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5 UMA MULHER SEM EXPLICAÇÃO

5.4 Uma confusão de sentimentos

Após o almoço, sentado à sombra da árvore, dormia Nacib. Aquela meia hora de sono, embalado pela brisa do mar, “afrontado pelas iguarias gulosamente devoradas, o inigualável tempero de Gabriela” (AMADO, 2012, p. 148), era uma das delícias de sua vida.

A princípio, não dera muita importância nem à qualidade da comida nem ao corpo de Gabriela naquelas noites ardentes. Só lhes dera o devido valor quando a frequência no bar começou a crescer e foi preciso aumentar o número de salgados e doces, “quando sucederam- se unânimes os elogios e Plínio Araçá, cujos métodos comerciais eram dos mais discutíveis, mandou fazer uma oferta à Gabriela” (AMADO, 2012, p. 149).

Quanto ao corpo e “aquele fogo de amor a consumi-la no leito, aquela loucura de noites atravessadas insones” (AMADO, 2012, p. 149), foi-se, insensivelmente, prendendo-se a eles. No começo, ia procurá-la somente em algumas noites, quando não estava cansado e com sono e Risoleta estava ocupada ou doente. Somente nesses casos “decidia deitar-se com ela, à falta de outra coisa a fazer” (AMADO, 2012, p. 149).

Mas essa displicência durara pouco. Rapidamente se habituara à comida de Gabriela a um ponto “que, convidado a jantar com Nhô-Galo no dia de seu aniversário, mal provara os

pratos, sentindo a diferença na finura do tempero” (AMADO, 2012, p. 149-150). Sem perceber, fora aumentando também a frequência no quarto do quintal, esquecendo Risoleta, passando a não suportar mais seus carinhos representados, suas manhas, seus queixumes e mesmo aquela “ciência do amor” (AMADO, 2012, p. 150) que usava para lhe arrancar dinheiro. Terminou por não mais procurá-la, não responder seus bilhetes, e desde então, há quase dois meses, não tinha outra mulher senão Gabriela. Agora “arribava todas as noites em seu quarto, procurando sair do bar o mais cedo possível” (AMADO, 2012, p. 150).

Tempo bom, de vida alegre: boa comida, casa arrumada, roupa lavada, mulher bonita e quente na cama. “No rol das virtudes de Gabriela, mentalmente estabelecido por Nacib na hora da sesta, contavam-se o amor ao trabalho e o senso de economia” (AMADO, 2012, p. 150) . Não lhe pedia nada, não lhe cobrava presentes, dinheiro, perfumes ou joias – como o fazia Risoleta. Dava-lhe, porque queria, um brinco para as orelhas, um broche de dez tostões para o peito, cortes de fazenda vagabunda, um par de chinelos, lembranças baratas, algumas nem lhe custavam nada, trazia da loja do tio. “Entregava-lhe à noite, ela enternecia-se, agradecia-lhe humilde, beijando-lhe a palma da mão num gesto quase oriental” (AMADO, 2012, p. 151). Era uma mulher perfeita à sua gula, à sua macheza e, especialmente, à sua mesquinharia.

Nesse ponto, a diferença de Gabriela às demais mulheres da narrativa começa a se destacar: Sinhazinha e Malvina, assim como as demais mulheres de família, eram luxuosas, bem vestidas, perfumadas, viviam em palacetes, como se pode atestar em várias passagens do texto; por sua vez, Glória vivia rodeada em luxos oferecidos por Coriolano Ribeiro – perfumes, empregada, boa casa, boas roupas, comida farta. A esses luxos estava presa, independentemente do coronel e dos favores sexuais a que tinha de servi-lhe. Gabriela, por sua vez, era uma mulher humilde, que nada cobrava em troca de sexo ou de amor. Se o fazia, fazia por vontade, por desejo, por puro instinto pessoal particular.

De volta à história, a presença de Gabriela todos os dias no bar para entregar a Nacib o almoço e os doces e salgados para vender começara a tornar-se um atrativo à freguesia masculina. Nacib não se importara a princípio: “Como ia se importar se a presença dela era mais uma atração para a freguesia? [...] Afinal que lhe importava se era ela apenas sua cozinheira, com quem dormia sem nenhum compromisso” (AMADO, 2012, p. 150).

Gabriela, na hora do almoço, os chinelos arrastando-se no chão, os cabelos amarrados com uma fita, o rosto sem pintura, as ancas a dançar...

Afirma Falci (2006, p. 241) que existe uma dificuldade muito grande em se saber mais a respeito de mulheres sertanejas pobres e livres como Gabriela. Não deixaram inventários,

nem registros escritos de suas vidas – porque, em sua maioria, eram analfabetas. O retrato de Gabriela talvez ajude a ilustrar um pouco esse vácuo na história da mulher no Brasil; através de sua imagem, podemos saber um pouco mais como eram, pensavam e se comportavam as sertanejas pobres do nordeste brasileiro.

Retomando a história... na hora de ir ao bar entregar o almoço de Nacib era sua hora de passeio... e como gostava de atravessar as ruas, sob o sol, com a marmita na mão! Como gostava de andar entre as mesas, de ouvir as palavras, de sentir os olhos carregados de intenções – menos dos velhos! Nem das propostas de casa montada feitas por coronéis.

Gostava de ser olhada e de se sentir festejada e desejada. “Era como uma preparação para a noite, deixava-a como que envolta numa aura de desejo, e nos braços de Nacib ela revia os moços bonitos: seu Tonico, seu Josué, seu Ari, seu Epaminondas, caixeiro de loja. [...]” (AMADO, 2012, p. 182).

Com isso, podemos compreender um pouco mais a respeito da personalidade de Gabriela e sua diferença em relação às demais mulheres da trama: primeiro, o fato de Gabriela deitar-se com homem fora do casamento e não ver nenhum problema nisso a diferencia completamente de mulheres como Malvina, Sinhazinha, Iracema, Celestina, das solteironas ou das demais esposas como dona Olga ou a mulher do dr. Demósthenes; segundo, marca-se também sua diferença em relação à Glória, posto que ela não estava interessada em homens ricos e velhos; sexo para Gabriela deveria ser motivado pelo desejo, por sentimento, pelo querer e não pelos interesses.

Note-se, também, a questão da liberdade de ir e vir de Gabriela. Conforme dito nos capítulos anteriores, era comum impor-se às mulheres sua reclusão no ambiente do lar, imposição essa levada a cabo inclusive por Coriolano em relação à sua rapariga Glória. Gabriela, uma vez que livre de qualquer laço de relacionamento com Nacib ou respeito para com a honra e o nome de sua família – Gabriela sequer tinha sobrenome – tinha a liberdade de ir e vir, de flertar com diferentes homens, de usar roupas despojadas. No entanto, é importante salientar que essa liberdade de Gabriela não a aproximava da condição de prostituta. Não era Gabriela uma prostituta. Era uma mulher do povo, cozinheira, livre em seu modo de ser e de pensar, alheia ao conjunto moral que impunha uma série de regras às mulheres da época.

Andando por entre as mesas, um lhe dizia um galanteio, outro lhe fitava com olhos súplices, o Doutor batia-lhe palminhas na mão, chamando-a de minha menina. “Ela sorria para uns e outros, parecia uma criança não fossem as ancas soltas. Uma súbita animação percorria o bar, como se a presença de Gabriela o tornasse mais acolhedor e íntimo”

(AMADO, 2012, p. 141). Por baixo do balcão, Nacib a beliscava, passava a mão sob as saias, tocava-lhe os peitos. Gabriela ria, era gostoso.

Mas, com o passar do tempo, começara Nacib a se atentar para o perigo que representava essas idas dela ao Vesúvio: os galanteios masculinos; as propostas de trabalho, de bons salários; as propostas do juiz de casa montada, dos coronéis de plantações de cacau, dinheiro e boa vida. Alegrara-se, a princípio,

[...] interessado nos vinténs a mais das rodadas repetidas, sem pensar no perigo dessa tentação diariamente renovada. Impedi-la de vir não devia fazê-lo, deixaria de ganhar dinheiro. Mas era preciso trazê-la de olho, dar-lhe mais atenção, comprar-lhe um presente melhor, fazer-lhe promessas de novo aumento (AMADO, 2012, p. 151).

Essa era, por certo, uma tentativa de Nacib de tentar lidar com Gabriela, julgando-a conforme os esquemas que já havia apreendido em relação às demais mulheres. Entendia Nacib que Gabriela, uma vez mulher pobre, do povo, deveria ser tão interesseira quanto Risoleta ou Glória, por exemplo, dominável através de bens materiais. Não entendia que, embora recebesse propostas das mais tentadoras, os anseios de Gabriela passavam longe de necessidades desse tipo.

A verdade é que sentia medo de perdê-la, de a qualquer momento ela ceder à pressão e à tentação de uma daquelas propostas e deixá-lo. Como viver sem Gabriela?

Mas o que sentia por ela? A verdade é que “[...] jamais poderia querer assim, tanto desejar, tanto necessitar sem falta, urgente, permanentemente, uma outra mulher, por mais branca que fosse, mais bem-vestida e bem tratada, mais rica ou bem casada” (AMADO, 2012, p. 152). Note-se aí quais os requisitos que deveriam uma mulher preencher para habilitar-se à conquista de um homem.

Mas o que realmente sentia por Gabriela? Não era ela uma simples cozinheira, mulata bonita, cor de canela, com quem deitava por desfastio? Ou será que não era tão simples assim?

Paixão… Amor… Lutara contra aquelas palavras durante dias e dias, a pensar na hora da sesta. Não querendo medir a extensão dos seus sentimentos, não querendo encarar de face a realidade das coisas. Pensava ser um xodó, mais forte que os

outros, mais longo de passar” (AMADO, 2012, p. 179).

Por que não queria amá-la? Por que não aceitava admitir a paixão que já sentia por Gabriela? A resposta era simples: por ser “cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço, encontrada no 'mercado de escravos'” (AMADO, 2012, p. 180). Em outras palavras, não era virgem, requisito fundamental às moças casadoiras da época, era

pobre, sem nome, sem herança... não tinha os refinamentos de moças como Malvina, não tinha coqueirais como Sinhazinha, tampouco um nome de família como Jerusa. Não servia para casar.

Embora considerasse isso, não podia negar que tinha um tenebroso medo de perdê-la. Começara por dar-lhe presentes, um, dois por semana:

Cortes para vestidos, frascos de perfume, lenços para a cabeça, caramelos do bar. Mas que valia tudo aquilo ante as propostas de casa montada, de vida de luxo, sem ter de trabalhar, uma vida como a de Glória gastando nas lojas, vestindo-se melhor que muita senhora casada com marido rico? Era preciso oferecer-lhe algo superior, alguma coisa maior, capaz de tornar irrisória as ofertas do juiz, de Manuel das

Onças, agora também de Ribeirinho, subitamente sem Anabela” (AMADO, 2012, p.

180).

Nacib, assim como Clemente, não conseguia compreender que para Gabriela nada disso fazia diferença – nem a riqueza, muito menos o casamento. E foi assim pensando que chegou à ideia de casamento. Note-se que ele não pensou, por certo, em Gabriela, no que ela queria, pensava ou sentia; pensou apenas em si e em seus próprios sentimentos, em seu desejo de posse, em seu ciúme desmedido. Foi egoísta – e, talvez, esse egoísmo tenha sido o real motivo de perdê-la futuramente. Nacib, sem dúvida, subjugava Gabriela: uma vez que mulher, mulata, analfabeta, retirante, pobre, ela não teria, a seu ver, consciência suficiente para decidir sobre sua própria vida. Ele nunca conseguiu (nem se interessou por) entender as coisas sob o ponto de vista de Gabriela.

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