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O papel da linguagem no e sobre o trabalho

Cientes de que o agir do trabalhador tem sido transmitido de geração a geração, e que essa transmissão dá6se pela linguagem no e sobre o trabalho, para saber qual é a relação da linguagem com esse agir, consideremos as concepções a seguir, cuja apresentação é o propósito desta seção.

Como vimos, no início deste capítulo, desde a antiguidade, o homem, para sobreviver, teve de passar a viver em grupos e, no coletivo, desenvolver instrumentos para caçar e se alimentar. Para isso, precisou comunicar6se, daí, o surgimento da linguagem. Como podemos perceber, a linguagem, desde “sempre”, tem exercido um papel fundamental

na reconstrução de qualquer atividade, e o , por sua vez, constitui6se como evidência dessa prática de linguagem, que tem feito parte da espécie humana e que, além disso, tem assegurado a sua sobrevivência. É por meio da linguagem que o homem passa a regular e a controlar o trabalho; institui normas, regras, que passam a ser respeitadas.

Como podemos perceber, a atividade efetivamente realizada é fruto da organização pré6estabelecida por alguém, uma resposta às prescrições determinadas ao trabalhador. Segundo Saujat (2004a), as prescrições constituem o

sistema simbólico ao qual a ação individual deve se conectar; elas organizam as condições do reconhecimento e da confiança recíprocos dos membros do coletivo e, nesse sentido, elas são algo a mais do que um simples regulamento. De fato, essas regras não são feitas para punir; elas constituem o equilíbrio e a referência. Essas regras assumem uma função de limite estruturante, portanto, aquele que nunca respeita a regra não é aprovado. Quem desrespeita as regras simplesmente assume sua impotência diante dos conflitos e dificilmente pode se manter num coletivo, cujas regras devem ser respeitadas.

Segundo Amigues (2004a), as &' traduzem6se pela reorganização do meio de trabalho que, inevitavelmente, modificam os meios de cumprir as obrigações, e que o agente que provoca a mudança, põe uma idéia em movimento. As prescrições não devem ser vistas apenas como desencadeadoras das ações, mas também como constitutivas do trabalho.

Considerando que o trabalho é um domínio de construções já constituídas, o papel dos estudos da Ergonomia da Atividade e da Clínica da Atividade é intervir por meio de uma discussão conjunta com os trabalhadores para compreender e transformar as condições de trabalho. Para chegarmos a esse objetivo, precisamos saber antes o que significa “trabalho”. Segundo Amigues (2003), o trabalho se configura numa seqüência de ações, de gestos, de sucessivas buscas e tratamento de informações, de comunicações verbais ou gráficas e de identificação de incidentes. Enfim, o fazer significa a mobilização de representações mentais, de estratégias operatórias e de capacidades. Esse fazer, reafirmamos, é o que caracteriza a atividade efetivamente realizada pelo sujeito (Amigues, 2003).

Na realidade, os estudos desenvolvidos por essas duas linhas de pesquisa propiciam uma verbalização sobre o trabalho que não existia antes, entre os trabalhadores. Clot (2004b) explica que as equipes de trabalho até existem, mas não são coletivos de trabalho, pois não há uma história partilhada, não há um coletivo internalizado. Essa característica detectada é, em parte, herdada do taylorismo que implantou a divisão de tarefas, impedindo que o trabalhador tivesse uma visão do todo da atividade; por essa razão, as maneiras de agir de falar e de dizer são estabilizadas, o que leva o trabalhador a se proteger dele mesmo, a ser individualista. Essa percepção de solidão no trabalho é relacionada à amputação desse processo do coletivo agir sobre o gênero da atividade. Segundo Clot (2004b),

essas maneiras estabilizadas (o individualismo) protegem o trabalhador dele mesmo, ou seja, a linguagem na e sobre a atividade inexiste. Assim, a atividade estiliza o gênero e ele não pode ser transmitido diretamente, pois o gênero acontece na atividade e esta (a atividade) não pode ser observada.

Com o propósito de reverter a questão do individualismo no trabalho, a Clínica da Atividade, inspirada na abordagem histórico6cultural de Vygotsky, instiga a verbalização sobre o trabalho entre os trabalhadores por meio de procedimentos de intervenção como, por exemplo, a instrução ao sósia, a autoconfrontação simples ( ACS), a ACC (autoconfrontação cruzada), dentre outros.

É na verbalização sobre o trabalho que pode ocorrer a negociação sobre possibilidades de maneiras de fazer. A negociação dialética constante e contínua no coletivo de trabalho se realiza, às vezes, até de modo conflituoso, entre motivos e queixas do sujeito sobre sua ação e avaliações de seus companheiros de trabalho, que podem contribuir para a transformação desse trabalhador, que se encontra em uma determinada situação complexa, em um processo também dialógico (Clot, 1999 e Clot & Faïta, 2000 e Clot et al., 2001). Nesse sentido,

A linguagem desempenha um papel decisivo, fundamental ou no desenvolvimento. De um lado, ela contribui de modo extremamente significativo para codificar os pré6construtos históricos (construindo a “memória” desses pré6construtos, como afirma Bakhtin 6 1984). De outro, ela organiza, comenta, regula as ações e as interações humanas, no quadro das quais se re6 produzem ou se re6constroem os fatos sociais e psicológicos. Esse papel da linguagem não decorre de sua dimensão de sistema, de código, mas sim do fato de que ela é, antes de mais nada, uma atividade, uma prática, ou ainda, de que ela é da ordem do que habitualmente se chama de discurso (Bronckart, 2004a: 261).

Se o papel da linguagem é organizar, comentar e regular as ações e as interações, o papel do coletivo, segundo Clot (1999), vai além da construção do meio de trabalho. O autor aponta para a importância do apoio mútuo entre os participantes desse coletivo para que nenhum membro desse grupo sinta6se enfraquecido e isolado diante das dificuldades, dos conflitos próprios de um determinado . .

Compreender esse processo significa compreender a enorme variabilidade de maneiras de se realizar uma dada tarefa, a sua reconcepção (Clot, 1999), o trabalho de organização coletiva e esse meio, a que está sujeito o trabalho humano,

considerando sucessos, fracassos, adaptações etc. Isso nos remete a dizer que o “trabalho real” é o que está oculto no trabalho realizado (Amigues, 2003); o que faz do trabalho real uma concepção mais ampla do termo atividade. Assim, nas pesquisas de intervenção:

a linguagem funciona provavelmente como auxiliar da memória dos saberes, das condutas e das ações passadas. É, todavia, por sua capacidade de fornecer os instrumentos de retrabalho dos domínios da atividade que a linguagem abre o campo para os desenvolvimentos potenciais dos elementos que aí estão como semente, ao mesmo tempo em que esclarece seu próprio funcionamento (Faïta, 2005: 76).

Apresentada a discussão sobre a importância do papel da linguagem no coletivo de trabalho, na próxima seção, expomos e discutimos a concepção do trabalho do professor, cujo instrumento primeiro do seu “trabalho” é a própria linguagem.