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O Peregrino da América e as narrativas alegóricas de peregrinação

Sabei que é este mundo estrada de Peregrinos, e não lugar, nem habitação de moradores; porque a verdadeira Pátria é o Céu, como assim o advertiu S. Gregorio Papa: que por isso enquanto andam os homens neste mundo, lhes chamam caminhantes. E diz S. João Chrysostomo, que neste mundo não há mais que uma virtude, da qual se compõem as outras: é o ter-se por Peregrino nesta vida, e por Cidadão da Glória276.

Appellido-me por Peregrino da América, porque tenho tomado por empresa andar nesta peregrinação para ver, e observar, e escrever o que tem succedido, e succede neste Estado do Brasil, para dar a saber aos mais, que de presente existem, e ficar por lembrança para os que de futuro vierem277.

Senhor, eu não posso ser farto senão quando vir tua glória que é tua face. Tira-me desta carne278.

O tema da peregrinação teve grande desenvolvimento na literatura dos séculos XVI- XVIII, sendo que várias obras produzidas neste período deram continuidade ao modelo aberto pela tradição medieval que valorizava a viagem, especialmente o caminho percorrido em busca da salvação. Nesse sentido, a peregrinação da vida, como metáfora que envolve o exílio do ser humano do paraíso e a sua peregrinação na terra, estava associada com obras que apresentam uma visão cristã de mundo e que estão estruturadas em torno da jornada do homem em busca da salvação. Ademais, após o Concílio de Trento (1545-1563), o apelo de cristianização da arte não era somente enfatizado, mas também obrigatório. De acordo com a teoria da arte da Contrarreforma, a arte deveria não só divertir, mas também educar os leitores nos princípios da fé cristã279. Entre esses princípios se sobressaía o conceito de que a vida na terra é uma peregrinatio, sendo a tarefa do escritor que desenvolvia este tema em sua obra explorá-lo, dramatizá-lo, para que o leitor dele tivesse mais consciência.

276Peregrino da América, vol. I, 1939, p. 21. 277Peregrino da América, vol. I, 1939, p. 188. 278Boosco Deleitoso, p. 1.

279 CASTRO, Anibal Pinto de. Retórica e Teorização Literária em Portugal. Do Humanismo ao

Nesta literatura, a passagem do ser humano pelo mundo assume um caráter transitório e ele é visto como estrangeiro e peregrino sobre a terra280. Este sentido da viagem teve continuidade com as traduções e releituras do Pèlerinage de la Vie Humaine, de Guillaume de Digulleville e, em Portugal, antes mesmo das obras de Gil Vicente281, as obras místicas de conteúdo ascético Orto do Esposo e Boosco Deleitoso, ambas do final do século XIV e o início do século XV e escritas no Mosteiro de Alcobaça, já haviam utilizado o discurso alegórico para apresentar o tema da salvação ou da condenação da alma. Na literatura inglesa, o tema está presente na obra Pilgrim’s Progress (1678), de John Bunyan e, no Brasil, seus representantes mais destacados são a História do Predestinado Peregrino e seu Irmão Precito, do Pe. Alexandre de Gusmão (1682), e o Peregrino da América (1728), cujo autor, Nuno Marques Pereira, recorre à tradição das narrativas alegóricas medievais de peregrinação, adaptando-as ao seu projeto narrativo, e também à doutrinação católica tridentina. A convicção básica de Nuno Marques é de que o homem não mora na Terra, que ele está aqui apenas em peregrinação para o céu, sua verdadeira morada: “Todos somos peregrinos neste mundo: e de que devemos obrar com acerto, para chegarmos a nossa pátria, que é o Céu”282.

3.1- Pèlerinage de la Vie Humaine, de Guillaume de Digullevile, e suas releituras

As releituras e traduções da trilogia alegórica de Guillaume de Digulleville deram continuidade ao tema da peregrinação com a publicação em Toulouse, em 1490, da obra El pelegrino de la vida humana, tradução e adaptação em prosa por Frei Vicente de Maçuelo do Pèlerinage de la Vie Humaine, a primeira parte da trilogia alegórica de Digulleville283. El pelegrino de la vida humana começa com o sonho da Jerusalém celestial, que gera no protagonista a determinação de empreender uma viagem, movido pelo desejo de alcançar a

280MOREIRA, Maria M. A novela alegórica em Português dos séculos XVII e XVIII, p. 186. 281

BALISTA, Lígia Rodrigues. Auto e peregrinação: a metáfora da caminhada no “Auto da Alma” e em

“Vida e Morte Severina”. Dissertação de Mestrado. Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Universidade

Estadual de Campinas, 2012, p. 33-45. 282 Peregrino da América, vol. I, 1988, p. 19.

283 Cf. DUNN-WOOD, Maryjane. El Pelegrinage de la Vida Humana. A Study and Edition. Tese de doutorado. University of Pennsylvania, 1985.

cidade vista em sonho. O itinerário da peregrinação conduz o Peregrino à Casa da Graça de Deus, que é a Igreja, de onde, preparado espiritual e fisicamente para o caminho, empreende uma dura peregrinação cheia de ataques dos vícios personificados. Com a ajuda da Donzela Razão, depois de decidir passar a difícil passagem que o vilão Duro Entendimento defende, o Peregrino opta pelo caminho equivocado que a Bela Ociosidade, filha de Lenitude, lhe oferece, em vez do itinerário sinuoso e áspero que lhe apresenta o pobre artesão, cujo nome é Ocupação. Como consequência da escolha do caminho errado, a peregrinação torna-se perigosa, cheia de sofrimentos e dificuldades, com a perseguição de vícios, como Soberba, Orgulho, Lenitude, Inveja, Traição, Murmuração, Ira, Cobiça, Avareza, Luxúria ou Gula, quase sempre representados por mulheres velhas e monstruosas. Seu penoso itinerário o conduz à visão do demônio, o qual, em forma de pescador, pega em sua rede os corpos e as almas daqueles que, à mercê da corrente, flutuam no mar da incerteza. Neste momento, o Peregrino sofre os ataques da Heresia, o frágil favor de uma Juventude irreflexiva e se submete ao juízo da Tribulação que, dando-se conta do bem intencionado coração do Peregrino, permite-lhe novamente ser conduzido ao bom caminho da Graça de Deus, que cuidou dele e foi sua mentora no começo do caminho. Ela o ajuda a subir no barco-casa da religião, que o conduzirá pelo mar da dificuldade e da indecisão e o deixará seguro no caminho da cidade de Jerusalém, vista e desejada desde o começo da peregrinação. Para alcançar o barco-casa da Religião, o Peregrino precisa suportar e acatar os rigores da prova do porteiro Temor de Deus. Uma vez dentro do barco-casa da Religião, o Peregrino conhece a identidade e ocupação das damas seráficas que nele estão: Pobreza Voluntária, Formosa Castidade, Obediência, Estudo, Disciplina, Abstinência, Súplica, Adoração de Deus. A obediência ata as mãos, pés e a língua do Peregrino e, neste momento, com abnegação cristã, deixa-se vencer por duas anciãs, a Velhice e a Enfermidade, entregando-se à Morte, nas mãos da Misericórdia. No momento em que sofre o golpe fatal da voz da Morte, o autor desperta de seu sonho com o sonido do chamado às matinas, que encerra a narrativa284.

284HERRÁN ALONSO, Emma. Entre el homo viator y el miles Christi. Itinerarios narrativos de La alegoria espiritual hispânica en la imprenta área. Cahiers de Linguistique Hispanique Médiévale, n. 30, 2007, p. 153-155.

Em 1509 foi também publicada a obra Peregrinatio Humana, do humanista-cristão Guillaume du Bellay, que se baseia na trilogia alegórica de Gillaume de Digulleville, junto com uma versão francesa corrigida e revisada e uma versão em prosa285. A publicação dessas obras em prosa e verso durante o Renascimento representa o restabelecimento em vernáculo das tradições de peregrinos de forma segura e clara. A versão em versos apresenta em Latim, na margem, textos das Escrituras e dos Pais da Igreja. Ela começa com uma citação do apóstolo Paulo: dum sumus in hoc corpore peregrinamur a domino (2 Coríntios 5.6), que é explicada da seguinte forma:

Le premier du pelerinaige De lhomme durant quest en vie, Lautre de lame de la caige De son corps desja departie, Le tiers declaire e annuncie Le pelerinage de Crist Depuis qui fut ney de Marie Jusqua lenvoy du sainct esperit286.

O poema está estruturado em três livros e cada um deles exemplifica uma das três principais formas na quais a citação do apóstolo Paulo foi interpretada na tradição cristã, envolvendo três tipos de peregrinação: a primeira, a peregrinação do homem, no corpo, longe de Deus: a peregrinação como exílio; a segunda, da alma separada do corpo, mas começa com os primeiros passos conscientes em direção a Deus: peregrinação como a vida cristã, centrada na conversão; a terceira é a própria vida de Cristo, que é repetida pelos peregrinos que viajam à Terra Santa: peregrinação como uma imitatio Christi representada literalmente. O homo viator do período do Renascimento entendia o que significava ser peregrino por meio destas três formas de peregrinação287.

O verso do Prólogo da edição da primeira parte da trilogia de Digulleville (1511) estabelece também um paralelo direto com os versos do exílio de Ovídio em Tristia, de modo a estabelecer também a narrativa autobiográfica do exílio de Ovídio como paradigma e autoridade para a narrativa em verso de Digulleville sobre a jornada terrestre da alma

285WILLIAMS, Wes. Pilgrimage and Narrative in French Renaissance, p. 16. 286Guillaume de Digulleville. Le Pelerinage de lhomme (1511), fol. a1r.

humana como forma de exílio, mas o exílio acontece agora numa escala cósmica, não constituindo somente uma relação autorreferencial de uma experiência individual como a de Ovídio:

Como Ulisses se tornou símbolo mítico do herói desterrado, assim Ovídio adquiriu a posição, igualmente singular, de cantor, por excelência, do exílio. E não é sem fundamento que isso acontece: a punição de que foi vítima, as circunstâncias que a envolveram e as conseqüências que veio a acarretar são, ao mesmo tempo, condição determinante e tema privilegiado de toda a obra poética que, a partir de então, produziu. Se à literatura do exílio é hoje reconhecida uma identidade própria, de características bem peculiares, o Sulmonense em muito contribuiu para isso. Em Ovídio, a relação temática para com as condições biográficas que lhe estão subjacentes é, pois, de forte dependência. Nem sempre é fácil dissociar ambos os aspectos; e, por mais que queiram evitar-se os vícios de biografismo de que se encontra crivada a larga maioria dos estudos que lhe têm sido consagrados, torna-se forçoso reconhecer que a separação do homem e do poeta é difícil de operar na sua obra288.

Em harmonia com esta preocupação alegórica mais ampla, o verso latino da paráfrase do poema francês de Guillaume du Bellay acentua, acima de tudo, que o conceito e idéia central é, como na Divina Comedia, a descoberta do “caminho certo”, “a meio caminhar de nossa vida” (Inferno I,1), em direção ao “paraíso acima”, onde o plural “nossa” assinala a parte de vida que Dante tem em comum com seus leitores, especialmente a vida espiritual de cada um deles289.

Outra obra que também se baseia nas peregrinações alegóricas de Digullevile é o Cavallero Pelegrino, conhecido como Libro de Milicia Cristiana ou El Pelegrino Cristiano (Cuenca, em 1601)290. Seu autor, o padre Alonso de Soria, defende, como muitos autores da época, a necessidade de retornar às leituras sagradas, que haviam sido substituídas pelas 288ANDRÉ, Carlos Ascenso. Mal de Ausência. O canto do exílio na lírica do humanismo português, p. 73.

289

TUCKER, George Hugo. Homo Viator: itineraries of exile, displacement and writings in Renaissance

Europe, p. 67.

290Esta obra se difundiu com o seguinte título: Historia y milícia del Cavallero Pelegrino, conquistador del

cielo, metáfora y símbolo de cualquier sancto, que peleando contra los vícios ganó la victoria, inclúyese en el la jererchía eclesiástica y celestial e la metáfora del Infierno y Purgatorio y la gloria de los sanctos y glorioso recebimiento, com exemplos de sanctos y autoridades de la Sagrada Escritura. A obra é também classificada como livro de cavalarias “a lo divino”, ou seja, um grupo de narrativas que surgiram na segunda

metade do século XVI, escritas como respostas ou contrapontos ao êxito dos livros de cavalaria pelos moralistas e religiosos que viram fracassar os intentos de proibi-los e idealizaram relatos, os quais, sob a forma de ficção cavalheiresca, desenvolviam os princípios da moral cristã.

profanas, promovendo, por um lado, a marginalização da ficção inútil em benefício da literatura doutrinária e, por outro, propondo como leitura um texto híbrido291. Soria mostra a busca errante do Cavaleiro: depois da indicação do Anjo da Guarda que aparece ao Peregrino, há, como primeira etapa do caminho, uma estadia na Casa do Desengano. Em seguida, Peregrino atravessa três muros com fossos e rios, e o leitor é informado sobre a arquitetura dos edifícios, torres, portas, pátios e palácios que encontra em seu caminho. Um personagem chamado Antigo Testamento o conduz até o local onde conhece o Doutor Evangélico que, na “Escola da Verdade”, a primeira morada do Desengano, informa aos presentes sobre a lei de Jesus. O Peregrino conhece as Sagradas Escrituras, é recebido pelas virtudes teologais e suas servas, as virtudes cardeais, sendo instruído em seu catecismo. É armado Cavaleiro de Cristo através do batismo, para “lutar suas batalhas e derrotar seus inimigos”. As Virtudes o cingem com a armadura espiritual. O Antigo Testamento e o Doutor Evangélico lhe entregam uma Bíblia. Caridade, junto com Fortaleza e Temperança, despojam-no de suas velhas roupas e lhe oferecem as vestes brancas da sua nova condição de cristão292: “A Fé lhe cinge o cinto da fé e da castidade; Prudência cobre-lhe a cabeça com um lenço branco que é ‘o elmo do amor e temor de Deus, para defender-se dos golpes 291Sobre a crítica aos livros de cavalaria no século XVI espanhol, inclusive o voto das cortes de Valladolid

(1555), que pede a proibição total desses livros “cheios de mentiras e vaidades”, cf. HERRÁN ALONSO,

Emma. Entre el homo viator y el miles Christi, p. 147-148. Marcel BATAILON. Erasmo y España. 2ª Ed. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 622-623, declara: “Desde Vives hasta Cervantes, se puede seguir, a lo largo del siglo XVI español, una serie casi ininterrumpida de declaraciones hostiles a los libros de caballerías. Entre ellas hay incluso un voto de las Cortes reunidas en Valladolid en 1555, que pide la

prohibición total de esos ‘libros de mentiras e vanidades’. Esto, a la larga, acaba por hacerse una cláusula de

estilo casi inevitable en la pluma de un escritor serio. Se la encuentra tanto en libros religiosos como en obras profanas; casi siempre se mezcla con una defensa de los libros provechosos. Los autores en quienes aparece so son todos erasmistas, pero la mayor parte de ellos tienen que ver con el erasmismo por algún lado de su vida o de su obra. Baste observar aquí que ésta se apoya en el pensamiento común del erasmismo en materia literária,y que la petición de las Cortes coincide com el apogeo de un movimiento de espiritualidad en que el erasmismo tuvo un lugar central: es contemporânea de los grandes libros de Luis de Granada. Tenemos ahora que examinar la literatura profana, pero seria; la literatura que se esfuerza por suplantar a las funestas

novelas.”

292

O motivo do “despojar-se das vestes antigas e o vestir-se com vestes novas” como indicação da situação de

uma pessoa que renasceu em Cristo deriva da tradição bíblica: “Isto, portanto, digo e no Senhor testifico. Não

andeis mais como andam os demais gentios, na futilidade dos seus pensamentos, com entendimento entenebrecido, alienados da vida de Deus pela sua ignorância e dureza dos seus corações. Tendo-se tornado insensíveis, se entregaram à dissolução para praticarem avidamente toda sorte de impureza. Vós, porém, não aprendestes assim a Cristo, se realmente o ouvistes e, como é a verdade em Jesus, nele fostes ensinados a remover o vosso modo de vida anterior – o homem velho, que se corrompe ao sabor das concupiscências enganosas -, e a renovar-vos pela renovação espiritual da vossa mente, e revestir-vos do Homem Novo, criado

dos inimigos, e com o qual não poderá ser vencido por eles’; a Justiça lhe entrega um bordão para a peregrinação feito em forma da cruz; a Caridade lhe oferece uma vela branca acesa, que o protegerá do vento da soberba, princípio de todos os pecados”293.

Nomeado Cavaleiro Peregrino, e tendo sido informado sobre todas as coisas da fé, conhece os demais mistérios sagrados e as hierarquias eclesiásticas por meio do retrato da Jerusalém Celestial. Recuperando a errância antes interrompida, parte em direção ao primeiro dos dez palácios que deverá encontrar e visitar antes de chegar ao Palácio da Vitória, de onde terá acesso ao Monte Santo. Inicia, então, uma áspera caminhada, na qual será assaltado e tentado por vários tipos de visões demoníacas dos vícios que encontrará em cada palácio: é assaltado pela Idolatria e a Heresia antes de chegar a Casa da Honra de Deus, onde conhece a Verdade, Consideração e Justiça; a Blasfêmia cria obstáculos ao seu caminho à Casa do Sossego, onde é recebido pela Quietude; Ócio, Apetite e Amor Próprio se apresentam quando vai de encontro à Obediência, Humildade e Mortificação; Vanglória e Soberba não querem que ele alcance o Palácio da Paz, onde conhecerá a Paz Cristã, Paciência, Mansidão; Rancor e Discórdia o enfrentam quando vai à morada das virtudes da Perfeita Castidade; Concupiscência e Deleite tentam impedi-lo de ir ao Palácio da Pobreza, onde lhe esperam Pobreza, Liberalidade e Misericórdia. O Peregrino vence Avareza, Cobiça e Impiedade, para chegar à Casa da Verdade, onde moram Verdade, Inocência e Piedade Humana; derrota Falsidade e Adulação antes de chegar ao Palácio do Coração, morada da Guarda do Coração e Confiança Perfeita. Quando abandona este palácio, o Cavaleiro é um ancião, com cabelos brancos e compridos. Sabe-se, então, que ele peregrinou durante trinta e três anos, está agora desejoso de finalizar sua peregrinação. A caminho da Casa da Providência, enfrenta o cortejo da Avareza, composto de Simonia, Astúcia, Fraude, Usura, Infortúnio e Impiedade, assim como a comitiva da Luxúria (Amor Próprio, Imundícia, Deleite, Fornicação, Incesto, Estupro, Sodomia, Excessiva Comodidade, Bestialidade, Cegueira do Entendimento, Desconsideração, Precipitação, Inconstância, Ódio de Deus e Desespero). Após vencê-los, no mesmo caminho a Ira, em

companhia do Furor e do Rancor, são afugentados pelo Anjo da Guarda do Cavaleiro, quando este, abatido, estava a ponto de submeter-se a estes últimos atacantes294.

O Cavaleiro Peregrino continua seu difícil caminho, quando encontra com os adoradores dos ídolos Ceres e Baco, que lhe dão vários golpes, deixando-o “estendido na terra, entre muitos espinhos e pedras, quase cego devido aos tormentos que recebeu”. Segue seu caminho, com dor e esforço, e resiste a duras penas primeiro aos ataques da Inveja, depois ao trio Ódio de Deus, Desconfiança de Todo Bem e Acídia. Depois destas últimas batalhas, o Anjo da Guarda entrega ao Cavaleiro a láurea de Glória e lhe indica o caminho da Casa da Vitória. Ele chega antes à Casa da Providência, morre nas mãos da Morte, é ressuscitado e, em companhia de seu Anjo, sobe ao Campo da Verdade. Passa, então, à Casa da Vitória, onde esta o recebe festivamente. Em seguida, é conduzido a uma alta torre, que se encontra a um passo do Monte Santo. O final do livro apresenta um relato da hierarquia celestial através da passagem do protagonista por muitos muros que protegem e cercam a entrada ao Monte Santo. Uma vez franqueados e guiados pela Rainha do Céu, o Cavaleiro Peregrino chega ao trono de Deus295.

3.2- Obras de conteúdo ascético: Orto do Esposo e Boosco Deleitoso

Entre o final do século XIV e o início do século XV foi publicado em língua portuguesa o livro Orto do Esposo296, obra de um monge alcobacense, de caráter místico, fundada “na idéia da existência de dois caminhos à frente do ser humano”297. O título da obra está enraizado em imagens bíblicas: Hortus conclusus, soror mea sponsa (“Jardim fechado és, minha irmã esposa”), ou então, Veniat dilectus meus in hortum suum (“Venha o meu amado para o seu jardim”). Ora, “a esposa significa a alma, que é o horto, jardim e pomar, onde se recreia o amado, Cristo, como Deus se recreava antigamente no paraíso

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