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Capítulo III — Cascalho e o território social do garimpo

1 Coronéis do diamante

1.3 O poder contra si mesmo

Zé de Peixoto, de índole violenta desde criança, cujo pai havia sido “um negro valente — o mais valente e afamado jagunço do Cel. Joca de Carvalho”, cai nas graças do coronel Germano devido à coragem e a sanha assassina, demonstradas nas escaramuças em que participou na Chapada sob o comando do coronel. Estes atributos fizeram com que ele fosse guindado ao posto de gerente do barracão, função que exigia a mesma crueldade e frieza demonstradas nos campos de batalha. Ter capacidade de incutir medo nos

garimpeiros era essencial para que o responsável pelo barracão pudesse extorqui-los sem reação.

Herberto Sales retoma aqui a temática do jaguncismo do romance nordestino, retratando o jagunço como produto do meio social. Contudo, Zé de Peixoto não é o camponês expropriado das suas terras pelos coronéis, submetido à opressão extrema, que, revoltado, se transforma em jagunço e se entrega ao cangaço, como afirma Rui Facó

Se a terra é para ele inacessível, ou quando possui uma nesga de chão vê- se atanazado pelo domínio do latifúndio oceânico, devorador de todas as suas energias, monopolizador de todos os privilégios, ditador das piores torpezas, que fazer, senão revoltar-se? Pega em armas, sem objetivos claros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é o seu.81

Ora, Zé de Peixoto é exatamente o contrário. Ele é o jagunço que não tem a consciência da estrutura social e política da qual é vítima. Por conta dessa alienação do espaço em que vive, ele se coloca a serviço da arcaica estrutura que o produziu, sendo o braço armado do coronel Germano, a quem o jagunço chama de “padrinho”, denominação que numa escala de valores afetivos é mais que seu “protetor”. Herberto Sales, através da personagem de Zé de Peixoto, traz para a literatura um tipo de jagunço diferente daquele que está presente na literatura nordestina. O romance regionalista do nordeste retrata o jagunço como o homem que se insubordina contra o latifúndio, forma um bando de cangaceiros ou adere a ele e transforma essa revolta numa epopéia de violências e

crueldades contra a população, indiscriminadamente. Entre tantos outros temos o exemplo de Seara Vermelha, de Jorge Amado, que ficcionaliza as peripécias do bando de Lucas Arvoredo e seu braço direito, Zé Trevoada:

“Entraram na cidade dando tiros para o ar. As ruas estavam desertas, os homens armados, reunidos pelo Prefeito e pelo Pretor, haviam sumido como por encanto. Em realidade eles não acreditavam muito na vinda de Lucas, pensavam que o cangaceiro, após o tiroteio, houvesse tomado outro rumo. Os soldados que restavam resistiram um pouco. Uns dois conseguiram fugir, os outros foram logo mortos. Mesmo os três que se renderam. Para não gastar munição (não tinham de sobra) Lucas mandou que os matassem a punhal. Ficaram estirados na rua, o sangue correndo das feridas. Cortaram a língua de Cândido, arrancaram-lhe os olhos. Há muito que Lucas o procurava”.(Seara Vermelha, p.199)82

As mortes, os combates contra a polícia, a justiça pelas próprias mãos, os saques, as humilhações públicas de autoridades, descritas por Jorge Amado, constroem em torno do jagunço uma aura de bandoleiro e justiceiro que permite ao romancista adotar, através desta personagem, uma perspectiva de denúncia social através da literatura. O autor deseja demonstrar que, mesmo naquela sociedade extremamente fechada e desigual, existe alguma forma de resistência, como assinala Rui Facó:

81 FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. 9a Edição. Editora Bertrand. Rio de janeiro. 1991. p.38.

“Naquela sociedade primitiva, com aspectos quase medievais, semibárbaros, em que o poder do grande proprietário era incontrastável, até mesmo uma forma de rebelião primária, como era o cangaceirismo, representava um passo à frente para a emancipação dos pobres do campo. Constituía um exemplo de insubmissão. Era um estímulo às lutas”.83

Pois bem, Zé de Peixoto, sendo este “jagunço diferente”, a serviço do proprietário das terras e das minas, só alça o lugar de herói quando, inconscientemente, ele se insubordina contra o coronel Germano, desafiando, com sua valentia, o poder supremo do chefe, num episódio que coloca fim à sua vida de “protegido do coronel”. Certo dia, num ato inusitado, provocado pela embriaguez, Zé de Peixoto contraria o poder do Cel. Germano, ao promover um tiroteio no povoado de Passagem, durante a estadia deste no garimpo:

“E não tardou, e todos viram sair de dentro das trevas, alumiado pela luz das poucas candeias acesas, o negro Zé de Peixoto. Vinha jogando cabriolas, com uma repetição na mão, e gritava como louco:

— Cadê um homem de coragem? Eu hoje estou com vontade de fazer um fecha!

O velho Justino sacou rapidamente a fogo-central, pondo-se em guarda. — Entregue a arma Peixoto! — advertiu-o com um grito.

Os garimpeiros recuaram.

— Que é que você quer Justino? Respondeu o jagunço. — Vá escovar urubu na praia. Hoje eu não estou respeitando nem meu padrinho!

Cel. Germano sentiu o sangue subir-lhe a cabeça. Zé de Peixoto tratava-o por “meu padrinho”. Vendo-se desrespeitado por um jagunço, coisa que pela primeira lhe acontecia, perdeu as estribeiras. Afastou os garimpeiros que o cercavam — e avançou num ímpeto de coragem para o negro”. (C p.21-22)

Impondo-se pela coragem, o coronel Germano desarma o jagunço. O episódio fortalece o mito da coragem desmedida tanto do coronel, o único entre mais de sessenta homens que teve coragem de enfrentar Zé de Peixoto e deste, que também foi o único a desafiar o coronel até então. O incidente, entretanto, só havia sido superado aparentemente. Todos sabiam que a sorte do jagunço estava decidida. João Vaqueiro havia recebido a ordem diretamente do coronel: — Quando ele aparecer lá na fazenda, você pode fazer o serviço...

Somou-se à atitude de desacato, a repercussão desmedida do incidente através das conversas e causos dos garimpeiros, que expunha algum tipo de fragilidade no poder do clã local, e os desejos do jagunço em se estabelecer no garimpo sem prestar contas aos poderosos do lugar. Após o episódio da Passagem Zé de Peixoto busca minimizar o incidente e aparentar disposição de mudar de vida, dedicando-se ao trabalho no garimpo. No entanto, todos sabem que a nova atitude por ele demonstrada não passa de uma 83 FACÓ, Rui. Op. cit. p 46.

simulação e estes fatos somados decretaram, de uma vez por todas, a sentença de morte de Zé de Peixoto, planejada pelo Dr. Marcolino e executada pelo delegado Esquivel.

O fim de Zé de Peixoto não instaura em torno de si a aura de “herói benfeitor” e justiceiro, que caracteriza o jaguncismo no sertão, mas a sua morte o transforma em herói, a quem as proezas de valentia são relatadas como atos de heroísmo jamais vistos:

“Sua crônica foi evocada, seus feitos no Coxó lembrados, e também suas arruaças, e não mais se falou de outra coisa naquela noite, em todos os grupos, em todas as casas... a cidade foi sua naquela noite”. (C. p.102)