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CAPÍTULO 3: A GARGALHADA DIONISÍACA E(M) ZARATUSTRA

3.2. Simbologia em Zaratustra: possíveis perspectivas

3.2.4. O(s) novo(s) sentido(s) do riso

3.2.4.1. Zaratustra bufão e o fazer rir

A primeira aparição do tema no livro ocorre não em um discurso de Zaratustra, nem mesmo numa expressão dele diante de alguma situação. O personagem introduz o riso na obra fazendo outra pessoa rir. Ou seja, antes de ser um ridente ou um defensor e propagador do riso, Zaratustra é aquele que faz rir, o que promove o movimento e o rompimento da gravidade. Ainda no Prólogo, recém descido da montanha, o profeta é interpelado por um homem velho que deixara sua cabana para colher raízes na floresta. O homem o reconhece, de anos anteriores, e percebe nele algumas mudanças. Seus passos assemelhavam-se a de dançarinos, seu jeito ao de uma criança, praticamente um desperto espiritualmente. Entendendo que o profeta se encaminhava novamente em direção aos homens, o velho tenta dissuadi-lo da ideia dizendo que seria melhor que não fosse, mas que, se insistisse em continuar, tirasse tudo das pessoas que encontrasse, deixando-lhes somente esmolas. Então, Zaratustra responde "Não, (...) não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso”.466

Nesse instante o velho, agora chamado de santo, ri. No que ri, ele entende o que falara o profeta e responde: “Então cuida para que recebam teus tesouros! Eles desconfiam dos eremitas e não acreditam que viemos para presentear”.467

465 VASQUES, 2014, p. 123

466 NIETZSCHE, Z, Prólogo de Zaratustra, §2, 2014, p.12. 467 NIETZSCHE, Z, Prólogo de Zaratustra, §2, 2014, p.12.

O que há de cômico na fala de Zaratustra que faz o velho sorrir? Aqui entendemos que a fala de Zaratustra também obedecia a um estilo e que ela precisou enfrentar de forma criativa a insistência de um homem sério, ou seja, de um homem que enxergava a vida sob a rigidez dos fatos. Seria inconcebível que alguém “desperto” (Erwachter468) como Zaratustra, retornasse para o lugar de onde se libertou. Assim, tomando-o por um místico quase espiritual, o velho não pôde ouvir o que o profeta falava, exigindo que ele lançasse mão de uma estratégia para desarmá-lo. A frase dita por Zaratustra é eficaz nesse sentido pois realiza duas tarefas que são próprias daquilo que é cômico, como vimos no capítulo anterior. Primeiro ela quebra uma expectativa. Quando Zaratustra diz que não dá esmolas, espera-se que a frase seguinte que justificaria tal afirmativa fosse relativa à sua falta de vontade para tal ato ou uma falta de recursos financeiros. O que se podia esperar era um complemento similar a: “não sou rico o bastante”. Porém, Zaratustra quebra a expectativa do interlocutor quando usa a palavra “pobre” no lugar de rico. Ou seja, não faz “sentido lógico”, nos termos puramente linguísticos, dizer que a causa da não distribuição de esmolas fosse a ausência de pobreza. Aqui, a organização sintática das palavras é contorcida para que o pensamento de quem ouve fosse da mesma forma contorcido. Por isso, a segunda característica da resposta é a distorção da lógica para dizer coisas que as palavras, somente obedecendo às regras estruturais da língua, não conseguem. Zaratustra faz rir porque cria novas relações entre as palavras, faz com que elas dancem conforme a possibilidade da situação, assim como em outros momentos ele cria para elas novos sentidos. O que Zaratustra chamava de pobre não se referia à falta de bens, mas à falta de amor à vida, pobre no uso da potência, possuído pelo espírito de gravidade. Como rico, ele não se preocuparia em seguir preceitos, não cederia à compaixão nem a leis morais, como tenderia a fazer o santo. Dessa forma, a provocação do riso aparece na conversa por um lado como um desarmamento do interlocutor, que insiste em ser rígido, e, por outro, como propulsor de pensamento.

Zaratustra é um alegre bufão469que corta as terras por onde passa com suas

provocações a todo tipo de verdade previamente instituída. O velho, chamado de santo, na continuidade da conversa expõe sua devoção à divindade em seus cultos na floresta a Zaratustra, que dessa vez não lhe corta o entusiasmo, mas ouve calado. E ao término do

468 Paulo C. de Souza, escreve uma nota na sua tradução dizendo que essa palavra é um epíteto aplicado ao

Buda e significado da raiz sânscrita de seu nome, Buddh-.

diálogo, depois da despedida, deixa-o rindo e parte também rindo. O primeiro ria pois acreditava ter acrescentado algo ao profeta, ou seja, ria por mostrar-se bom e piedoso na realização de suas tarefas religiosas. Ria um riso de superioridade. Zaratustra ria o riso provocado pela comédia existencial a que acabara de assistir, ria de alguém que agia como aqueles atores de comédia agem e não entendem o quiproquó em que se metem. O riso de Zaratustra é o riso do espectador da comédia da vida, daquele que vê a vida como teatro470.

No segundo volume de Humano demasiado humano, Nietzsche diz que a vida é uma peça teatral, que segue mais ou menos o mesmo roteiro de que vai do nascimento à morte. “Mas em todas as suas não contadas e incontáveis apresentações, essas pequenas tragicomédias são representadas por novos atores, e por isso não cessam de ter novos espectadores interessados (...)”471 Ali, depois de assistir à cena do velho como uma dessas tragicomédias,

Zaratustra ria porque o homem cultuava um Deus que há muito havia morrido: “Como será possível? Este velho santo, na sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!”472

Enquanto muitos olham para cima na tentativa de conectar-se com uma verdade divina revelada, de cumprir na vida o script pré-estabelecido pelas religiões ou de garantir seu lugar numa pretendida eternidade, Zaratustra segue com seu olhar distanciado, que não julga, não corrige, nem mesmo cria fundamentos. É do alto que ele vê a vida e, de lá, torna- se criador de interpretações particulares sobre ela: ficções adicionais para a ficção maior que a vida é. Nos palcos por onde passa é capaz de se alegrar com os personagens a que assiste e que se negam a sair de seus roteiros, tirar as máscaras e escrever novas histórias.

Olhais para cima quando buscais a elevação. Eu olho para baixo, porque estou elevado.

Quem entre vós, pode ao mesmo tempo rir e sentir-se elevado?

Quem sobe aos montes mais altos e ri das tragédias do palco e da vida?473

O riso, nesse sentido, funciona como mecanismo de interpretação da vida, uma via alternativa para o peso da verdade. É a exaltação da vulnerabilidade dos corpos perante a força da existência e, ao mesmo tempo, a celebração das potências que podem aparecer com eles. Enquanto muitos tentam, presos à terra por conceitos, estruturações e códigos, erigir a

470 Ver por exemplo, como ri o profeta diante de um povo a que chama de “todos os potes de tintas”. Eram os

homens do presente que faziam de seus próprios rostos máscaras e que mantinham ao seu redor espelhos para, ao mesmo tempo, refletir suas cores e propiciar a eles a admiração de si. Zaratustra vê aquela cena como um espectador de um teatro mal encenado, pois ainda consegue perceber como eram formados de “cores e pedaços de papel com cola”. (NIETZSCHE, Z, Segunda parte, Do país da cultura, 2014, p.40.)

471NIETZSCHE, HH II, O andarilho e sua sombra, § 58, 2008, p. 198. 472 NIETZSCHE, Z, Prólogo de Zaratustra, §2, 2014, p.13.

torre de Babel que alcançaria os deuses, Zaratustra voa e observa de cima aqueles que não querem rir da própria confusão que criam com suas diversas vontades traduzidas em línguas diversas. Observa a seriedade com que os homens criam a necessidade de encontrar verdades que eles mesmo inventaram que existem: verdades absolutas e irrevogáveis. São sérios porque sofrem daquilo que Nietzsche chama de “pathos da seriedade”, ou seja, da necessidade de encarar a vida com o mesmo peso e método que a encararia um cientista. Mas mesmo os cientistas reconhecem que certas verdades suas podem sofrer alterações. De certo que só fazem isso quando conseguem colocar, no lugar daquelas, outras verdades. Porém, existem pessoas que cedem a essa seriedade e passam a perseguir as verdades dadas. Essas pessoas são tão afetadas por essa falsa necessidade e vivem em busca de pelo menos um contato com pequenos indícios de que a vida, os fatos e as coisas têm explicações prévias, mesmo que esses mesmos indícios já tivessem sido abandonados por outros perseguidores anteriores. Muitos artistas mesmo são tomados por esse pathos.

Seriedade com a verdade! Que diferentes coisas entendem as pessoas por essas palavras! As mesmas opiniões e tipos de prova e demonstração que um pensador acha uma leviandade, à qual, para sua vergonha, ele sucumbiu nesse ou naquele instante – precisamente essas opiniões podem dar, a um artista que com elas depara e vive algum tempo, a consciência de que se tornou profundamente sério com a verdade e de como é admirável que, embora artista, ele mostre também o mais sério desejo do contrário da aparência. Então, é possível que, justamente com o pathos de sua seriedade, ele traia o modo superficial e limitado com que até agora o seu espírito se moveu no campo do conhecimento. – E não somos traídos por tudo aquilo que achamos importante? É o que mostra onde colocamos nossos pesos e para que coisas não possuímos pesos.474

Aquilo que nos impossibilita de voar e rir como Zaratustra é o peso do que consideramos importante. E junto à noção de importância criamos a necessidade de permanência. O importante precisa ficar, precisamos nos apossar dele, pois também adicionamos a ele uma espécie de substancialidade necessária. Sem isto ou aquilo que consideramos importante não podemos viver. Assim, colocamos aí nossos pesos, que travam nossa capacidade criativa e nos prendem ao ficcional agora, que na verdade passa e não permanece. Assim, quando se ama esse falso agora, se ama o passado, a imagem que distancia da coisa. Permanece a memória e não há espaço para o esquecimento. O riso zaratustriano viria de fora para desfazer esse feitiço, para liquidar a gravidade em que se jaz, pois “não com a ira, mas com o riso é que se mata. Eia, vamos matar o espírito de gravidade”.475

474NIETZSCHE, GC, §88, p. 109.

Assim, Zaratustra golpeia o velho feiticeiro que representava os “penitentes de espírito” na quarta parte do livro. O homem se debatia sobre o chão enquanto entoava um monólogo de lamento diante da vida, colocava-se na posição do sofredor sem causas, do abandonado por todos, daquele sobre quem caíram todos os tormentos. Zaratustra, para terminar com a atuação do homem, batia nele e gritava com “furiosa risada”, o que fez com que ele acordasse daquele delírio e dissesse estar apenas representando. O homem se levanta e diz estar de brincadeira e que representava apenas os penitentes de espírito. Durante a conversa dos dois, percebe-se que Zaratustra não confia no feiticeiro, mas o mesmo insiste em dizer que aquilo era apenas uma atuação, no que o profeta responde: “Maquinaste para mim tua mentira quando disseste: ‘Fiz isso apenas de brincadeira!’ Havia também seriedade nisso, tens mesmo algo de penitente do espírito!”476

Nietzsche destaca a seriedade com que o homem se queixava de sua vida diante de Zaratustra porque assim ele se tornava mais um insatisfeito com a vida. Essa seriedade não é compatível com a brincadeira, com o jogo e com o riso, pois é a seriedade de quem tenta passar por grande, valoroso e digno de dó, alardeando aos quatro ventos sua falsa humildade e retidão. Este mendiga atenção porque, como diz Zaratustra, é desencantado consigo mesmo. No fim das contas, o feiticeiro admite tal enganação e Zaratustra, sorrindo, continua seu caminho.

Como vimos, a risada nem sempre é pacífica, por vezes também pode se apresentar furiosa para despertar aqueles que deliram e jazem no sono do desencanto consigo mesmos e com a própria vida. Não foi com palavras somente que Zaratustra terminou com a falsa representação do homem, mas com açoites e com uma risada furiosa.

Trata-se, portanto, de estabelecermos agora uma antiga-nova possibilidade de não apenas combatermos as palavras pelas palavras, a crítica pela seriedade da crítica, o justo pelo injusto, mas ainda extrapolarmos essa relação através de um caminho ainda pouco percorrido, o reconhecimento de uma sabedoria feliz (‘gai savour’).477

A risada pode, no processo de liberação de nossas potências, ser também um meio possível de conhecimento, ou de admissão de uma possibilidade de uma sabedoria que fosse leve e que não se cobrasse necessariamente abstrações de verdades, ou simplesmente a admissão de que não é possível conhecer em definitivo o que quer que seja.. Mesmo porque, como disse o feiticeiro, Zaratustra veio golpear com “suas verdades”, admitindo com isso que não há uma universalidade no conhecimento e ao invés de propagar aquilo que se

476NIETZSCHE, Z, Quarta parte, O feiticieiro, §2, 2014, p.243. 477 CARVALHO, 2009, p. 301.

entende da vida, os espíritos livres riem: “(...) sorrimos um para o outro o que sabemos”.478

Portanto, “(...) consideremos falsa toda verdade em que não houve ao menos uma risada.”

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