de estudos e de conhecimento sobre eventos passados gera um bloqueio em nossa sempre presente capacidade criativa. A extrema consciência histórica, tanto de fatos maiores, como de experiências pessoais, provoca em nós uma paralisia e uma perda de autoconfiança, que não abre espaço para a criação do novo.

452 NIETZSCHE, GM, II Dissertação, §1, 2013, p. 43.

453 NIETZSCHE, Co. Ex., Da utilidade e desvantagem da história para a vida, 2003, p. 9.

454 Sabe-se que ainda permanece aqui um nó: a afirmação do instante é possível apenas quando incorporamos

ou digerimos o passado, porém este não deixará de acontecer de novo eternamente segundo uma série causal. Um dos possíveis caminhos para se desatar este ponto, ou para reconfigurá-lo seria pensar o retorno do passado

compaixão por tudo que é passado: que eu o veja abandonado – abandonado à mercê, ao espírito, à loucura de toda geração, que vem e reinterpreta tudo o que foi como uma ponte para si”.455

Esquecimento exige decisão, coragem, espírito livre. Num mundo que preza o acúmulo, o apego ao detalhe, a cobrança pelo cumprimento da promessa, a celebração do que se foi e que baseia amizade, contratos de confiança, história, verdade em registrar e guardar o que se foi, o esquecido é o estranho, o diferente, mas também o feliz.

Fechar temporariamente as portas e as janelas da consciência; permanecer impertubado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos seviçais a cooperar e divergir, um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento456.

O próprio riso se liga ao esquecimento quando faz-nos agir como crianças a brincar, envolvidas sempre com um jogo novo. A alegria de se envolver com o momento presente faz com que nos desliguemos do passado, assim como crianças que brincavam junto ao mar e perderam seus brinquedos para as ondas. No momento do ocorrido, as crianças choram, mas a mesma onda deverá trazer-lhes novos brinquedos e lançar à sua frente conchas coloridas, com as quais elas se distraem e se alegram457. Zaratustra mostra o quanto as

crianças vivem o momento presente quando diz que abandonam a dor da perda de um passado recente para viver a emoção de um novo brinquedo que a natureza lhe dá. A alegria, nesse caso, só pode vir do esquecimento, do desprendimento do que se foi.

Por outro lado, a alegria pode vir não só do afastamento da dor da memória, mas também da vivência profunda dela, da entrega à oportunidade que a vida nos oferece de olhar no mais profundo de seu abismo e perceber que ainda há vontade de celebrar, como faziam os antigos gregos. A reunião daquilo que parece irreconciliável, dor e vida, sofrimento e alegria, transparece na serenojovialidade (Heiterkeit) helênica e Nietzsche, mesmo num momento diferente de sua obra, não abandona essa inspiração. Sim, são aqui novamente os

como o retorno das forças que nele estavam presentes, de maneira reorganizadas, como uma espécie de “eterno retorno da diferença” como em Deleuze ou como uma liberação do sujeito da preocupação do que viria no futuro, pois por um lado estaria novamente se prendendo ao “não-agora” e por outro contaria com a certeza de uma vivência que não se sabe quando.

455 NIETZSCHE, AZ, Terceira parte, Das velhas e novas tábuas, §11, 2011, p. 192. 456 NIETZSCHE, GM, II Dissertação, §1, 2013, p. 43.

gregos exemplo de como a dor impulsionou a vida. Na Tentativa de autocrítica ao

Nascimento da tragédia, escrito de 1886, figuram expressões interessantíssimas que nos fazem acreditar serem os gregos ainda exemplo de povo que usou a dor para viver. No texto, para um Nietzsche já distanciado da metafísica, a alegria dionisíaca passa a ser propriamente a maneira de viver afirmando a vida nos seus momentos mais duros. Ele a caracteriza como “pessimismo da fortitude”458 ou “pessimismo da força”459, o que não seria “[...] necessariamente o signo do declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados”, mas “uma propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude da existência”460. Assim, é o homem que vive na mais alta pujança de sua vontade de potência,

aquele que encontra capacidade de vida no meio da mais alta dor que ela pode lhe apresentar. É uma espécie de alegria como a tinham os gregos, que mesmo diante dos horrores da existência a celebravam com danças e com música. A arte enquanto celebração existencial embriaga a ponto de fazer o homem afastar seus olhos do sofrimento e voltar os olhos para o corpo e para a terra.461 Assim, tragédia e comédia se aproximam de tal modo que ambas

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