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3.1 O ALCANCE DOS CORPOS NAS RELAÇÕES

3.1.4 O posicionamento dos manuais acerca da homoafetividade

Linguagens informais – diversamente daqueles manuais consultados por Norbert Elias (1994) -, conselhos para lidar com situações inusitadas da contemporaneidade como, por exemplo, “comprar viagra”59

(KALIL, 2007), declarações de que um mundo de mandamentos deve ser ofuscado (LEÃO, 2007, p. 8). Forma o conteúdo e discursos comuns a esse tipo de bibliografia. Mas há assuntos que, apesar de ser uma realidade concreta inegável, são ignorados, como a homoafetividade.

Segundo Giddens (1993), a “emergência” da homossexualidade é processo extremamente real. Em sua ótica, a sexualidade funciona como um aspecto flexível do eu, um marco de conexão primária entre o corpo, auto identidade e normas socais. É justamente nesse momento, amparado nas considerações de Foucault (2007) – pelo menos nesse momento, já que o autor tece críticas veementes ao filósofo – na “hipótese repressiva”, em que a civilização significa disciplinamento ou controle dos impulsos interiores, portanto, o poder disciplinar é poder repressivo. Seu foco são especialmente os séculos XIX e início do XX. Porém, mesmo com os alardeios sobre as revoluções sexuais, há de se admitir que esse modelo disciplinar não está, de todo, obsoleto.

Isso fica visível nas fontes. Apenas dois livros apontam para a homoafetividade: Na sala com Danuza (2007) e Etiqueta século XXI: um guia prático de boas maneiras para os novos tempos (2008). Este, escrito por Célia Ribeiro, trata do assunto de modo informativo e formal, características de sua linguagem:

União gay: como não existe na legislação brasileira o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, não é adequado o uso da palavra casamento. Casamento gay pela lei civil existe, por enquanto, no Canadá, Dinamarca e Holanda. Nos demais países, o casal faz um contrato de união, afirmando que convive afetivamente desde determinada data, e adota o compromisso de que os bens adquiridos e os que vierem a ter farão parte do acervo patrimonial. (Há casos que estipulam a separação de bens). É assinada uma escritura, sem exigência de testemunhas. Há advogados que se encarregam das tramitações e dos termos, mas nem todos os tabelionatos aceitam efetivar esse contrato60 (RIBEIRO, 2008, p. 158).

De acordo com Giddens (1993), o ethos do amor romântico construiu um compromisso ativo com o “machismo” da sociedade moderna. Para além da orientação

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Citrato de sildenafila. Consiste em um fármaco usado no tratamento da disfunção erétil no homem. Medicamento pioneiro na moderna terapêutica da disfunção erétil masculina foi sintetizado orginalmente pelo Laboratório Farmacêutico Pfizer.

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No mês de maio do ano de 2011, posterior à escrita deste manual, o Supremo Tribunal Federal aprovou a união estável de casais do mesmo sexo, equiparando-a, juridicamente, às uniões entre homens e mulheres.

sexual, o que se observa aqui é uma questão de gênero: à mulher brasileira, cabe o resguardo, a descrição. Embora se saiba que muitas relações homoafetivas sejam publicizadas no Brasil, pode-se diagnosticar o olhar social sobre o feminino nesse tipo de relação: pode até se admitir, desde que seja circunspecto:

Amor entre iguais: são frequentes nos Estados Unidos e na Europa as festas de “casamento” entre mulheres gays. Uma brasileira uniu-se no campo da Universidade de Stanford, na Califórnia, a uma colega americana, numa igrejinha de credo liberal. Lílian realizou o grande sonho de vestir-se de noiva e entrou na igreja pelos braços do pai, enquanto a paulista Nana a aguardava no altar, vestindo uma pantalona com sofisticada blusa feminina. Após a cerimônia, saíram de mãos dadas. No Brasil, a mulher gay se resguarda, não costuma pensar em formalidades e participar aos amigos que passou a morar com uma namorada (RIBEIRO, 2008, 158).

Mais uma vez os estudos foucaultianos são pertinentes. A sexualidade feminina foi reprimida, interpreta como origem patológica da histeria. A tecnologia do autocontrole deveria ser exercida por meio de um tripé: o poder, o discurso e o corpo. No tópico “masculino e feminino”, adverte Ribeiro (2008):

No namoro entre iguais, não há mais aquela de vestir-se de modo masculino e outro superfeminino. Os termos também se tornaram mais suaves. As mulheres maduras, descuidadas com físico, são apelidadas “gaiteiras”. Um baile gay feminino é chamado de Baile de das Sapatilhas. A sensibilidade de um homem e de uma mulher tem características muito próprias. Por isso, o namoro entre elas se reveste de mais delicadeza, com atenções recíprocas que, em geral, os homens não têm com suas namoradas, alegam as “entendidas”, outra denominação aplicadas a elas. A boa educação

recomenda que não troquem carinho em público61 (p. 160).

Nesse trecho se reproduz a percepção de amor romântico como um amor “essencialmente feminilizado” (GIDDENS, 1993, p. 54), embora construído para submetê-la. Ele deveria ser antítese da luxúria, ou pelo menos incompatível com ela, já que prediz um encontro de almas, daí o discurso da sensibilidade feminina. Giddens (1993, p. 74), se utiliza do conceito de “amor confluente”, com as ideias de um modelo de relação onde se leva em consideração as peculiaridades do outro, para explicar uma característica observada na homoafetividade. A autora acima atribui à construção social do feminino, que traz como um dos seus requisitos, o entendimento do outro.

Já na expressão “a boa educação recomenda que não troquem carinho em público”, pode-se observar, mais uma vez, o lugar do recato, da tentativa de discrição e equilíbrio. Desse tipo de relação como própria de silêncios e sombras.

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Não se podem negar os avanços rumo a uma liberação sexual na contemporaneidade, mas parece inegável que os fundamentos que se baseiam na repressão e recato da sexualidade feminina não foi totalmente varrido do cosmos social, mesmo que se coexista com essa realidade. Há, de fato, uma manifestação maior de sua orientação sexual, no caso dos homens, e isso é dito apenas com um olhar social por parte dessa pesquisa, sem análise quantitativa acadêmica. Mas há reservas sociais para as duas situações e isso é textualizado pela autora:

Assim como antigamente não se imaginava um casal fazer sua festa sem passar pelo juiz ou o padre, quem diria que um dia homossexuais festejariam sua união em público? Importante numa festa gay é saber escolher os convidados. Se há pessoas que não aceitam, nem por isso o vínculo afetivo é quebrado, deve ser respeitada a maneira de pensar diferente da nossa: “Para mim não serviria, mas se eles estão felizes... Que bom” (RIBEIRO, 2008, p. 153).

Nesse momento, a autora assume aquela posição politicamente correta de quem não compactua com essa opinião, mas pelo menos respeita. Essa postura é adotada por uma grande parcela da sociedade brasileira. O complicado é que muitas vezes esse hipotético respeito carece de uma efetividade. Em geral, o discurso é vazio, compreendendo uma reprodução. O significado de respeito, muitas vezes, é a equidistância.

Se um rapaz te apresenta a outro dizendo: “Este é Ricardo, estamos juntos há dez anos”, fique frio. Se você ainda se escandalizar com essas coisas, mesmo assim não mova um músculo do rosto. E, para não ficar aquele branco, pode até dizer: “Que coisa bonita, rara, um casamento durar tanto”. Mas não leve sua naturalidade ao exagero de perguntar: “Vocês têm filhos?”. Sim, pois pode ouvir como resposta: “Não, nós evitamos”. Aí, quero ver sua cara (LEÃO, 2007, p. 150).

Ou seja, deve-se agir com naturalidade mesmo que se pense que essa relação não se encaixa nos padrões de normalidades introjetado pelo indivíduo. O discurso da autora revela o quanto os casais gays são rejeitados pelos indivíduos que, supostamente, estão de acordo com os padrões normais que legitimam a relação conjugal homem- mulher. Daí o conselho para se agir com naturalidade, ou seja, mesmo não concordando finja para não constranger.

Para Cruz (2012) esse é um dos dilemas a ser superado referente à construção cultural da identidade de gênero, que nem sempre corresponde ao sexo masculino e o sexo feminino sentido biológico legitimado socialmente; a esse respeito ela afirma que “a sociedade recompensa a incorporação do modelo simetria entre os sexos e gênero

[homem-mulher] como normal e adequado, penaliza de maneira diversa a transgressão da norma dominante. Sem duvida, o fato mais importante para se manter a normal social é o próprio controle interno dos indivíduos.” (p. 20). A afirmação de Cruz (2012) é constatada na fala de Leão (2007), quando aconselha que, no caso de seus leitores receberem uma “cantada gay”: “reaja da mesma maneira que reagiria a qualquer cantada. Dê corda, se estiver a fim. Corte, se não estiver” (LEÃO, 2007, p. 150). Nas considerações finais a respeito do tema, Leão é irônica:

Depois de alguns casamentos e séculos de análise, alguns resolvem assumir o que todo o mundo sempre soube: que são gays. Enquanto uns vão vivendo naturalmente, sem ter necessidade de participar sua nova condição ao mundo, outros levam a sério o que consideram um ato de coragem, e só falta anunciarem na coluna social que saíram do armário. Desnecessário: para viverem plenamente sua gayzice, não é preciso nada, a não ser que continuem a viver como sempre viveram, isto é, indo para cama com quem quiserem – o que, aliás, não interessa a ninguém, a não ser a eles próprios (LEÃO, 2007, p. 151).

Na sua sessão “mundo gay”, que possui a extensão de suas páginas, a autora fala em seu “amigo gay”, referindo-se sempre ao sexo masculino. Em nenhum momento há citações que se relacionem às lésbicas. Esse ocultamento da mulher-lésbica na fala da autora reitera e demonstra o quanto a diferença sexual desqualifica a mulher, não só no que diz respeito a sua identidade de gênero construída culturalmente, mas, sobretudo, em desqualificá-la por não estar em conformidade com seu papel sexualmente prescrito pela sociedade. Ser lésbica, então, é a desconstrução da normalidade biológica de sua condição de ser mulher (OLIVEIRA, 1999). Desse modo, podemos pressupor que a ausência da lésbica, pode ser certa “aversão” da própria autora em abordar essa temática para não deixar seus leitores em dúvida em relação a sua feminilidade, mas, de certo, o precedente ficou aberto.