• Nenhum resultado encontrado

O Observador-pesquisador e o Objeto de Pesquisa

No documento Download/Open (páginas 30-33)

CAPÍTULO I: O OBJETO DE PESQUISA E A CIRCUNSCRIÇÃO TEÓRICO-

3.1. O Observador-pesquisador e o Objeto de Pesquisa

Para iniciar essa discussão convém reconhecer como pressuposto que a análise e compreensão de processos sociais e naturais sempre se desenvolvem em relação entre o observador e o evento observado. Desse encontro que se tornaria possível o estabelecimento e a elaboração do conhecimento. Assim, não somente ganharia destaque às significações geradas de uma determinada realidade, mas o próprio observador que as produziu, pois também é possuidor de um determinado conjunto de referências socioculturais internalizadas ao longo das trajetórias de vida, a partir dos quais tende a atribuir significados aos eventos sensíveis. Neste sentido, para Zaluar (1997) as interpretações que se constroem sobre determinada realidade não estariam isoladas dos princípios de visão de mundo que ordenam consciente ou inconscientemente o pesquisador no ato da observação dos eventos sociais. A própria formação do objeto de pesquisa e motivações para tal seria, em parte, resultado dos tensionamentos vividos a partir de uma realidade marcada por poderes assimétricos entre os agentes sociais e por disputas políticas, ideológicas, econômicas e, de forma geral, culturais na sociedade.

Assim, seria anacrônico imaginar a possibilidade da constituição de uma ciência ou conhecimento neutro. Tal feito, na compreensão aqui desenvolvida, só seria possível se a formação da problemática de pesquisa e o pesquisador estivessem ‘imunes’ aos processos de disputa (ideológicos, econômicos, sociais, etc.) intrínsecos às formações sociais humanas na construção das realidades sociais hegemônicas e contra-hegemônicas. Dessa forma, os comportamentos do pesquisador frente aos fenômenos sociais e naturais não poderiam ser identificados como desinteressados, assim como os comportamentos dos indivíduos não são desinteressados nos relacionamentos com a natureza e a sociedade, o que não significa dizer que os mesmos tenham plena consciência de suas ações (Bourdieu, 1996:139-152). Uma vez aceito o pressuposto de que seria a partir das disposições sociais internalizadas no decorrer dos processos de socialização que se formariam as formas de ver o mundo e de se ver nele, acreditar na possibilidade de produzir conhecimento neutro seria, na melhor das hipóteses, uma ingenuidade, pois, como afirma Zaluar (1997: 116), a pesquisa também

(...) é política não só no sentido amplo de que é datada e se inclui nos movimentos políticos, nacionais e internacionais, [mas porque atravessa] as discussões e lutas políticas mais amplas, sejam estas explicitadas num projeto [de pesquisa] restrito que inclui a participação dos grupos locais a serem estudados, sejam elas parte de projetos [políticos] que, embora presentes e influentes em muitos discursos feitos na sociedade, não chegam nunca a ser articulados de modo explícito [num projeto de pesquisa] (...).12

Neste contexto, tanto na formação da problemática da pesquisa, como em relação às respostas que se busca desenvolver, ganharia importância a subjetividade inerente ao conjunto de relações pessoais e, de forma mais geral, à vivência de determinados eventos (sociais e naturais) que condicionam uma dada trajetória social e visão de mundo ao pesquisador. Assim, mesmo que a pesquisa delineie-se a partir de uma abordagem teórica, de um método e de técnicas de coleta e análise de dados, as subjetividades individuais permaneceriam a modo

12 Os comentários em colchetes na citação referem-se a complementos ao texto realizados pelo pesquisador como forma de tornar-la mais compreensível ao contexto que se está usando-a. Ademais, durante a dissertação este expediente estará sendo usado tanto em citações bibliográficas como em trechos de falas dos agricultores- assentados.

de uma impressão digital única de quem tensiona e é tensionado pela realidade em estudo. Dessa forma, para Cardoso (1997) seria necessário a explicitação da trajetória social do pesquisador, mais especificamente da “história” de relacionamento com o objeto de estudo, não para realizar algum tipo de psicanálise amadorística, mas como forma de abordar os contextos e condições sociais de produção dos discursos tanto do pesquisador quanto dos pesquisados, como se procurará realizar com maiores detalhes na próxima subseção. Neste sentido, a análise relacional observador-objeto limitar-se-ia, portanto, a uma aproximação do real que o pesquisador procura fazer a partir das categorias de percepção interiorizadas numa trajetória social, assim como pelas categorias teóricas de análise utilizadas para desvendar a problemática de pesquisa elaborada. Esse seria, assim, um processo aberto de conhecimento e pesquisa. Além do mais, torna-se necessário reconhecer, em especial para o caso ora em estudo, que outras dimensões importantes para se entender a realidade social em questão não tenham sido levadas em consideração pelo autor dessa dissertação, seja pelo pequeno tempo de pesquisa que um curso de mestrado proporciona e/ou pelas limitações teóricas, intelectuais e de prática de pesquisa.

Se por um lado, como foi abordado, não há conhecimento desinteressado e neutro, por outro, o afastamento ou o estranhamento metodológico para com o tema e objeto de estudo é condição sine qua non para não se aceitar como um dado acabado as respostas do chamado senso comum. Sem esse estranhamento não haveria pesquisa, como forma de clarificar novas questões que até então poderiam estar submersas no ambiente social pesquisado, mas um chancelamento de opiniões e “verdades” já instituídas. Neste sentido, Bourdieu (2002:37) argumenta que seria necessário abordar o espaço social do qual está se tratando como resultado de uma conformação sócio-histórica produto do trabalho coletivo de construção da realidade social. Essa perspectiva metodológica dar-se-ia com a intenção da desnaturalização de pré-noções a partir de um processo de construção da história social da emergência desses problemas e de sua constituição progressiva, sendo os critérios da dúvida e da interrogação um caminho para desnudar verdades constituídas.

Nessa direção, Castoriadis (1999:135) considera que tanto a dúvida e a interrogação seriam pressupostos que pré-disporiam os indivíduos em busca da ressignificação do mundo social, sendo componentes integrantes do processo de conhecimento e desvendamento das questões de pesquisa para a produção do “novo conhecimento”. Para o referido autor, este processo de busca pelo “novo” relacionar-se-ia fundamentalmente com paixão, definida como dedicação total do sujeito a seu objeto em busca do ancoramento “da verdade” sob novas bases, sem o qual seria o aniquilamento de sua própria psique e lugar do caos. No entanto, a paixão pela busca “da verdade” não poderia ser confundida pela paixão aos seus resultados, neles fixando-se; por mais que isso freqüentemente ocorra, constituindo as raízes dos dogmas e dos fanatismos no domínio do conhecimento. Nesse sentido, o investimento que transformaria “a verdade” em objeto seguido pelo apego às suas respostas seria contraditório com o motivo e o motor inicial da pesquisa dessa “verdade”. Dessa forma, o deslocamento dos pressupostos iniciais (a dúvida e a interrogação), nas palavras do próprio autor, “(...) só pode[ria] levar à interrupção do movimento da interrogação, impedindo esse último de voltar- se para seus resultados e, ainda menos, para os postulados que tornaram esses resultados possíveis” (p. 236). Assim, o conhecimento gerado poderia tornar-se autoritário por sacralizar dogmas e crer em sua superioridade, como são, aliás, todos os tipos de fundamentalismos. Portanto, no contexto que se está tratando a paixão, essa é considerada parte integrante desta pesquisa como busca e como atividade examinante, sem a qual, talvez, pouco esforço seria dedicado para o devido afastamento e estranhamento para com o objeto de estudo.

Segundo Castoriadis (1999) essa compreensão sobre o processo de pesquisa imporia uma idéia “de verdade” como relação aberta de uma interrogação e seus resultados, como movimentos sui gênesis indo e vindo entre processos e estações, entre escavação e encontro.

Dessa forma, os indivíduos (pesquisador e pesquisados) teriam que ser considerados como sujeitos sócio-históricos propensos ao condicionamento e, ao mesmo tempo, predispostos à invenção ou imaginação a partir de suas ações e reações às diferentes experiências vivenciadas no contexto da sociedade, que exigem atribuição de sentidos ou pelo menos de dúvida e questionamento. Esse princípio levaria considerar a possibilidade da existência de diferentes realidades e, portanto, representações sobre o mundo natural e social, uma vez que a mediação entre indivíduo e a ambiência seria dada pela cultura, de uma forma geral, como resultado do trabalho humano numa dimensão sócio-histórica. Nessa direção, Moreira (2004:09) argumenta que seria impossível o conhecimento absoluto da natureza em si, justamente por que o seu conhecimento seria uma interpretação cultural, social, nunca um conhecimento da natureza em si, onde, portanto, o princípio da incerteza e da indeterminação necessitaria ser considerado como parte da realidade. Para esse autor, em sociedades complexas e multiculturais co-existiriam várias realidades a depender das crenças que fundam estas realidades sócio-históricas, que podem ou não ser colocadas sob questão ou dúvida, dependendo das circunstâncias vividas pelos indivíduos. Contudo, o efeito da interrogação romperia com o estado de satisfação e a não-satisfação apareceria como não-sentido, como o fim da tranqüilidade psíquica. Nas palavras de Castoriadis (1999:148):

Em sua primeira forma, a interrogação é um momento da luta da psique para sair da ausência de sentido e da angústia que essa faz surgir (...). A esta angústia responde a busca de domínio, como domínio do sentido (...). A busca do sentido é busca de pôr em relação toda uma poeira de elementos que se apresenta, ligada com o prazer proveniente da restauração mais ou menos bem-sucessida da integridade do fluxo psíquico: coalescência restabelecida da representação, do desejo e do afeto.

Com efeito, a análise que o pesquisador realiza pode tornar-se uma “nova” representação social, quando movido pela interrogação e pela paixão que procurou reorganizar aquela “poeira de elementos”, sobre as representações que os indivíduos e a bibliografia pesquisada possuem, desenvolvidas em ambiências específicas. Dessa forma, para compreender as lógicas específicas das práticas relacionadas com a formulação do objeto de pesquisa aqui em foco seria preciso buscar a origem de suas razões na própria história relacionada com os microcosmos sociais específicos nos quais os agentes viveram, vivem e pretendem viver num devir. Ou seja, a partir do conjunto de experiências vividas e herdadas numa dada posição social dentro da sociedade. Poder-se-ia afirmar, que esta situação é tanto definidora das práticas dos agricultores-assentados que se deseja estudar quanto das práticas de pesquisa ou inquietações do indivíduo pesquisador que “olha” aquela comunidade com determinado objetivo e respectivo instrumental teórico.

Levando em consideração essa abordagem seria lícito afirmar ser impossível ao cientista despir-se de suas subjetividades a modo de assepsia mental para daí reconstruir a partir da análise uma determinada realidade. Nesse sentido, o produto da pesquisa e a trajetória do pesquisador seriam ‘lados inseparáveis da mesma moeda’, ao mesmo tempo em que algum nível de engajamento seria inevitável. Isso não contradiz o papel de desvendar as interrogações postas sobre o objeto de pesquisa, mas rompe com uma arrogância de achar que a ciência possa carregar a verdade absoluta e abre a possibilidade de considerar impasses teórico-metodológicos inerentes ao momento ao qual está situado o indivíduo pesquisador. Contudo, como já foi abordado, o distanciamento e o estranhamento para com o objeto são fundamentais para não se chancelar e aceitar como dadas as pré-noções, que apresentam uma sócio-historicidade em que são construídas. Essa sócio-historicidade estar-se-á buscando objetivar durante o texto da dissertação.

A seguir são apresentados alguns aspectos da trajetória do pesquisador considerados importantes para a escolha do objeto de pesquisa e às opções realizadas durante esse estudo.

Nesta seção será usando pronome pessoal de tratamento na primeira pessoa do singular, pois não teria sentido usar pronomes impessoais nessa descrição.

No documento Download/Open (páginas 30-33)