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O PÓS-GUERRA, A RECONSTRUÇÃO E O NOVO FUTURO

3 A CIÊNCIA DA PRESSA: O DESENVOLVIMENTO COMO PROPULSOR DE UMA NOVA ECONOMIA

3.1 O PÓS-GUERRA, A RECONSTRUÇÃO E O NOVO FUTURO

O surgimento da Teoria do Desenvolvimento como área de estudo da Economia remete aos anos 1940, já ao final da Segunda Guerra Mundial. O ponto de partida usualmente associado a essa corrente é a publicação de artigos pelo economista polonês Paul Rosenstein-Rodan, no britânico The Economic Journal, em especial o texto Problems of Industrialisation of Eastern and South-Eastern Europe, em 194317. Nele, Rosenstein-Rodan defende que a industrialização dos países do leste europeu era de interesse não só deles próprios, mas de todas as outras nações, pois seria uma forma de atenuar as disparidades entre os níveis de vida de cada uma delas, e, desse modo, evitar futuros conflitos. Para tal, rechaçou a possibilidade de implantação do “modelo russo” (industrialização voltada para a autossuficiência e certo isolamento econômico) nesses países, ressaltando que a cooperação daqueles já industrializados nesse processo seria imprescindível, pois só desse modo a inserção dos países do leste na economia mundial seria benéfica para todos, vindo a resolver sérios problemas internos - em particular, a excedente mão-de-obra agrícola, a qual, presa ao campo, contribuía para a baixa produtividade das economias nacionais. A liberação dessa mão-de-obra viria através da inserção de capital no trabalho, ou seja, industrialização (ROSENSTEIN-RODAN, 1943, p. 202-203).

16 Gordon foi embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 1961 e 1966, sendo um dos principais articuladores

do golpe militar de 1964.

17 Isso não quer dizer que economistas anteriores não tenham se atido ao problema do desenvolvimento, mas sim

que o jeito de tratar desta questão foi novo. O exemplo mais claro é do austríaco Joseph Schumpeter, analisado mais adiante.

O fato da Teoria do Desenvolvimento, no momento que surge, estar atrelada ao leste europeu, já demonstra uma preocupação que estará em sua essência nos anos posteriores: sua relação com países “atrasados” e desfavorecidos pela conjuntura geopolítica. Após o economista polonês, muitos outros atentaram-se para o problema das áreas mais pobres, geralmente dentro do mesmo ideal de tornar o mundo mais equitativo e, como corolário, mais pacífico. O sueco Gunnar Myrdal foi outro expoente desse movimento, a partir de seu papel de destaque de secretário-executivo da Comissão Econômica para a Europa (ECE, na sigla em inglês), órgão das Nações Unidas responsável por planejar a reconstrução do continente no pós- guerra18. Muito antes de Rosenstein-Rodan e do próprio Keynes, inclusive, Myrdal já havia atentado para historicidade das leis econômicas, criticando o que via como, na Economia, uma tentativa permanente de encobrir os conflitos de interesse, mascarando os pressupostos científicos como neutros (MYRDAL, 1984 [1930], p. 161). Para ele, as velhas teorias não estavam preparadas para lidar com o problema do subdesenvolvimento, sendo necessárias outras abordagens para o problema (idem, 1960, p. 190), defendendo que o economista sempre deveria ter a obrigação de levar em conta aspectos não-econômicos e aprender a enxergar outras nuances, o que demandava, na verdade, uma outra estruturação da ciência em si: “Para tanto, é preciso que nos libertemos do obstáculo e de preferências preconcebidas e inadequadas, das concepções irreais e irrelevantes que, em nossa tradição acadêmica, carregamos com pesada tara” (ibidem, p. 198).

Nesse contexto, pensar o desenvolvimento estava intimamente ligado a teorizar sobre novos pressupostos científicos, o que acarretava uma discussão epistemológica permanente a fim de definir este novo olhar sobre o “saber racional”. Desse modo, esses novos cientistas do desenvolvimento colocavam-se na linha de frente contra as teorias clássicas ortodoxas e suas implicações. É fácil, neste ponto, perceber o porquê de seu modelo de investigação científica prezar pela observação das condições práticas e formulação de teorias a partir das mesmas - para eles, esse era um modo claro de contraposição ao método liberal, tido como primordialmente hipotético-dedutivo, ou mesmo ao método marxista, de aproximações sucessivas19. A teoria clássica do comércio internacional, uma das grandes receptoras de críticas daqueles em prol de um desenvolvimento planejado, é um exemplo disso: tirada, principalmente, dos estudos do inglês David Ricardo, essa teoria tinha como base uma situação hipotética de comércio entre Inglaterra e Portugal, concernindo troca de tecidos daquele país

18 Myrdal permaneceu neste cargo entre 1947 e 1957.

19 Neste método de aproximações sucessivas, imagina-se uma situação totalmente hipotética e simplista e, aos

por vinhos deste. A situação é livremente inspirada no Tratado de Methuen, firmado entre os dois países um século antes, e que garantia o mercado inglês para os vinhos portugueses, desde que estes se comprometessem a importar os tecidos britânicos. Tal tratado é tido, geralmente, como negativo para o país ibérico, por ter limitado sua capacidade de industrialização e diversificação econômica, forçando-o a especializar-se numa produção com poucas oportunidades de modernização e germinação.

Na hipótese gerada por Ricardo, porém, esse problema não existe: imagina-se que a Inglaterra consiga produzir tecidos com o trabalho de 100 homens por ano, enquanto, para produzir vinho, necessite 120. No caso de Portugal, as cifras seriam 90 homens, para tecidos, e 80, para vinhos. Embora consiga produzir os tecidos com menos trabalho do que a Inglaterra, ainda seria vantajoso para os portugueses trocarem seus vinhos pelos tecidos britânicos, pois, investindo seu capital nas vinícolas, conseguiriam um retorno maior para importar os tecidos britânicos do que se simplesmente divergissem esse capital para a produção têxtil interna. Estava feita a justificativa para um acordo de comércio entre esses dois países e o consequente crescimento dessas produções em cada um. O corolário dessa teoria, conhecido como Lei das Vantagens Comparativas, foi a justificativa científica necessária para permitir que os mais diferentes países se especializassem em produções das mais diversas - como o café, no caso brasileiro. As consequências são conhecidas.

Dentro dessa perspectiva, a industrialização dos países agroexportadores era tida como dispensável. Os produtos industrializados, por serem advindos de um processo com maior produtividade, tornariam-se gradativamente mais baratos em relação aos primários, fazendo com que o poder de compra dos países agrários só aumentasse, transferindo para eles próprios os ganhos da modernização dos outros. Ora, a negação de tal princípio foi uma das grandes frentes dos economistas do desenvolvimento, com o advento da teoria da deterioração dos termos de câmbio, atribuída a Raúl Prebisch e Hans Singer20. Estudando dados de comércio exterior da América Latina, ambos chegaram à conclusão de que a capacidade de importar dos países agrários, ao contrário da previsão liberal, estava diminuindo. O preço dos produtos manufaturados não apresentava tendência à queda pelo fato de que a renda dos empresários industriais nos países desenvolvidos aumentava mais do que a produtividade, não permitindo o barateamento da mercadoria final. Nos países agrários, o inverso acontecia, o que acabava diminuindo o poder de compra das matérias-primas. Em resumo: “enquanto os centros retiveram integralmente o fruto do progresso técnico de sua indústria, os países da periferia

20 A autoria dessa tese é um pouco polêmica, mas geralmente aceita-se que ambos chegaram à mesma conclusão

transferiram a eles parte do fruto de seu próprio progresso técnico” (PREBISCH, op. cit., p. 104). A situação certamente era agravada pelo fato da elasticidade-renda21 dos produtos primários ser pífia, o que tornava o comércio exterior um grande ponto de estrangulamento da economia desses países.

Identificado o problema e suas imbricações no subdesenvolvimento de várias nações, a solução - o desenvolvimento planejado - também não podia deixar de ir de encontro aos preceitos ortodoxos. Ora, estudar o desenvolvimento tinha, como um dos motivos, saber como criá-lo - para tal, era necessário, obviamente, acreditar que ele poderia ser gerado propositadamente, e não por simples espontaneidade do sistema econômico. Os liberais clássicos acreditavam que o progresso seria um mecanismo natural que atingiria todas as nações, mais cedo ou mais tarde, levando-as a um chamado estado estacionário que seria o ápice civilizatório, em que todas as variáveis cessariam de crescer. Quaisquer intervenções do Estado fora das usuais seriam desvirtuações desse caminho, atrasando o caminhar da sociedade. Durante o século XX, os liberais também passaram a ver a intervenção como risco de implantação de um regime comunista, o que, para eles, seria a decadência final de qualquer racionalidade econômica. Dentro de seu raciocínio - ainda bastante hipotético, por sinal -, a mínima ação estatal na direção do gerenciamento da economia levaria, numa cascata de acontecimentos, à implantação de uma sociedade socialista: “ou capitalismo ou socialismo, não há meio-termo” (MISES, 1977, p. 25). O liberalismo e a instituição da propriedade privada eram vistos como os meios mais corretos e racionais dentro da Economia: “É uma aplicação dos princípios da ciência à vida social do homem” (ibidem, p. 61).

Estava bem claro que a luta pelo desenvolvimento planejado se dava também no terreno da disputa pela verdade científica. Desmontar o suporte liberal era uma ação necessária para procurar estabelecer uma outra espécie de saber acadêmico e, desse modo, ganhar legitimidade em direção a políticas governamentais. Muitos modelos foram criados e imaginados para se pôr em prática o que se achava ser a coisa mais humanista a se fazer: a industrialização dos países agrários a fim de diminuir as diferenças globais. Dentre estes modelos, alguns ganharam maior notoriedade.

A ideia de big push, do próprio Rosenstein-Rodan e do estoniano Ragnar Nurkse, foi uma das mais debatidas do período. De acordo com este esquema, os países subdesenvolvidos estavam num ciclo vicioso: sua pobreza acabaria gerando mais pobreza, pois impregnara-se em

21 Conceito que trata quanto o preço de um determinado produto pode variar quando a renda dos consumidores

varia. No caso dos produtos primários, o aumento da renda dos países ricos não se traduzia, na mesma proporção, em maior procura por estes produtos - ninguém consome dez vezes mais bananas porque está dez vezes mais rico.

todos os ramos produtivos de suas economias. Para quebrar esse ciclo, apenas um esforço gigantesco e simultâneo, “atacando” várias indústrias ao mesmo tempo, em várias áreas, a fim de dar o empurrão necessário para fazer a economia crescer por si só. Tal crescimento havia de ser equilibrado: “A produtividade técnica e física do capital somente pode ser realizada, em termos econômicos, por meio de um crescimento equilibrado, de uma ampliação conjunta do tamanho do mercado” (NURKSE, 1951, p. 31). Não chegava, porém, a ser uma nova versão do equilíbrio estático do liberalismo, que baseava-se no preceito da soma-zero entre as operações econômicas num determinado sistema. Como resumia Rosenstein-Rodan, o equilíbrio estático significava que o total de investimentos seria zero, não gerando crescimento per si. A necessidade de injeções de capital em várias áreas se dava pela consequente diminuição dos riscos em se investir em apenas um ramo, e ver o crescimento parar pela pequenez do restante (ROSENSTEIN-RODAN, 1957, p. 9).

A mística do desenvolvimento equilibrado, porém, foi descartada por muitos outros economistas, principalmente a partir das primeiras consequências das políticas desenvolvimentistas em muitos países. O austríaco Joseph Schumpeter, muitos anos antes, já havia ganho notoriedade pelas suas análises dos ciclos econômicos (grandemente utilizada por Nurkse, por sinal), os quais, para ele, eram a expressão essencial do desenvolvimento, o qual seria definido por “mudança espontânea e descontínua nos canais de fluxo, perturbação do equilíbrio, que altera e desloca para sempre o estado de equilíbrio previamente existente” (SCHUMPETER, 1982, p. 47). Essa mudança interna só seria possível com a figura do entrepreneur (empreendedor), que, para Schumpeter, não seria o simples capitalista, dono dos meios de produção, mas sim alguém que, por características psicológicas diferentes dos reles mortais, estaria mais inclinado a “inovar”, fazer combinações diferentes na produção e, assim, provocar o desequilíbrio pelo qual define-se o desenvolvimento. A “destruição criativa” pertencente ao capitalismo - os momentos de ciclo descendente - é o cerne dos saltos para frente vistos nas sociedades: o momento em que o equilíbrio velho é eliminado, a fim de dar espaço para outro, melhor. O alemão Albert Hirschman também foi um dos partidários da tese do desenvolvimento desequilibrado; para ele, manter as tensões e os desequilíbrios seria uma forma de manter a competição - e, portanto, a sobrevivência da criatividade - e o desenvolvimento. A figura do empreendedor (incluindo, dessa vez, o Estado) estaria presente em todos os estágios (BIANCHI, 2004). No Brasil, os economistas tiveram uma interpretação específica do desenvolvimento desequilibrado, como veremos mais adiante.

Obviamente, acreditar no desenvolvimento desequilibrado não significava ser menos rígido na técnica do planejamento, pelo contrário: deveria se saber muito bem onde e de que

maneira criar esse desequilíbrio, além de manejá-lo com o tempo. O planejamento, claro, não poderia começar sem antes se ter uma noção do comportamento econômico do país nos anos anteriores, como forma de traçar projeções e definir onde agir. Tal definição estava longe de ser fácil: além do rigor de cálculo, exigia metas bastante claras e saber certamente o que seria ou não essencial - por suposto, isso estava longe de ser uma ciência exata. Os planejadores lidavam com um dilema essencial: tentar atenuar, a curto prazo, problemas que só seriam totalmente resolvidos a médio e longo prazo, além de lidar com as questões levantadas pelo próprio processo de desenvolvimento. Era uma tarefa incessante, que representava, do ponto de vista científico, a emergência de uma consciência temporal diferente, que conseguia atentar também para o imediato, sem perder de vista a longa duração. Ora, os liberais eram usualmente criticados por só enxergarem as coisas a longo prazo, entendendo que a solução das crises seria deixá-las se esgotarem, não importando quanto tempo isso demorasse - nem as consequências suscitadas. De forma contundente, Keynes havia rechaçado esse princípio, com sua célebre frase: a longo prazo, estaremos todos mortos.

A solução para o subdesenvolvimento, porém, não era exatamente o remédio keynesiano (aumento dos gastos públicos e do consumo). Muitos economistas do período atentavam para o que chamavam de “efeito demonstração”, que, em linhas gerais, seria a imitação dos padrões de consumo norte-americanos por países que não tinham, ainda, aquele grau de diversidade econômica e muito menos de renda per capita. Isso fazia com que suas poupanças fossem diminutas e, portanto, o capital disponível para inversão também escasso, sendo este um grande problema a ser resolvido. Ora, fosse por um modelo de big push ou de desenvolvimento desequilibrado, não era necessário apenas um grande esforço intelectual, mas também grandes somas de dinheiro - o que não estava muito fácil de ser arranjado naquele momento. A diminuição do consumo de importados por meio de tarifas alfandegárias esbarrava em pressões políticas, pois a elite não queria ver seu estilo de vida mudado. A solução era um aumento ainda maior das exportações, a fim de financiar o processo industrializador e as importações ao mesmo tempo. Mesmo assim, as contas ainda não fechavam.

Desse modo, os economistas estrangeiros do desenvolvimento tinham um consenso de que o auxílio dos países ricos era primordial para colocar para frente o desenvolvimento dos mais pobres, fosse por meio de acordos, de seus próprios recursos, ou fosse por intermédio de instituições internacionais, como mais tarde foram o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial, entre outros. Ora, o que se buscava era a inserção dos países “atrasados” na economia mundial de maneira organizada, sem prejudicar seus respectivos processos industrializante, e isso só seria possível com a cooperação dos já

industrializados. Tal cooperação era pedida também pelos próprios economistas dos países subdesenvolvidos, embora em formas que, comumente, iam de encontro com as colocadas em prática pelos mais ricos. A ciência econômica, nos países subdesenvolvidos, não deixou de estruturar-se à sua maneira, sendo um polo de reivindicação importantíssimo para dentro e para fora.

3.2 OCUPAR ESPAÇOS: o mote do planejamento no brasil, os passos do desenvolvimentismo e as percepções da realidade

Alguns desses economistas estrangeiros vieram ao Brasil ou outros países “atrasados” em algum momento, principalmente para fazer palestras ou oferecer consultorias em pesquisas sobre a economia desses países: destaque para o curso dado por Nurkse no Rio de Janeiro, em 1951, o qual Celso Furtado relembrou da seguinte maneira

Os termos do debate [...] foram de alguma forma tumultuados com a visita do Prof. Ragnar Nurkse. [...] A vinda ao Brasil, que se transformara em um centro de debates sobre a problemática do desenvolvimento, deu a Nurkse a oportunidade de ordenar suas ideias sobre uma temática que o interessava desde os tempos da Liga das Nações. Conforme me disse na ocasião, “posto que esse assunto está entrando na moda, tratemos de ocupar espaço” [...] A importância das conferências de Nurkse foi considerável, dado que canalizavam as atenções para a problemática do subdesenvolvimento (FURTADO, 1985, p. 147-149)

Embora discordasse do enfoque de Nurkse sobre a questão do subdesenvolvimento22, Furtado soube reconhecer a importância desse e de outros episódios para o processo geral de tomada de consciência do problema, assim como a oportunidade de estruturar um campo científico novo, que então encontrava-se em plena ascensão: “se não existe uma teoria do desenvolvimento é que até recentemente inexistira preocupação com o tema” (ibidem, p. 150). Havia a sensação de que o momento estava chegando, e que era preciso, como disse Nurkse, “ocupar espaços”. Além dos economistas estrangeiros, a América Latina viu-se definitivamente dentro dos debates sobre Teoria do Desenvolvimento com o surgimento e expansão da Cepal, sendo a principal matriz política para este assunto em todo o continente (ver Capítulo 1).

Antes mesmo da Comissão, porém, alguns outros acontecimentos pontuais podem ser tidos como centrais para o desenrolar dessa problemática no campo científico brasileiro. O

22 Para Furtado, o modelo de big push de Nurkse prezava por um enfoque “schumpeteriano” de equilíbrio

estagnado, devido à sua ideia de ciclo vicioso da pobreza. Para o brasileiro, os países subdesenvolvidos não estavam estagnados, mas sim crescendo nas áreas erradas.

primeiro deles a ter grande relevância, talvez, seja a controvérsia entre Eugênio Gudin e Roberto Simonsen, ocorrida entre 1944 e 1945, já ao fim do Estado Novo. Mantega (1985) chega a citar esse embate como o momento em que primeiro toma corpo a desavença intervencionismo versus liberalismo, que daria o mote para todos os debates posteriores. Os personagens envolvidos, realmente, pareciam personificar os dois lados em luta: Gudin, engenheiro de formação e economista por profissão, adepto do liberalismo e historicamente ligado às multinacionais presentes no país23; e Simonsen, empresário do ramo de construção, alimentos, entre várias outras atividades, fundador da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI), e partidário do planejamento estatal como forma de fomentar o crescimento do empresariado industrial brasileiro. O ponto de partida para a controvérsia é a publicação de um parecer deste último, em 1944, pelo Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), no qual então trabalhava. No texto, Simonsen alertou para a carência em setores estratégicos, como combustíveis, transportes e energia, e para a necessidade de aumento da renda nacional para evitar intranquilidades sociais, num momento em que a Segunda Guerra chegava ao fim e havia de se preparar a economia para tempos de paz. Para isso, o remédio conhecido: planejamento estatal, que englobasse um processo industrializador, junto com a modernização da agricultura, criação de bancos e imigração de técnicos estrangeiros para o Brasil (SIMONSEN, 2010, p. 45).

Meses depois, já em 1945, Gudin, em relatório à Comissão de Planejamento Econômico (CPE), da qual, ironicamente, fazia parte, rechaçou os diagnósticos de Simonsen no texto original. Criticou o que denominava uma “crença mágica” na planificação, um certo misticismo que colocava no Estado a fé redentora de todos os males. O liberalismo havia sido e sempre seria a melhor solução, inclusive o único caminho que sustentaria a democracia plena, esnobando programas, na sua visão, falhos, como o New Deal norte-americano. O “problema” brasileiro seria o pleno emprego (!), estado no qual quaisquer obras estatais seriam desnecessárias e só gerariam demasiada inflação. A solução, pois, passava pelo campo monetário (GUDIN, 2010, p. 94). O embate continuou no decorrer daquele ano, com mais dois textos - um de cada - em que basicamente reiteraram suas respectivas visões, por vezes adotando