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O percurso das políticas e instituições de atendimento

CAPÍTULO 2 APROXIMAÇÕES TEÓRICAS:

2.2. POLÍTICA DE ATENDIMENTO:

2.2.1. O percurso das políticas e instituições de atendimento

A preocupação com crianças desprotegidas socialmente ou situadas fora dos padrões sociais de conduta dominantes, possivelmente remonta à antiguidade. No Brasil ela tem suas bases no trabalho desenvolvido pelos jesuítas do período da colonização e vai com o tempo assumindo os mais diferentes contornos. O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente pôs fim a um longo período em que as políticas dirigidas ao referido público se pautavam nos Códigos de Menores e na doutrina que criminalizava a pobreza como “situação irregular”. Tal como se alternou muito os nomes que se davam às instituições, também desfilou pela história uma grande sucessão e ora mesmo concomitância e justaposição de novas classificações para essa clientela e junto a elas também despontaram novas abordagens ao problema. Assim tivemos em nossa história, entre muitas outras, categorias como enjeitado, exposto, menor vadio, menor delinquente, menor abandonado, menor carente, até os meninos de rua e jovens infratores, vitimizadores ou vitimizados e em situação de risco de nossos tempos. Dentre essas classificações encontram-se categorias mais gerais que podiam abranger diversas situações e no transcorrer dessas políticas de atendimento a

que mais vingou até nossos dias é certamente a categoria de menor.

A categoria menor – muitas vezes disfarçada pelo acréscimo do -de lhe precedendo (de menor), hoje especialmente muito comum – traz consigo desde o início do século XX uma carga pejorativa de associar aquele a que se refere o termo com a pobreza e vincular essa com o abandono, a marginalização, a prática infracional, o risco à segurança, à ordem e às pessoas de bem. Menor não significa simplesmente “menor de idade” ou o mesmo que criança ou adolescente. Um exemplo ilustrativo na história brasileira nos leva ao ano de 1940 quando o Governo Vargas cria o Departamento Nacional da Criança (DNCr) dentro do Ministério da Educação e Saúde e no ano seguinte funda o Serviço de Assistência a Menores (SAM). O menor tem classe social certa e é entendido como um ser desviante31 das normas vigentes que pede cuidados especiais. Os serviços

realizados pelos educadores abordados aqui, no caso a abordagem de rua e o acolhimento institucional, ou abrigo, este sendo o atendimento feito por uma proporção menor de pesquisados, são formas recentes de intervenção junto ao segmento alvo dessas políticas.

A abordagem de rua foi definida sucintamente no início deste trabalho, mas é interessante acrescentar alguns elementos que se tornam mais convenientes para este momento da exposição. Houve muitos nomes para definir essa atividade, abordagem direta e abordagem de rua, ´por exemplo. O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), em reunião ordinária realizada nos dias 11 e 12 de novembro de 2009, aprovou a resolução nº 109 que padroniza os serviços socioassistenciais e define abordagem de rua como um tipo de serviço especializado em abordagem social, que é definido como um

serviço ofertado, de forma continuada e programada, com a finalidade de assegurar trabalho social de abordagem e busca ativa que identifique, nos territórios, a incidência de trabalho infantil, explo- ração sexual de crianças e adolescentes, situação de rua, dentre outras. Deverão ser consideradas praças, entroncamento de estradas, fronteiras, espaços públicos onde se realizam atividades labo- rais, locais de intensa circulação de pessoas e existência de comércio, terminais de ônibus, trens, metrô e outros.

O Serviço deve buscar a resolução de necessidades imediatas e promover a inserção na rede de serviços socioassistenciais e das demais políticas públicas na perspectiva da garantia dos direitos (BRASIL, 2009, p.22).

Conforme ainda esse documento os objetivos são definidos como: construir o processo de saída das ruas e propiciar acesso à rede de serviços e a benefícios assistenciais; identificar famílias e indivíduos com direitos não atendidos, a natureza dessas violações, suas condições de vida, estraté- gias de sobrevivência, procedências, anseios, necessidades e relações estabelecidas com as institui- ções; promover ações de sensibilização para divulgação do trabalho realizado, direitos e necessi-

31Desvio aqui segue o mesmo sentido definido por Goffman (1980), como particularidade de indivíduos, que dentro de

um conjunto de valores e normas sociais relativos à conduta e atributos individuais, não seguem às normas, sendo “destoantes” dentro deste grupo.

dades de inclusão social e estabelecimento de parcerias; promover ações para a reinserção famili- ar e comunitária.

O trabalho social realizado nesse serviço é descrito como constituído por proteção social proativa; conhecimento do território; informação, comunicação e defesa de direitos; escuta; orienta- ção e encaminhamentos sobre/para a rede de serviços locais com resolutividade; articulação da rede socioassistencial; articulação com os serviços de políticas públicas setoriais; articulação interinstitu- cional com os outros órgãos do Sistema de Garantia de Direitos; geoprocessamento e georreferenci- amento de informações; elaboração de relatórios.

São relacionados ainda como materiais permanentes e de consumo necessários para a efeti- vação dessa atividade: telefone móvel e transporte para uso pela equipe e pelos usuários, materiais pedagógicos para desenvolvimento de atividades lúdicas e educativas.

O abrigo, por sua vez, é previsto no art. 92 do Estatuto da Criança e do Adolescente, como uma medida de proteção para crianças ou adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O ECA especifica o abrigamento como medida provisória e excepcional, que busque fortalecer os laços familiares e comunitários visando a reinserção das crianças e adolescentes em sua família natural, ou, se for o caso, para a sua colocação em família substituta, não se tratando de privação de liberdade (art. 101). O abrigo é historicamente uma instituição bem jovem, se contrapondo ao que perdurou durante grande parte de nossa história, no caso, as instituições asilares, como documentam Priore, (1996), Rizinni e Rizinni (2004), Ponte (2001), Alvarez, Salla e Souza, (2004). Essas últimas passaram por muitos nomes: “orfanatos”, “asilos ampliados”, “escolas de preservação”, “escolas industriais”, “preventórios”, “reformatórios”, “educandários” ou “institutos”. Estes estabelecimentos tiveram distintas naturezas, ora religiosa, ora militar, civil estatal ou de associação privada filantrópica e caracterizaram-se por duas características básicas: (a) pela visão caritativa e correcional, tutelar e paternalista sobre os filhos das classes subalternas, dando-lhes como alternativa o confinamento longe do convívio social para “incutir hábitos morais considerados convenientes à sociedade, bem como preparar as crianças para o trabalho” (FREITAS, 2000, p. 25) e; (b) deslegitimar as famílias dos assistidos como não apenas economicamente incapazes, mas moralmente inabilitadas a assumirem a criação de seus filhos, não focando a promoção social das próprias famílias.

Dos tempos do uso da definição de “classes perigosas” para as camadas marginalizadas da população no início do século XX até hoje, houve uma mudança conceitual no vocabulário do legislador e do gestor tentando evitar a desqualificação da clientela atendida. A estigmatização foi marca não apenas da uma longa tradição de rotular o público alvo das políticas assistenciais, mas também signo da passagem deste pelas instituições de atendimento. A partir do momento em que

passa a existir uma política nacional, centralizada e pretensamente uniforme por parte do Estado, com a criação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM) em 1941, aparece esse fenômeno de atribuição de uma marca institucional na construção identitária e na imagem dos atendidos. Esse estigma parece ter suas bases em muitos fatores, entre eles: na forma como a nascente sociedade burguesa endemonizou e criminalizou a pobreza. Não se pode negligenciar o papel da imprensa da época que aparece como fustigadora de estereótipos a esse público ligando-o ao desvio, ao desajuste social e à periculosidade32.

Na atualidade esses elementos ainda são sentidos. A Fundação Nacional de Bem Estar do Menor – FUNABEM, e sua congênere local, Fundação do Bem-Estar do Menor do Ceará – FEBEMCE, herdaram o legado do estigma institucional. Não apenas provocavam por provocar o estigma sobre seus internos, mas elas próprias eram estigmatizadas. Portanto passava a ser uma questão de contágio simbólico. Podemos pensar aqui, para além da significação religiosa, num tipo de apartação da ordem do profano, marcando os que eram estigmatizados pela alcunha menor, com uma carga simbólica, portadora de energia contagiosa.

Desse forma, onde existe uma unidade de abrigo, principalmente se for pública, a comunidade entende existir ali uma Febem, frequentemente sem distinguir o que difere aquele espaço de um Centro Educacional, este sendo o espaço para jovens infratores. O fato de ser público tende a reforçar a estigmatização devido ao fato de que a Febemce estatal e também por conta, desconfio, da austeridade e discrição institucional que estes abrigos têm, em contraposição aos abrigos “privados”, que geralmente possuem uma aura mais lúdica e certo “marketing social”, além de serem associados à imagem de filantropia.

O abrigo de hoje e a abordagem de rua surgem na desconstrução dos seus predecessores asilares. Eles partem do princípio de que toda política pública é antes de tudo caracterizada por respeitar os Direitos Humanos. Desta forma as experiências travadas pelos movimentos sociais, de educação e de acolhida33 dessas crianças e adolescentes por organizações não-governamentais – que

denunciavam as políticas anteriores – foi amplamente levado em consideração na produção do novo texto legal, assegurando a doutrina da Proteção Integral como paradigma dessa política pública.

Essa doutrina jurídico-assistencial dá seus primeiros passos em 1959 com a Declaração Universal dos Direitos da Criança da ONU e é reafirmada em 1989 quando ocorre a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Os artigos 204 e 227 da Constituição de 1988 já trazem essa visão como marco da nova política de assistência e o Brasil é signatário de

32 Irene e Irma Rizzini (2004) mostram que esta última noção surge como categoria presente no segundo Código de

Menores do país.

33 Estas últimas criaram os primeiros abrigos na acepção moderna e se inseriram na militância pelos Direitos Humanos

convenções internacionais que a adotam como parâmetro.

Conforme Matos (1998), em 1994 a Secretaria de Trabalho e Ação Social do Governo do Estado do Ceará (SAS) e o Sistema Nacional de Emprego (SINE) realizaram uma pesquisa que estimou existirem naquele momento por volta de 5.692 meninos e meninas que trabalham para completar a renda de suas famílias e haver 184 crianças fazendo das ruas sua morada na capital cearense.

Esses dados chamaram a atenção para a necessidade de se investir mais no atendimento ao segmento infanto-juvenil em situação de risco social e pessoal, o que levou a ampliação de equipamentos e serviços da Secretaria tais como: ABCs; Criança Feliz; Atleta do Ano 2000; Casa da Juventude; Polo Central de Atendimento (Albergue), mais tarde sendo esses três projetos reunidos num só, o atual Espaço Viva Gente; Casa do Menino Trabalhador; Núcleo de Iniciação ao Trabalho Educativo; Respeitável Turma e; S.O.S. Criança.

Em janeiro de 1996, a partir da provocação de uma equipe de técnicos da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor do Ceará (FEBEMCE) surge o “Projeto Vale Cidadão”, depois chamado “Programa Passos para a Cidadania”, para atender emergencialmente crianças e adolescentes em situação de mendicância. Posteriormente este programa tornou-se o Programa Criança Fora da Rua, Dentro da Escola.

Já o Ponte de Encontro nasce a partir do então programa Da Rua Para A Cidadania que já exercia trabalho de abordagem de rua.