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O processo político responsável por trazer a democracia de volta à vida social e administrativa brasileira guardou um capítulo singular à política urbana. Vetada desde o Governo Figueiredo, a inserção de Lei ou Decreto de regulamentação das normas aplicáveis nas cidades – referentes ao uso e gestão do solo urbano – representa exemplo do caráter conservador dessa política de abertura gradual, imposta pelos militares, em meados dos anos 80. Lembrar, por exemplo, que a política ambiental – ainda em vigor – é de 1981. A inclusão do título maior26 já na

Constituição de 1988 foi rejeitada pelo modo conservador – e por que não dizer reacionária – dos legisladores que deram voz a grupos como proprietários fundiários, construção civil, igreja, entre outros, que tinham receio de uma abertura constitucional ou impacto nos conflitos urbanos. Ao mesmo tempo, os artigos 182 e 183 trouxeram uma pequena parte da agenda do MNRU debatida desde os anos 1970.

Entre 1988 e 2001, o hiato criado pelo impasse quanto à forma e o conteúdo dessa política urbana definiu um Estatuto da Cidade que intenta dar conta de três aspectos: Visão de futuro, gestão do hoje e princípios gerais da política urbana.

26Os artigos 182/183 trouxeram uma pequena parte da agenda do MNRU, debatido desde os anos 1970. Neste trabalho não serei enfático acerca dessa temática.

No caso da política, a gestão do hoje e a visão do futuro são enquadradas no momento em que o gestor toma importantes decisões acerca do uso da cidade. Nesse momento, o gestor mediará situações de conflitos, a partir de negociações e articulações políticas com vários atores que compõem a sociedade, baseadas em informações técnicas, considerando que o “planejamento urbano é o objeto de uma proposta social que visa transformar a sociedade e garantir o bem-estar dos cidadãos” (CARVALHO, 2001, p. 133).

Já no caso da gestão e da administração, elas serão necessárias para operacionalizar os princípios gerais da política urbana e do planejamento urbano, decididos a partir de decisões políticas ou democráticas. É preciso existir um sistema de planejamento, englobando um órgão ou entidade competente que articule todos os instrumentos de gestão e de conselhos. Além disso, é necessária a habilidade interdisciplinar de servidores, que buscarão conhecer todas as perspectivas possíveis da construção e implementação da política urbana, a partir de leituras da cidade e de estudos que identifiquem os problemas a serem enfrentados, facilitando a tomada de decisões e as melhores intervenções.

No caso do Plano Diretor, é muito difícil explicar o porquê de conceituá-lo, já que na prática ele pode vir a funcionar de uma maneira totalmente diferente do que imaginamos na teoria. A obrigatoriedade do planejamento urbano, previsto constitucionalmente no Brasil, como descrito nos artigos 182 e 183 de nossa Carta Magna, é recente e ainda necessita de muita interpretação por parte dos gestores e técnicos municipais.

O Plano Diretor faz parte do processo de planejamento municipal, como sendo um instrumento norteador para as cidades. Entretanto, na história do planejamento urbano no Brasil, nem sempre ele obteve o papel principal, sequer foi defendido como proposta de reforma urbana27. De modo que tal instrumento

pudesse ser posto em prática, quis o legislador que o Plano Diretor atuasse, após a Constituição de 1988, sob a égide da reforma urbana, sendo a figura central e decisiva da política urbana das cidades brasileiras.

Com efeito, a necessidade de que se tenha uma gerência eficiente, eficaz e efetiva foi instituída e regulada pelo constituinte por meio de três instrumentos básicos que tratam de gestão, orçamento e planejamento e outro corroborador, que

trata de gestão e do planejamento urbano. São eles, respectivamente: O Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei Orçamentária Anual (LOA) e o Plano Diretor Municipal (PDM).

Destarte, este último instrumento é considerado, além de corroborador, será “um pilar do sistema municipal de planejamento, devendo os demais instrumentos (PPA, LDO e LOA) incorporar as suas diretrizes e metas, as quais remetem para as ações planejadas para o futuro do município” (ANDRADE, 2010, p. 5).

As metas estabelecidas pelos planos diretores estão presentes em programas estabelecidos no PPA, cabendo, em seguida, a LDO incorporar a ação como matéria prioritária; e, enfim, a LOA orientando quais recursos serão necessários para a execução da política pública. Ou seja, para o artigo 40, § 1º, da Lei n° 10.257/01 (Estatuto da Cidade), o plano diretor faz parte do “processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas” (BRASIL, 2001), cabendo esses serem elaborados de forma compatível com o plano diretor, assim como determina o artigo 166 da Constituição Federal de 1988.

Logo, o plano diretor atua como uma espécie de elo entre as diretrizes nele contidas e as orientações que devem ser feitas para a eficácia das ações da gestão. Por conta disso, esse instrumento não pode ser comparado aos planos tradicionais, pois ele extrapola determinadas normas.

[...] Num esforço para sua decodificação, pode-se entender por plano a definição de objetivos a serem alcançados e de prazos a serem cumpridos, a indicação de atividades, programas ou projetos correspondentes ou necessários à realização dos objetivos definidos, bem como a identificação dos recursos financeiros, técnicos, administrativos e políticos necessários; e por diretor, as diretrizes estabelecidas em conformidade com a proposta social que se pretende alcançar, que constituem uma referência para as ações do poder público municipal e dos agentes privados. (CARVALHO, 2001, p. 134).

A valer, o plano diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras orientadoras da ação dos agentes que constroem e utilizam o espaço urbano. (BRASIL, 2002, p. 40). E, para Saboya (2007), ele será um documento que sintetiza e torna explícitos os objetivos consensuados para o Município e que metaforicamente pode ser entendido como uma “estrada” a ser percorrida, sendo orientada por meio de “entradas” (de ações), para que esses determinados objetivos do planejamento urbano municipal sejam alcançados.

Somente a partir do Projeto de Lei n° 5.788/90 – que ficou conhecido, futuramente, como a Lei n° 10.257/01 ou Estatuto da Cidade– o capítulo de Política Urbana da Constituição de 1988, delineou o passo a passo de como elaborar e implementar planos diretores municipais. Logo, o plano diretor, como instrumento de política urbana participativa e vinculada à gestão e ao planejamento por meio da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade, estará determinado a (BRASIL, 2001)28:

 Valer para todo o território municipal, ou seja, para áreas urbanas e rurais;

 Garantir o atendimento às necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida e justiça social;

 Organizar o crescimento e o bom funcionamento da cidade;

 Determinar qual é o destino de cada parte da cidade. Sem esquecer, claro, que essas partes formam um todo;

 Propiciar o crescimento e desenvolvimento econômico local em bases sustentáveis;

 Garantir que a propriedade urbana sirva aos objetivos anteriores;

 Contar com a participação popular em todas as etapas;

 Ser aprovado na Câmara Municipal. Assim, passando de instrumento técnico, para atuar como um instrumento político.

Atuando como um instrumento de governo; com caráter político e que, assim como o planejamento, deve ser processual e permanentemente pactuado; o plano diretor deve ser capaz de conjugar os interesses e estabelecer a justiça social, quanto o direito à cidade29.

Como a prática difere da teoria, construir planos diretores não é algo regulado como uma “receita de bolo” ou uma “fórmula mágica” pronta. As dificuldades de se elaborar um plano diretor vão depender de variados fatores, que corroboram com o

28 Compilação feita pelo autor com base no Capítulo 3, artigos 39 a 42-B do Estatuto da Cidade. 29 O conceito tem uma discussão teórica bastante ampla, variando entre o debate internacional e na literatura. Todavia, não deve ser entendido apenas como um direito legal individual. No Brasil, ele está contido na CF de 1988 e foi regulamentado pelo Estatuto da Cidade como uma garantia onde todas as pessoas terão direito de usufruir da estrutura e dos espaços públicos de sua cidade, sem distinção.

PPA, LDO e com a LOA do município, implicando na capacidade institucional municipal de elaborar e implementar políticas públicas.

Desde a CF-1988, os Planos Diretores devem ser elaborados para as cidades acima de 20.000 habitantes. Corroborando e ampliando a Constituição Federal, a partir do art. 41 do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), o Plano Diretor deve, obrigatoriamente, ser elaborado em cidades:

II – Integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;

III – Onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal;

IV – Integrantes de áreas de especial interesse turístico;

V – Inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.

Sendo importante destacar que no § 2º do artigo 41 da Emenda Constitucional nos fala que cidades com mais de quinhentos mil habitantes, deverão elaborar um determinado planejamento com o objetivo de obter transporte urbano integrado, compatível com o plano diretor ou nele inserido. Ainda também importante citar o Estatuto da Metrópole (Lei n°13.089/15), que em seu artigo 10 determina que as regiões metropolitanas devam contar com um plano de desenvolvimento integrado, onde “o Município deverá compatibilizar seu plano diretor com o plano de desenvolvimento urbano integrado da unidade territorial urbana” (BRASIL, 2015, art. 10, § 3°). Logo, também por esse motivo, o plano diretor constitui-se como principal instrumento de planejamento e de gestão para um número considerável das cidades brasileiras.

Os institutos jurídicos e políticos, em que os municípios são obrigados pelos planos diretores e que devem seguir para a elaboração e implementação da política urbana, são chamados de conteúdos mínimos e estão no art. 4° do Estatuto da Cidade e delimitados no art. 42.

O plano diretor deve possuir um conteúdo mínimo, conforme estabelecido no art. 42 do Estatuto da Cidade [...] lembrando que, de acordo com as características de cada município, outros aspectos deverão ser abordados no mesmo, considerando principalmente situações peculiares ligadas ao comércio, moradia, planos regionais com outros municípios, meio ambiente, patrimônio histórico e cultural, agropecuária, turismo, dentre outros. (ANDRADE, 2010, p. 13).

Logo, no artigo 42 do Estatuto da Cidade, podemos encontrar conteúdos obrigatórios no plano diretor como:

 A delimitação das áreas urbanas, onde o município deverá aplicar o parcelamento, edificação ou utilização compulsória, observando fatores de existência de infraestrutura e de demanda para utilização;

 A aplicabilidade e sua espacialização do direito de preempção, no qual “caberá ao plano diretor delimitar as áreas nas quais incidirá o direito de preempção” (ANDRADE, 2010, p. 15);

 De outorga onerosa do direito de construir;

 Permissão de alteração do uso do solo;

 Operações consorciadas;

 Transferência do direito de construir;

 Além do o sistema de acompanhamento e controle, monitorando os resultados obtidos e certificando que a legislação foi cumprida.

Os instrumentos acima não são autoaplicáveis. Eles precisam da gestão para serem postos em prática. Por exemplo, não tem como colocar em prática as Operações Consorciadas30sem a delimitação da área, coordenação e elaboração

de plano de ocupação feita pela gestão. Como também, não dá para permitir a Transferência do Direito de Construir31 sem passar pela autorização do órgão

competente.Esses e outros instrumentos exigem uma estrutura de gestão bastante articulada e administração pública organizada, para que os levem para seus devidos fins, estabelecidos na lei.

Esses instrumentos previstos nos planos diretores auxiliam na regulação do ordenamento territorial e na integração com outras políticas urbanas setoriais e, por isso, “o Município deve tirar partido desse poder de regulação para constituir suas políticas setoriais e programar seus investimentos no tempo” (ARRUDA, 2011, p. 54).

Com efeito, o plano diretor, para ser aprovado, deverá ter como base a legislação municipal, sendo apresentado pelo Poder Executivo do município à

30 Intervenções urbanísticas em determinado espaço para transformá-lo estruturalmente.

31 É a autorização dada pelo poder público de um município aos proprietários de um determinado imóvel que queiram vender o potencial construtivo para outros imóveis.

Câmara Municipal de Vereadores, obedecendo aos trâmites da casa legislativa. Cada “plano, projeto, programa, ação e política que será adotada em decorrência do plano diretor deverá ser apresentada e descrita no corpo da lei” (SILVA, C., 2008, p. 175).

Além disso, todas as estratégias de gestão deverão estar juntas com as diretrizes e demais pontos do planejamento, corroborando com o PPA, LDO e LOA municipais e outras políticas públicas de caráter local. Dessa forma, a gestão orientará os processos de planejamento fazendo com que o plano diretor possa funcionar estabelecendo os princípios, normas, diretrizes que possam orientar as ações do poder público de maneira eficiente.

Com efeito, no decorrer do processo de discussão do plano diretor, a gestão deve também garantir os princípios de gestão democrática da cidade, ampliando instrumentos de participação popular com o objetivo de escutar a população e promover a transparência de todo o processo. Além disso, “para que não haja descrença do cidadão, uma agenda deve ser programada e cumprida, com data de início e fim de sua elaboração” (ANDRADE, 2010, p. 19), estabelecendo uma metodologia capaz de atender todas as demandas positivas para o bem comum.

Durante esse processo de elaboração, o poder executivo municipal é essencial, de modo que as articulações e integrações entre diferentes atores (sejam ele técnicos, sociais ou políticos) funcionem com responsabilidade, ética e eficiência. Ademais, a gestão deve equipar-se em equipes, interna e externa, com conhecimento técnico, caráter social e forte articulação política. Essas equipes devem elaborar um diagnóstico preliminar, atualizar e utilizar-se de toda legislação pertinente e pensar a cidade “levando em conta a cultura local e as necessidades da localidade” (SILVA, C., 2008, p. 174).

Após o processo de elaboração, o plano diretor deve ser aprovado pela casa legislativa municipal. Neste espaço acontecem várias audiências públicas, com a presença da sociedade e elas podem ser decisivas para a mudança do texto. No entanto, segundo C. Silva (2008, p. 176), a tramitação, naturalmente, deve seguir a seguinte ordem:

1. Apresentação do Projeto de Lei do Plano Diretor (por parte do executivo) com a exposição dos motivos para o Presidente da Câmara Municipal; 2. Este poderá encaminhá-lo às Comissões correspondentes (Constituição e Justiça, orçamentária etc.) e à assessoria legislativa da Câmara;

3. Depois de aprovado por esses órgãos, o projeto de lei será encaminhado à Assembleia, que deverá analisá-lo, discuti-lo e aprová-lo (ou não), seja o todo ou as suas partes.

Figura 1 – O Planejamento municipal e o Plano Diretor

Fonte: Elaboração própria do autor.

O fato de ser uma lei complementar faz com que o plano diretor seja uma prioridade também para o vereador. Ele deve ser analisado e discutido em mais sessões e com a necessidade de um quórum qualificado com maioria absoluta da casa. Após a sua aprovação no legislativo, o plano diretor será publicado no Diário Oficial do Município, publicitado amplamente e seguirá para sua implementação.

Por fim, resumindo, cabe à gestão (politicamente) e administração (procedimentalmente) organizar o planejamento para que ele funcione mediante as necessidades dos interesses coletivos e difusos. A gestão deve certificar que o planejamento promova uma política urbana capaz de garantir e ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, tal qual fala o art. 2° do Estatuto da Cidade, como também ele deverá ocorrer na prática.

4 NATAL POR DEBAIXO DOS PLANOS 1: O PLANO DIRETOR DE

1994

4.1 BREVE HISTÓRIA RECENTE DO PLANEJAMENTO E GESTÃO URBANA DE