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Texto de ficção, relatos históricos e o real

Capítulo II — Cascalho: romance documental

1 Texto de ficção, relatos históricos e o real

A narrativa de Herberto Sales em Cascalho faz um retorno às origens da civilização do garimpo para buscar ali as explicações relacionadas ao lugar ocupado pelos personagens. Estas idas e vindas à fonte da história passa pela descrição sócio-geográfica da região do garimpo, pela interação da história local com os acontecimentos do país e, através desta historicidade da obra, ele vai montando uma biografia da civilização do garimpo através do texto literário.

O romance descreve a exploração do diamante, o relevo, a fauna e a flora da região e as mazelas sociais decorrentes da seca, como as doenças, a fome e as degradantes condições de vida dos garimpeiros. Grosso modo esta descrição já havia se constituído em história através dos relatos das travessias efetuadas pela região, aqui apresentadas nas narrativas de viajantes — Spix e Martius e Teodoro Sampaio. Encontraremos nos seus testemunhos informações sobre a geologia e sobre a incidência de diamantes, mas também o registro da fome, das doenças e do abandono em que as populações lavristas estavam relegadas. Muito embora estes últimos fenômenos sejam creditados pelos cientistas aos determinismos do meio e da raça. Spix e Martius, ao mesmo tempo em que enaltecem a beleza da Chapada e a riqueza do subsolo, deploram a inapetência para o trabalho da população local devido a pouca presença do europeu: “raras vezes se encontra entre eles um branco de pura raça

européia” e afirmam que o contato com o indígena contamina a todos com a indolência e a irresolução:

“uma palhoça imunda, tendo em volta uns pés de bananeiras descuidados, uma roça de feijão e mandioca, um rebanho de gado e alguns cavalos magros, que devem buscar eles próprios à subsistência, eis a mais alta aspiração desses matutos”.36

Encontraremos idêntico posicionamento em Teodoro Sampaio. Ele caracteriza a população do garimpo como pouco operosa e pouco afeita às inovações empreendedoras na exploração das minas, além de destacar a índole violenta do garimpeiro. Ele busca amparar sua opinião em dados demonstrativos sobre Mucugê: “basta que se saiba que em dois anos de mineração deram-se para mais de cem assassinatos, pela maior parte impunes”.37 A segunda estação da história visitada por Herberto Sales se situa na confluência do seu texto literário com o relato histórico de Anita Leocádia sobre a Coluna Prestes. Aqui vamos ter o encontro da civilização do garimpo com os acontecimentos do país, contemporâneos à narrativa de Cascalho. A pesquisa sobre a Coluna Prestes, e os diversos depoimentos trazidos pela autora sobre a questão, descrevem o conflito político do Brasil da república velha, cujo pano de fundo é a estrutura social e econômica do país. O relato fala da Chapada Diamantina como domínio absoluto do coronelismo sobre as massas

36 SPIX, Jonhann Baptist von, MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Op. cit. P. 129. 37 SAMPAIO, Teodoro. Op. cit. P.227.

camponesas, as quais a Coluna teria a tarefa de liberta-las e incluí-las no novo projeto de nação pregado pelos revolucionários.

O terceiro elemento da historicidade do romance, o seu ponto de chegada, se situa justamente no aspecto biográfico da obra ao trazer o discurso do autor enquanto alguém que viveu os acontecimentos narrados — Herberto Sales era morador de Andaraí e conhecedor da matéria garimpo — apresentando, portanto, uma, ou mais de uma, versão da história ocorrida e o faz interpretando os fatos de maneira verossímil. A propósito do caráter biográfico da obra podemos citar as anotações de sala de aula da professora Evelina Hoisel, disciplina de Teoria Narrativa:

“Biografia hoje não é apenas fatos, mas desejos, sonhos, a vida vivida e a que poderia ser vivida. A biografia contemporânea é a vida factual e ficcional, a construção discursiva.” 38

Herberto Sales não faz apenas um relato como fazem os viajantes do século XIX e, em certa medida, Anita Prestes na pesquisa sobre a Coluna Prestes, aqui citados. Ele ficcionaliza estes fatos históricos e descreve o cenário físico da Chapada Diamantina, transformando a natureza local em parte da biografia da região, apresentando ao leitor informações sobre o garimpo não apenas como atividade econômica, mas como um dos elementos constitutivos da cultura da Chapada Diamantina.

Este aspecto biográfico do romance estabelece desde já uma distinção entre ele e a crônica histórica. No entanto, esta crônica histórica, sendo em si literatura de um certo campo epistemiológico, não se constitui em literatura de ficção, em obra literária, posto que as relações destes textos com o real se limitam a descrevê-lo tal como a realidade se apresentou ao observador. Então podemos dizer que nestes relatos a objetividade se encontra “descasada” da subjetividade. Dito de outra forma: nos relatos dos viajantes o real é relatado no seu aspecto conotativo, sem que se dê o que Judith Grossmann chama “processo dual” da obra literária:

“que é simultaneamente cumulativo e redutor, o de agregar conotações e o de, implícita ou explicitamente, desbasta-las em denotações.” 39

Assim, queremos deixar evidente que a historicidade da narrativa em Cascalho não implica em semelhanças de gênero com os relatos aqui citados, nem que haja semelhança entre fato histórico e fato literário. As diferenças estão na relação da obra literária com o real, que não é uma relação tão somente de reprodução, como fizeram os relatos dos viajantes e guerrilheiros sobre os fatos históricos. A literatura vai recriar o fato histórico, numa relação de tensionamento produzido pela linguagem:

“O paradoxo essencial da obra literária, em relação ao qual se mantém elusiva, é o de que a imagem se faz mais real do que o real, ou no próprio

real. O discurso literário sutiliza ao máximo as relações entre o real e a ficção, ora representando um, ora outro, como englobante ou como englobado, deslocando continuamente a questão da origem, ora colocada no discurso, ora na realidade.” 40

Podemos inferir desta discussão o caráter da autonomia da obra literária em relação à realidade se explicita num primeiro movimento de negação do real e num segundo movimento de retorno ao real através da linguagem. Estes movimentos expressam o próprio significado do fazer literário. Judith Grossmann nos fala que esta relação “é furto e doação ao real”:

“O literário se reconhece nascido de um saque ao real, propondo-se a ressarcir o mesmo desse ato de violência. A obra e o autor estão incursos nesse saque, inclinando-se a explicitar que todo ato de criação nasce de uma violência, no caso a da linguagem, violência que se propõem a saldar pelo retorno à realidade, nadificada de um lado e realizada do outro.” 41

Esta dialética de ida e retorno ao real, que expressa a autonomia da obra literária diante da realidade, é por demais evidente em Cascalho através do trânsito dos personagens na cidade de Andaraí, na descrição do cenário físico, nos diálogos e nas ambiguidades dos garimpeiros diante da realidade.

40 GROSSMANN, Judith. Op. Cit. p.18. 41 GROSSMANN, Judith. Op. cit. p 30.

Poderíamos aqui citar diversas cenas do garimpo retratadas em Cascalho, roubadas do real e devolvidas pela linguagem ficcional de Herberto Sales, como a morte do garimpeiro Raimundo, que inicia o romance. A morte de um garimpeiro é episódio familiar nas minas de diamante, mas no momento em que este episódio é ficcionalizado, o que é familiar ganha visibilidade, chama a atenção do leitor, estabelece-se uma rede de relações entre a morte do trabalhador e o contexto, adquirindo, assim, um novo significado, porque se torna um fato exemplar da exploração dos trabalhadores, da banalização da vida no garimpo e da solidariedade entre os oprimidos. Este jogo de furto e doação entre a literatura e o real cria uma nova dimensão do real ao trazer um fato do passado, a morte de um garimpeiro, colocando-o na dimensão de um presente que estará sempre eternizado pelo texto literário através da linguagem.