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3.1 O ALCANCE DOS CORPOS NAS RELAÇÕES

3.1.5 As regras de civilidade nas redes

Os meios de comunicação mais comuns até o início da década de 1990 do século XX eram os contatos verbais, gestuais e escritos. Estes através de cartas, telegramas, cartões, ou seja, em papel. A internet, meio revolucionário de comunicação, triunfou entre o século passado e se expande habilmente no recente. Na bibliografia analisada, foram encontradas defesas enérgicas sobre códigos de civilidade nas relações em rede:

Netiqueta: podemos conhecer pessoas, trocar informações, conviver com

amigos cada vez mais, fazer negócios pela internet. Mesmo no ambiente virtual, onde duas ou mais pessoas se relacionam, tornam-se necessários alguns parâmetros de comportamento. Afinal, respeito, elegância e bom senso são importantes em qualquer meio de comunicação (MATARAZZO, 2005, p. 119).

“Netiqueta” é o neologismo endossado por Cláudia Matarazzo (2005) na defesa das boas maneiras também no ambiente virtual. Num tipo de comunicação em que não se tem o corpo presencial, a fala e a imagem são recebidas à distância, torna-se necessário ter certos cuidados para não dar margens às interpretações equivocadas. Frédéric Rouvillois (2009), ao pesquisar as regras de polidez atuais, conclui:

De modo geral, é aconselhável que os internautas não cultivem o humor senão com reserva; qualquer tipo de brincadeira pode ser facilmente interpretada como uma crítica [...]. Na internet, escrever bem continua a ser uma arte difícil, em que a ironia se aproxima facilmente do sarcasmo e a anedota da grosseria. Portanto, a prudência continua obrigatória. E somo levados a fazer a mesma constatação a respeito da regra segundo a qual seria descortês criticar os outros por suas eventuais falhas de netiqueta: é preciso perdoar, para ver perdoados os próprios erros, e saber pedir desculpas quando se cometeu uma falta com a netiqueta (ROUVILLOIS, 2009, p. 468).

Os deslizes de informação ou opinião que facilmente são resolvidos presencialmente, em rede, difunde-se com uma velocidade tal, que se pode contornar o problema, mas essa reificação não faz evaporar completamente. Rápida propagação. Dificultosa correção. Diz Célia Ribeiro:

Na comunicação por escrito as palavras têm um peso maior. Como parece que se escreve com mais espontaneidade um e-mail do que uma carta, pelo caráter imediato do correio eletrônico, cuidado. Se estiver estressado ao digitar um e-mail, lembre-se que, ao enviá-lo não há condições de apagar o que será lido (2008, p. 42).

Por outro lado, o mundo virtual possui suas particularidades linguísticas e “projeções” de entonação que facilita a comunicação entre os conectados nas estruturas das redes, conforme palavras de Glória Kalil (2007):

Minha amiga Duda conta que era só ouvir a mãe chamá-la por Eduarda para saber que a situação estava feia para o seu lado. Na correspondência moderna via e-mail, essas nuances na maneira de tratar uma pessoa, também têm um peso significativo: tanto no plano pessoal quanto profissional (p. 216).

As próximas linhas tentarão dar conta de parte desse mundo virtual. Algo que se expande cada vez mais no Brasil. Dessa forma, torna-se crucial analisar esse tipo de

comunicação, tão impregnada no século XXI, já que os manuais de etiqueta tem muito a dizer sobre os jogos sociais.

Na visão de Manuel Castells (2003), o paradigma que se instituiu no final do século XX gira em torno da tecnologia da informação, inclusive com uma linguagem especificamente virtual. Essa revolução tecnológica poderia ser comparada à do século XVIII – a Primeira Revolução Industrial -, pois desencadeia novas realidades e seus efeitos são expansivos e indeléveis. O que demarca a atual revolução é a aplicação dos conhecimentos e da informação para gerar mais conhecimento e informação dentro de um círculo realimentado e cumulativo, relacionando inovação e sua utilização imediata.

O que o autor nomeia de cultura da virtualidade real, se caracteriza pela integração dos indivíduos em rede digitalizada de múltiplas formas de comunicação, podendo penetrar, abranger e expandir todas as expressões culturais. Com isso, o espaço e o tempo – dimensões grais da vida humana – são radicalmente alterados. O primeiro parece perder o seu sentido cultural, com a construção de um espaço de fluxos, onde as imagens das localidades são lançadas. O tempo amarga uma obsolescência, já que na rede, passado, presente e futuro podem interagir na mesma mensagem através de programação. Torna-se, assim, um tempo intemporal.

As duas dimensões – espaço de fluxo e tempo intemporal - são os fundamentos de uma nova cultura, onde o faz de conta potencializa-se, tornando-se realidade. E esse argumento tem comprovação empírica. Hoje, percebe-se a inevitabilidade da rede nas sociedades e, na esteira dessa realidade, a inclusão dos indivíduos “globalizados” nessa cultura virtualmente real. O saldo dessa conexão é a dimensão global do espaço de

fluxos.

O e-mail, por exemplo, é o endereço mais acessível, pois está ao alcance dos olhos sem que seja preciso deslocamento do espaço concreto. É inegável a sua importância, por isso os manuais focalizam-no também. Segundo Kalil (2007), na sessão “como começar um e-mail”:

Quando nos dirigimos aos amigos íntimos, podemos começar com oi, amor, querido, apelidos em geral e, depois, terminar com beijos ou bjs. Quando a correspondência é para o escritório de alguém, a coisa já pede um pouco de moderação porque o e-mail pode muito bem ser lido acidentalmente por outras pessoas: é a hora do querido fulano ou apenas o nome da pessoa. Usar caro ou prezado é simpático para tratar com quem não se tem intimidade e, neste caso, encerrem o texto mandando abraços, com seu nome, cargo e telefone para contato. Façam uma verificação para cometer erros ortográficos e gramaticais e, sobretudo, evitem abreviações e gírias. No campo profissional, o andar da correspondência é um importante termômetro de vínculos. Por isso, prestem atenção no tratamento: se começou com prezado

e, depois, foi para o querido quer dizer que o negócio vai bem. Mas se depois de alguns prezados o tratamento mudou apenas para o nome e, depois, sem nome nenhum e sem um mísero abraço no final, podem saber que o negócio foi por água abaixo. O e-mail é uma maneira moderna e inteligente de se relacionar. É rápido, pessoal, mas com a vantagem de estabelecer entre os interlocutores uma fina barreira de distância, às vezes tão desejável, que a comunicação por telefone, por exemplo, não tem. É um modo civilizadíssimo de se corresponder 62 (p. 216).

Ao final de sua explanação, a autora recorre ao assunto que redunda na discussão do primeiro tópico deste texto: a distância. Se, para que os indivíduos se relacionem no espaço enquanto dimensão tradicional é preciso haver um intervalo de meio metro, segundo reza a cartilha da etiqueta social, o que dizer da distância virtual?

Não é novidade a contradição que circunda tal questão: na cultura da

virtualidade real, muitas vezes e por meio de várias vias de acesso em rede, os

indivíduos aproximam-se mais de quem está corporalmente distante e, concomitantemente, afastam-se dos que estão concretamente próximos. Isso ocorre, porque na sociedade que levanta a bandeira da privacidade, a proximidade material é ameaçadora. Na rede, a exposição é de sua responsabilidade e as proximidades, em última instância, acontecem por signos e imagens, quando, materialmente, se está mantendo uma “distância segura”. Frédéric Rouvillois (2009) sentencia a esse respeito:

Esse meio de comunicação, fato absolutamente inédito, possibilita que pessoas anônimas – estranhas umas às outras e, em geral, determinadas a assim permanecerem – troquem ideias mensagens e exponham inclusive questões bem pessoais, até mesmo íntimas. A internet permite assim a emergência de uma sociabilidade sem sociedade. Mas, nesse caso, a internet não poderia ser tolerável sem a existência de regras de conduta – que, para alguns, são influenciadas diretamente pela cortesia habitual, mas que, para outros, constituem preceitos específicos, adaptados às particularidades de novo meio comunicação (p. 457).

Apesar de aparentemente parecer apelação a uma zona de conforto, este trabalho enxerga uma relação dialógica entre a cortesia habitual – o que fica evidente na escrita de Kalil – e uma linguagem mais específica, como ícones indicativos, abreviações exclusivas ao mundo virtual63. Em alguns casos, ainda que se utilize uma linguagem geral, gestada na esfera do real antes do virtual brotar e crescer indica-se uma

62

Grifos nossos. 63

Por exemplo, o símbolo “#” na rede social Twitter, expandindo para os demais, como Facebook e Orkut. Ele é utilizado numa posição imediatamente anterior a uma frase sem espaçamentos, indicando uma comunicação rápida e, de certo modo, “sobrevivendo” ao espaço que permite poucos caracteres. Um segundo exemplo são termos como “naum” (não), que muda a forma de atender à simplificação na comunicação. Por fim, termos criados para a sociabilidade em rede e indexados à linguagem cotidiana, inclusive na fala, como “ficaadica”.

atualização. Essa observação pode ser apontada no discurso de Matarazzo (2005, p. 119):

Os e-mails devem ser respondidos rapidamente. Por isso, demorar para retornar um e-mail é considerada uma grande falta de educação ou, pelo menos, de interesse. Responda, no máximo, em quarenta e oito horas. A trabalho ou não, os e-mails não comportam a formalidade das cartas e comunicados. O melhor é evitar as saudações tradicionais e ultrapassadas, como excelentíssimo senhor, e começar com um “Bom Dia” ou “Olá”. E também não custa nada assinar a mensagem e até acrescentar uma despedida simpática.

Logo em seguida, na normatização direcionada à civilidade nos Chats64 a linguagem cunhada em rede é citada, numa tentativa de alertar os leitores e leitoras a não cometer gafes na ambiência virtual. Na realidade, a relação entre as duas categorias – a cortesia habitual e os códigos particulares da rede – podem ser observadas:

Um dos grandes sucessos da internet são as salas de bate-papo, os chats-

rooms ou simplesmente chats. Para ser um internauta elegante, você deve

entrar nos bate-papos sempre com o mesmo nickname (apelido) e evitar, não só no mundo virtual, brincadeiras sem graça, cantadas estúpidas, temas racistas e/ou indiscretos. Nos chats, cuidado com as letras maiúsculas, pois significam “gritar” ou “falar em voz alta”. Outra prática considerada mal- educada nos chats é o convidado indesejado, que não está interessado na discussão ou tema da sala. Esse sujeito é tão inconveniente na rede quanto pessoalmente (MATARAZZO, 2005, p. 119).

Outras regras também são ressaltadas. Numa citação anterior, Matarazzo afirma: “Os e-mails devem ser respondidos rapidamente. Por isso, demorar para retornar um e-mail é considerada uma grande falta de educação, ou pelo menos, de interesse. Responda, no máximo em quarenta e oito horas” (2005, p. 119).

Já Glória Kalil (2007, p. 118), lança uma advertência semelhante: “Respondam todos os e-mails na hora; nem que seja só para pessoa saber que o assunto dela já entrou na sua agenda”. Velocidade: da informação, da resposta, das propostas. O tempo

intemporal dessa sociedade reticulada não tolera lentidão, nem os seus usuários. Ele

pode eternizar momentos, imbricar temporalidades, mas abomina a ausência de velocidade. Nas palavras de Célia Ribeiro (2008, p. 42), podemos observar as mudanças – mas também os retornos aos costumes – na vida real em nome da urgência do tempo:

O correio virtual resgata o hábito da correspondência pessoal, que foi se perdendo com a evolução dos meios de comunicação e o ritmo mais acelerado da vida. Na vida profissional, homens e mulheres que confiavam às

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secretárias a tarefa de escrever cartas passaram a digitar grande parte de seus

e-mails. Muito telefonema está sendo substituído por e-mail pelo ganho de

tempo de operação.

Uma característica capital, de acordo com a leitura desses materiais é o pragmatismo da mensagem. Analisando a polidez na contemporaneidade, Rouvillois (2009) observa esse predicado:

Se agregam regras específicas, que resultam diretamente das particularidades tecnológicas desse novo meio de comunicação: concisa – é importante respeitar o tempo dos outros e a capacidade de memória dos computadores – e precisão – justificada pela caráter mundial da rede e pelas especificidades da linguagem na internet (ROUVILLOIS, 2009, p. 468).

Velocidade nas respostas, concisão e precisão nas mensagens estão interligadas à categoria de tempo intemporal. Este, por sua vez, intrinsecamente conexo à dimensão de espaço virtual, em que a cortesia habitual junto ao dialeto próprio dessa cultura virtualmente real devem reger as ações em rede. Os manuais são unânimes em reconhecer que, aonde há relações interpessoais, deve haver códigos de conduta. Do outro lado, um ser humano, permeado por códigos estruturados e estruturantes (BOURDIEU, 1989) se conecta ao leitor desses manuais. Isso é lembrado até para não despersonalizar as relações.

Entretanto, filha do seu tempo, a sociedade consumidora que abraça as efemeridades e a internet, por definição é fluída em códigos múltiplos, inconscientes e frequentemente violado, como é no mundo material, seja nas relações sociais mais amplas e nas íntimas. No capítulo seguinte, serão analisados os discursos dos manuais de etiqueta acerca do consumo norteado pelos conceitos de estilo. As dicas de moda e consumo, os produtos fetichizados pelo mercado e o estilo de vida consumista.