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Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p 21-46.

3- O presente estudo

Os estudos apresentados, em especial aqueles mais recentes, têm contribuído de forma decisiva para a compreensão do Peregrino da América enquanto obra literária que pertence à tradição das narrativas alegóricas medievais e dos seus desenvolvimentos nos séculos posteriores. Considerando estes aspectos, a segunda parte dessa pesquisa apresenta algumas questões relacionadas com a tradição da alegoria, além de assinalar o desenvolvimento das narrativas alegóricas na vida cultural do Ocidente. Juntamente com o desenvolvimento da alegoria, assinala também como estas narrativas apresentam um conjunto de problemas, entre os quais a sua própria classificação em termos de gênero. Esta

classificação é pertinente, na medida em que a inserção de uma obra numa categoria histórica particular contribui grandemente para a sua significação global, já que uma obra não pode ser dissociada da esfera literária em que está situada114.

A terceira parte da pesquisa apresenta o tema da peregrinação, presente em algumas obras daquele período que deram continuidade ao modelo aberto pela tradição medieval que valorizava a viagem, especialmente o caminho percorrido em busca da salvação, principalmente a peregrinação da vida, como metáfora que envolve o exílio do ser humano do paraíso e a sua peregrinação na terra. Apresenta também sua presença no Peregrino da América, isto é, a sua afirmação de que a terra não é morada do ser humano, o qual está aqui apenas em peregrinação para o céu, a morada verdadeira115. Devido à influência da ideologia da Contrarreforma, este motivo tornou-se um dos mais fecundos da literatura alegórica deste período. Ele está associado ao conceito de homo viator, o peregrino em constante viagem, que tenta traçar uma trajetória sobre o caos do mundo e instaurar certa ordem na desordem generalizada, possível mediante o cumprimento de certos rituais que asseguram o encontro do ser humano com o divino116

. O homo viator, caminhante, procura transcender sua condição física, terrena, num movimento de retorno e de restauração de uma pátria perdida, de um estado ideal de ser, de felicidade e perfeição.

O tema da peregrinação, tratado com mais ou menos intensidade dramática como uma luta do Bem contra o Mal, isto é, uma psicomaquia117, é objeto da quarta parte dessa pesquisa. Nas obras deste período, a recorrência ao modo e funcionamento alegóricos varia 114De acordo com Dominique Maingueneau, a classificação genológica confere identidade às obras literárias:

“Pour dire qui elle est, une oeuvre doit intervenir dans un certain état de la hiérarchie dês genres”. Ele defende

igualmente que esta classificação é o resultado de um processo de confrontação de um dado texto com os

outros espécimes que integram a “sphère littéraire”: “L’assignation d’une oeuvre à un genre la situe par rapport à dês ‘classes généalogiques’, c’est-à-dire à l’intérieur de ce qu’on pourrait appeler la sphère littéraire. Il existe en effet une ‘sphere’ où sont contenues toutes les oeuvres dont la trace a été conservée, une

bibliothèque imaginaire dont une faible part est accessible à partir d’un moment et d’un lieu déterminés. Se positionner, c’est mettre en relation un certain parcours de cette sphère avec la place que par son oeuvre on se

confère dans le champ”. Le context de l’oeuvre littéraire. Énonciation, écrivain, société. Paris: Dunod,

1993, p. 68-69. 115

“Todos somos peregrinos neste mundo: e de que devemos obrar com acerto, para chegarmos a nossa pátria, que é o Céu” (Peregrino da América, vol. I, 1988, p. 19).

116MOREIRA, Maria M. A novela alegórica em Português dos séculos XVII e XVIII, p. 189-190.

117SLETSJOE, Anne. A presença do demónio na prosa barroca lusófona. Exemplos de leitura transtextual.

Romansk Forum XV Skandinaviske romanistkongress. Nr. 16 – 2002/2 Oslo 12-17. August 2002, p. 1043-

entre uma e outra, mas em geral, no plano da ação, elas apresentam conjuntamente a peregrinação e a representação de uma luta do Bem contra o Mal seja no plano universal ou no individual, isto é, da consciência118. Estes dois temas correspondem aos dois padrões fundamentais que servem de base ao desenrolar da ação alegórica, e são chamados por Angus Fletcher de batalha e progresso119.A teoria de Fletcher sobre a constituição do modo alegórico é pertinente à leitura da obra enquanto narrativa alegórica, em cuja estrutura a alegoria já não se manifesta apenas de forma ocasional, mas torna-se o seu fundamento principal e necessário120. O modelo progresso, tendo em conta a modificação qualitativa associada à viagem, prefigura na alegoria moral uma questing journey121. A “deslocação física ficcionada”, como assinala Sara Augusto, com uma pertinente componente de diversidade de espaços, “assume uma dimensão espiritual, em que o tempo se torna fundamental”. O progresso das personagens no espaço narrativo, “corresponde a um processo de aprendizagem e amadurecimento, com a duração imprevista da vida humana, num percurso feito pelas páginas da doutrina em direção aos caminhos do céu”122.

118Do ponto de vista da estrutura interna, portanto, as narrativas alegóricas apresentam duas partes: numa delas, a ação desenrola-se segundo o esquema de uma batalha entre forças antagônicas; a outra obedece a um esquema de progresso, traduzido simbolicamente na caminhada ascencional empreendida pelas personagens protagonistas rumo ao seu encontro com a divindade. Nesse sentido, a organização interna da novela alegórica obedece a uma lógica rigorosa, construída não segundo uma regra de causalidade, que tenha em contra a sucessão das peripécias, mas antes de acordo com as ideias que se queria difundir e às quais tudo o mais se subordina. Cf. AUGUSTO, Sara. A Alegoria na Ficção Romanesca do Maneirismo e do Barroco. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010, p. 371-372.

119 Angus FLETCHER declara em sua obra Allegory: the theory of a symbolic mode (4a ed. Ithaca & London: Cornell University Press, 1993): “The tendency for allegories to resolve themselves into either two basic forms, and they do not merely arise out of the bare rudiments of these two forms; they keep returning to insist on them. […] The two may be labeled battle and progress. What I wish to show is that “symbolic

action” can be formed into progresses and battles, and that fictions of this type necessarily have double meanings, and necessarily have daemonic agency and cosmic imagery” […]. The allegorical progress may

first of all be understood in the narrow sense of a questing journey. There is usually a paradoxical suggestion that by leaving home the hero can return to another better home […]. The same need to be rather flexible in interpreting action appears with the second major paradigm, the battle form. Prudentius in the Psychomachia establishes the battle as an allegorical action, and describes and actual conflict on a field of battle” (p. 151, 157).

120

“A alegoria torna-se um processo de codificação do discurso, alterando de forma radical a lógica de

construção e sequência dos episódios em relação à verossimilhança que, apesar da fantasia e da complexidade

dos enredos, ainda caracterizava a novela de entretenimento exemplar”. Cf. AUGUSTO, Sara. A Alegoria na

Ficção Romanesca do Maneirismo e do Barroco, p. 368.

121FLETCHER, Angus. Allegory: the theory of a symbolic mode, p. 151-157.

O Peregrino da América apresenta-se também em conformidade com o didatismo herdado da tradição latina, ligada à funcionalidade pragmática inerente ao gênero. Assim, a utilização do exemplum adquire grande significado na obra. Dessa forma, a quinta parte da pesquisa é dedicada à presença do exemplum no Peregrino da América. Na obra, adequado às finalidades moralizadoras da obra, as Sagradas Escrituras fornecem exemplos de condutas a serem observadas. Em passagens da Bíblia e dos primeiros padres da Igreja, citados para conferir autoridade ao “Peregrino”, justifica-se a finalidade do homem passar por provações e enfermidades para alcançar a salvação. As referências à Sagrada Escritura, aos santos padres e à hagiografia estão articuladas com a citação de autores como Aristóteles, Platão, Sêneca, entre outros. A apropriação dos autores da antiguidade latina e grega se presta a fins doutrinários. Além disso, a constante recorrência aos exempla, extraídos das Escrituras Sagradas, dos conhecimentos fundamentados na tradição e na própria experiência, funciona como mecanismo de autoridade e estratégia de persuasão, procurando atrair os infiéis, hereges e pecadores que viviam na Colônia para a doutrina católica, fazendo-os renunciar aos maus costumes, com o objetivo de levá-los a alcançar a pátria celestial123.

Nuno Marques Pereira combina o desejo de narrar com o de ensinar e despertar os seus leitores para seu ensino ao narrar sua longa peregrinação literária por terras brasileiras. Faz isso a partir de uma longa tradição literária. Recorre à doutrinação católica tridentina, mas, enquanto criação literária recorre à tradição das narrativas de peregrinação alegórica, adaptando-as ao seu projeto narrativo. As referências à peregrinação envolvem várias manifestações literárias que partem de textos matriciais bíblicos. Sua viagem é também um percurso interior neste mundo. A própria palavra se metaforiza também como peregrinação e, “para realizar a tarefa missionária de arauto da palavra, o Peregrino deixa claro, ao longo da sua caminhada, o significado de pregador que adota, não mais o de semeador ou pescador, mas, sim, o de piloto”124, como ele mesmo o declara:

123ABREU, Jean Luiz Neves. A força do exemplo: o método de exposição do pensamento de Nuno Marques Pereira em o Peregrino da América. Anais da VIII Semana de Letras da UFOP, 2006, p. 1-6. Disponível em:http://www.ichs.ufop.br/semanadeletras/viii/arquivos/trab/g8.doc. Acesso em 10/07/2010.

Primeiramente digo, que se o Pregador não puder ser como o pescador, com quem os comparou Christo Senhor nosso, por pescarem as almas dos peccadores do mar da culpa, como o fizeram os sagrados Apóstolos e os mais Santos àquela imitação, sejam como pilotos. Isto é, quando entrarem no navio, ou nau da igreja, e se puserem em cima da cadeira, ou do púlpito, para fazerem boa derrota, é necessário primeiro que vão bem apparelhados dos instrumentos Divinos, para poderem navegar com acerto, levando o astrolábio do amor e temor de Deus, a balestilha da Cruz, a carta de marear da sagrada Escriptura, o roteiro da doutrina dos Santos Padres, a agulha da Sciencia, o compasso da prudência, a ancora da fé, a amarra da esperança, a matalotagem da caridade e o prumo da humildade125.

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