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2 A VIRGEM NO ROCHEDO

4.5 O oficial fim da solidão

A ilegalidade é perigosa e complicada. Requerer paciência, sagacidade, viveza e um espírito sempre alerta. Não é fácil manter íntegros os cuidados que ela exige. Difícil é preservá-la do desleixo, natural com o correr do tempo e o aumento insensível da sensação de segurança. De começo exageram-se as precauções, mas, pouco a pouco, vão elas sendo abandonadas, uma a uma. A ilegalidade vai perdendo seu caráter, despe-se de seu manto de mistério e, de repente, o segredo de todos ignorado é notícia na boca do mundo. Foi sem dúvida o que ocorreu com Glória e Josué (AMADO, 2012, p. 296).

Para uns, tratava-se de um xodó; para outros, um rabicho; havia quem dissesse que se tratava de uma paixão, um amor..., mas, independente da cultura ou da boa vontade de quem comentava, a verdade é que o caso da mulata manceba do coronel Coriolano com o professor do colégio de Enoch era fato conhecido de toda Ilhéus.

Inicialmente, todos os cuidados pareciam insuficientes a Josué e, sobretudo, a Glória. Ela explicara ao professor as suas profundas e respeitáveis razões para manter o povo de Ilhéus e, em especial, o coronel Coriolano Ribeiro na ignorância do romance: “Primeiro, devido ao pouco recomendável passado de violências do fazendeiro. Ciumento, não perdoava traição de rapariga. Se lhe pagava luxo de rainha, exigia direitos exclusivos sobre seus favores” (AMADO, 2012, p. 296). Glória não queria arriscar ter um triste destino como o de Chiquinha, tampouco expor Josué ao que passara Juca Viana. “Segundo, porque não queria perder, com os cabelos e a vergonha, o conforto da casa esplêndida, da conta na loja e no armazém, da empregada para todo serviço, dos perfumes, do dinheiro guardado a chave na gaveta” (AMADO, 2012, p. 296).

Note-se, uma vez mais, que Glória não era realmente uma vítima. Se ela estava naquela condição, estava porque assim o queria. Josué poderia representar uma mudança de vida: poderia casar-se com ela, dar-lhe seu sobrenome. Mas de que adiantaria ter um sobrenome na miséria? Glória preferia ser rapariga, viver na solidão e no rechaço social, mas rodeada de luxos, comida farta, boa casa, empregada etc.

O plano era: Josué somente entrava em sua casa quando o último notívago houvesse se recolhido e sairia sempre antes do primeiro madrugador haver se levantado. Tinha também de desconhecê-la por completo fora dessas horas “quando, com ardor e voracidade, vingavam-se, no leito a ranger, de tais limitações” (AMADO, 2012, p. 296).

Foram felizes em seu plano uma semana, quinze dias, depois começaram os descuidos, a falta de vigilância e de atenção. Começou com Josué entrando na casa de Glória com o Bar Vesúvio ainda cheio, depois, esticando o sono, chegou a sair do leito de Glória diretamente para o colégio, a ditar classes... confidenciou algo a Ari Santos ontem, a Nhô-Galo hoje... segredo murmurado ontem a Nacib, a João Fulgêncio hoje. Não demorou para que a história se espalhasse.

E não fora apenas ele o indiscreto e imprudente. Começara Glória também a passear pela praça, abandonando sua janela solitária, para ver Josué mais de perto, sentado no bar e sorrir para ele. Comprara gravatas, meias, camisas e até cuecas de homem nas lojas. Levara ao alfaiate mais careiro da cidade uma roupa puída de Josué para que o mestre lhe costurasse outra, de casimira azul – surpresa de aniversário. Fora aplaudi-lo no salão nobre da intendência, quando se apresentava como conferencista. Começara a frequentar aos domingos, em súbito devotamento à literatura, o Grêmio Rui Barbosa – única mulher entre seis gatos- pingados.

Todavia, “com tantas novidades e acontecimentos em Ilhéus, aquela 'devassidão' (como dizia Doroteia) já não constituía escândalo” (AMADO, 2012, p. 297). Por exemplo, com a morte de Ramiro Bastos, queria-se saber quem seria o novo líder político da região; especulava-se um projeto de casamento entre Jerusa – a filha do dr. Alfredo Bastos – e Berto – filho do coronel Amâncio Leal – como forma de união das famílias. Note-se que a moça de família, nesse período, poderia representar uma moeda de troca dentro de uma dada lógica política constituída.

Com assuntos assim empolgantes, como iriam os ilheenses interessar-se pelo caso de Glória e Josué a prolongar-se há meses sem incidentes? Só mesmo as solteironas, invejosas agora do constante júbilo estampado no rosto de Glória, ainda lhe dedicavam seus comentários (AMADO, 2012, p. 298).

Precisava que algum acontecimento extraordinário com o casal de amantes ocorresse para quebrar sua feliz monotonia e despertasse novamente as atenções do povo de Ilhéus. “Se Coriolano viesse a saber e fizesse uma das suas, aí, sim, valeria a pena” retomar os comentários (AMADO, 2012, p. 298). Seria divertido.

O problema é que não foi divertido...

Certa noite, por volta das dez horas – relativamente cedo –, Josué já havia cruzado a porta de Glória há mais de uma hora. Coriolano Ribeiro aparecera na praça, dirigira-se diretamente a casa da manceba. Houve um ranger de cadeiras e mesas entre os presentes no Bar Vesúvio. “Coriolano metia a chave na porta, a agitação crescia no bar, Nacib andou para a porta do largo passeio. Ficaram atentos, à espera de gritos, talvez tiros. Não houve nada disso. Da casa de Glória não chegava nenhum rumor” (AMADO, 2012, p. 298).

Depois de alguns minutos demorados, saiu pela porta, de braços dados, Glória e Josué, andando pela avenida da praia, para evitar a passagem frente ao Bar Vesúvio, ainda movimentado naquela hora. Um pouco depois, a empregada apareceu trazendo e arrumando no passeio os baús e malas de Glória. Depois veio um carregador para apanhar as malas.

Sem tiros, sem espancamentos, sem espetáculo. Coriolano Ribeiro apenas mandou Glória embora... por que agira de tal forma? Reflexos da idade avançada, do cansaço gerado pela velhice? Ou se trata de um reflexo dos novos tempos, da nova cultura que minava os velhos hábitos do povo daquela terra? Como saber? A verdade é que já não procurou mais saber se era ou não enganado por suas amantes. Assim, até Nacib se deitara com a nova cabrocha trazida da roça, a morar na casa da praça.

Já Glória, juntou-se com Ribeirinho – o coronel cujas as histórias puseram medo em Anabela que fugiu. Ele montou-lhe uma casa próxima à estação de trem. Vivia sempre junto com Josué, “por vezes, até comiam os três no restaurante, davam-se bem” (AMADO, 2012, p. 317). E, assim, a rapariga Glória passou a viver feliz, do jeito que tanto sonhara: com o dinheiro de coronel e com amor do professor, em perfeita harmonia.

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