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O PE ao longo do tempo: um sucessivo aumento de poder

O papel actual do PE no contexto da arquitectura institucional da UE é o resultado de uma intensa e longa batalha pela conquista de mais poder vis-à-vis a Comissão Europeia e o Conselho de Ministros (o primeiro órgão decisor)11. A história do desenvolvimento do sistema parlamentar europeu poderia ser, na verdade, vista como a história de uma assembleia originalmente consti- tuída meramente para expressar o seu aconselhamento ao Conselho, com a capacidade de se tornar ao longo dos anos um poderoso co-decisor, em pé de igualdade com este último12.

Hoje, a legislação a nível europeu é levada a cabo seguindo uma lógica bicameral, com duas câmaras de peso quase igual.

A composição, os poderes e a forma de nomear os membros do PE muda- ram profundamente desde a entrada em vigor do Tratado de Roma em 195813. Na realidade, naquela altura a “Assembleia Parlamentar Europeia” (antecessora do actual PE) não tinha poderes legislativos e era composta por 142 parlamen- tares seleccionados a partir dos parlamentos nacionais dos Estados-membros. A sua função principal era escrutinar as actividades da Comissão Europeia, não tendo basicamente qualquer poder em relação ao Conselho. A “supervisão democrática” realizada sobre a Comissão, juntamente com a extensão dos poderes orçamentais do Parlamento, ao abrigo do Tratado do Luxemburgo, em 197014, foram catalisadores utilizados pelo PE para obter mais poder dentro do contexto institucional da UE. O Parlamento estava a caminho de conseguir um papel mais preeminente no processo de decisão em Bruxelas.

Durante os anos 70, o mandato duplo dos eurodeputados – simultanea- mente membros do PE e dos respectivos parlamentos nacionais – foi alvo de severas críticas. O crescente envolvimento nas actividades em Bruxelas tor- nava necessária uma dedicação a tempo inteiro por parte dos eurodeputados. Além disso, a legitimidade democrática do PE era apenas indirecta, através de eleições nacionais. A pressão para conseguir mais legitimidade e eficiência levou à realização de eleições para o PE, pela primeira vez organizadas em 1979. Desde então, o PE tirou partido do seu estatuto democrático: havia- -se tornado a única instituição europeia com um mandato directo dos seus

11. Existe uma vasta literatura sobre este assunto. Ver, entre outros : R. Corbett, F. Jacobs, M. Shackleton, The European

Parliament, Harper Publishing,

London, 2007; O. Costa, Le

Parlement européen, Assemblée délibérante, Institut d’Etudes

européennes, 2001; O. Costa, F. Saint Martin, Le Parlement

européen, La Documentation Française, Paris, 2009; The European Parliament, in J.

Peterson and M. Shackleton,

The Institutions of the European Union, OUP, 2006; La Construction d’un Parlement: 50 ans d’histoire du Parlement européen, Institut universitaire

européen de Florence, sob a direcção de d’Yves Mény, Luxembourg, Office des publications officielles des Communautés européennes, 2009.

12. Para facilitar a leitura, utilizaremos o termo “União Europeia”, mesmo quando nos referimos ao período em que esta personalidade jurídica estava limitada à Comunidade Europeia.

13. De facto, o Parlamento Europeu apareceu pela primeira vez na cena internacional como “Assembleia Comum” da Comunidade Europeia de Carvão e Aço (CECA), fundada em 1951 pelo Tratado de Paris. 14. Um segundo tratado sobre o mesmo assunto foi assinado em Bruxelas em 1975, fortalecendo os poderes do Parlamento.

membros, conferido pelos cidadãos europeus. Isto ajudou claramente o PE a reivindicar mais poder em relação à Comissão e ao Conselho. Em particular, solicitou que lhe fosse concedido o poder de negociar com o Conselho o conteúdo de actos legislativos.

O primeiro passo importante em direcção à concretização deste objectivo foi a introdução do procedimento de cooperação através do Acto Único Europeu de 1986. Ao abrigo deste procedimento, o Conselho e o PE começaram a esta- belecer um diálogo mais franco e aberto no processo de negociação e o PE, juntamente com a Comissão, conseguiu introduzir alterações aos conteúdos das medidas legislativas. Ao mesmo tempo, o PE, através da adopção de reso- luções declarativas, começou informalmente a ter voz na constituição da nova Comissão Europeia15. Nesse mesmo ano, na sequência da adesão de Espanha e Portugal à UE, o número de eurodeputados cresceu de 435 para 518 com a chegada de 60 membros espanhóis e 24 membros portugueses16.

O Tratado de Maastricht, de 1992, introduziu significativas alterações à estrutura da UE; entre outras, colocou dois novos instrumentos à disposição do PE, nomeadamente a possibilidade de solicitar à Comissão Europeia que apresentasse propostas legislativas e um novo procedimento legislativo, o chamado “processo de co-decisão”17. Este último em particular constituiu um marco que levou ao reforço do papel legislativo do PE. Com o processo de co-decisão, o Conselho e o PE têm ambos de concordar com o conteúdo da legislação adoptada.

Nos anos seguintes, o PE deu provas da sua determinação em cumprir o seu papel de co-legislador e também de “guardião” do Executivo. Em 1999, sob a presidência de Jacques Santer, a Comissão Europeia demitiu-se em bloco, sob pressão do PE18 e, no mesmo ano, o Tratado de Amsterdão entrou em vigor, trazendo importantes alterações ao processo de co-decisão, com a intenção de fortalecer a posição do PE, tornando consideravelmente mais abrangente a sua aplicabilidade. O Tratado de Nice, que entrou em vigor em 2003, veio subsequentemente confirmar esta tendência19.

A última ronda de grandes alterações através de tratados veio com o falhado Tratado Constitucional, que resultou depois no Tratado de Lisboa, este actualmente aplicável. Este tratado entrou em vigor em Dezembro de 2009 e marcou o passo final no reconhecimento do papel do PE nas áreas legisla- tiva e orçamental e na nomeação da Comissão. Na realidade, os actuais 754 eurodeputados que formam o PE são agora chamados a legislar em conjunto com o Conselho, através do processo legislativo ordinário, previsto no art. 294 TFEU (tendo sido a co-decisão renomeada pelo novo Tratado) em (quase) todas as áreas de competência da UE20; elegem formalmente o Presidente da Comissão Europeia e ainda confirmam os seus restantes membros através 15. Esta prática informal

foi formalizada pelo Tratado de Maastricht e subsequentemente reforçada pelo Tratado de Amsterdão e Nice. Para o regime actual, ver texto infra.

16. Ver tabela 1, abaixo.

17. O funcionamento e as consequências da introdução do processo de co -decisão no processo de decisão da UE irão ser abordados extensivamente no próximo relatório, dedicado à “Definição vertical e horizontal de políticas na UE”.

18. Sobre a cronologia dos eventos, ver: http://http:// en.wikipedia.org/wiki/Santer_ en.wikipedia.org/wiki/Santer_ Commission (provisório ( (provisórioprovisório). 19. Mais especificamente, o Tratado de Nice contribuiu com a aplicação do processo de co -decisão na adopção de medidas em áreas tradicionalmente “sensíveis” para os Estados -membros, tais como o asilo e políticas de imigração e medidas de cooperação judicial em matérias civis.

20. Política agrícola (art. 38 TFEU ss.) e muitas medidas na área da liberdade, segurança e justiça (ver art. 78, 81, 87 TFEU) são agora adoptadas pelo PE e pelo Conselho através da co -decisão.

de voto de aprovação21; actualmente “co-decidem” sobre todo o orçamento juntamente com o Conselho22.

Resumidamente, a história do PE viu três extensões principais a evoluir em simultâneo. Primeiro estendeu a sua legitimidade democrática fazendo com que os seus membros se apoiassem num mandato directo, em vez de indirecto, conferido por eleições realizadas simultaneamente por todo o continente. Esta extensão democrática aconteceu em 1979 e desde então realizaram-se sete eleições para o PE – as segundas maiores eleições democráticas do mundo, se medirmos pelo tamanho do eleitorado.

Em segundo lugar, o PE aumentou gradualmente os seus poderes. Nenhuma das alterações dos tratados limitou os poderes do PE – todas as grandes revisões envolviam o PE e conduziram a uma posição cada vez mais forte deste órgão legislativo no contexto europeu. Tornou-se uma câmara legislativa em pé de (quase) igualdade com o Conselho (de Ministros). Segundo alguns observadores, tais como Simon Hix ou Peter Mair, tornou-se uma das mais poderosas câmaras parlamentares do mundo.

Em terceiro lugar, o PE aumentou gradualmente o seu tamanho. Com a adesão de novos Estados-membros, viu o seu tamanho mais do que quadrupli- car. É actualmente um dos parlamentos maiores, mais complexos e com mais idiomas do mundo, reunindo-se alternadamente em duas cidades diferentes.

A partir do que foi descrito acima, podemos facilmente inferir qual a importância do PE no contexto do sistema institucional da UE e, consequen- temente, quão importante deveria ser para um Estado-membro de tamanho médio como é Portugal actuar “na vertente parlamentar”, isto é, através dos seus membros eleitos, para garantir que os seus interesses nacionais estão a ser ouvidos em Bruxelas.

De facto, quando Portugal aderiu à UE em 1986, o projecto europeu estava numa encruzilhada e o PE tinha apenas começado a fortalecer e clarificar o seu papel no sistema decisor: o processo de cooperação – que, como vimos, foi o antecessor do actual processo legislativo ordinário – foi introduzido um ano mais tarde, com a entrada em vigor do acto Único Europeu. No mesmo período, o Presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors, publicou o Livro Branco sobre a Conclusão do Mercado Interno, que enumerava cerca de 300 medidas legislativas necessárias para completar o mercado interno. Além disso, foram colocados na agenda da Comissão planos para a introdução da União Económica e Monetária (UEM), encetando assim o caminho para a posterior adopção do Euro.

Desde então, um número cada vez maior de leis europeias foram adopta- das para promover a integração da UE e o nível de harmonização de políticas entre os Estados-membros. De acordo com a EUR-Lex, a base de dados legal

21. Ver art. 17 TUE e art. 234 TFEU sobre a moção de censura.

oficial da UE, entre 1990 e os dias de hoje, mais de 70 000 actos legislativos foram adoptados pelo PE e pelo Conselho em conjunto, ou pelo Conselho e pela Comissão individualmente. Em Agosto de 2012, estavam em vigor 19 967 actos da UE. Entre os domínios políticos que fazem parte das competências da UE, os sectores mais regulados são: Agricultura, Relações Externas, Ambiente, Protecção de Saúde e dos Consumidores (Tabela 1.1).

Tabela 1.1 Legislação em vigor em 1.11.2012

Domínio Político Número de actos

Questões gerais, fi nanceiras e institucionais 1324

União Aduaneira e livre circulação de mercadorias 924

Agricultura 3172

Pesca 1109

Livre circulação de trabalhadores e política social 571

Direito de estabelecimento e livre prestação de serviços. 274

Política dos transportes 735

Política de concorrência 1794

Fiscalidade 186

Política económica e monetária e livre circulação de capitais 539

Relações externas 3650

Energia 406

Política industrial e mercado interno 1636

Política regional e coordenação dos instrumentos estruturais 391

Ambiente, consumidores e problemas de saúde 1692

Ciência, informação, educação e cultura. 450

Direito das empresas 119

Política Externa e de Segurança Comum 530

Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça 667

Europa dos cidadãos 21

A Tabela 1.1 mostra que, na prática, não há quase nenhum domínio polí- tico que seja regulado exclusivamente a nível nacional23. Por exemplo, existe regulamentação da UE que determina um tecto para cobranças de roaming e medidas que visam a protecção de passageiros aéreos, assim como regulamen- tação relativa aos direitos de passageiros que viajam de autocarro ou comboio. Estes são exemplos de legislação em que o PE contribuiu fortemente para a defesa do consumidor por toda a Europa. O PE, como co-legislador junta- mente com o Conselho, tem sido capaz de influenciar o conteúdo de muitos destes actos legais.

Fonte: EUR -Lex, Directório de Legislação da União Europeia em vigor.

23. Em Julho de 1988, Jacques Delors previu: “daqui a dez anos, 80 por cento da legislação relativa à economia, talvez também à fiscalidade e assuntos sociais, terá origem na Comunidade”. Segundo um estudo recentemente conduzido pela Câmara dos Comuns do Reino Unido, a proporção de leis nacionais dos Estados -membros baseadas em leis da UE varia entre 6 e 84 por cento.

Assim, entender o papel do PE no palco de Bruxelas é de suma importân- cia para compreender a essência do trabalho da UE. Recordemos também que o PE é a única instituição a nível europeu eleita directamente. Os cidadãos precisam de saber o que é exactamente o PE, que poderes tem e como usa as suas prerrogativas.

A próxima secção oferece uma panorâmica das regras de organização e operação internas do PE, retratando o contexto onde os membros portugueses do PE desempenham o seu importante papel.

Capítulo 2